Todo conceito é uma construção histórica e cultural, isto é, ele não pode ser fixado ahistoricamente nem se desprender do terreno em que ele é continuamente produzido e reproduzido. A melhor maneira de retornar ao conceito de hegemonia é perguntar qual a relação que temos hoje com ele.

Na cultura do gramscianismo e nas várias leituras que se produziram da sua obra, há dois momentos marcantes no que diz respeito ao conceito de hegemonia.

Um deles é a clássica polêmica de Perry Anderson em seu ensaio forte “As antinomias de Gramsci”. Aqui está em jogo a autonomia da reflexão de Gramsci em relação a Lenin e a coerência de sua teoria. O outro é a celebre intervenção de Norberto Bobbio em um Congresso Internacional de estudos gramscianos, no qual o filósofo italiano interpreta Gramsci contra Marx, gerando extensa controvérsia.

O ponto de vista de Perry Anderson é o de que o termo hegemonia já era utilizado pelos bolcheviques e mencheviques para designar a necessária liderança da social-democracia russa na luta democrática contra o czarismo, estabelecendo uma unidade dos operários com os camponeses. Nas reflexões de Gramsci, tal conceito não teria chegado a uma definição estável já que o marxista italiano não consegue elaborar um posicionamento fixo da hegemonia na sociedade civil ou no Estado. A ambição de Anderson é, através da crítica a Gramsci, atingir as estratégias parlamentaristas e eleitorais típicas do euro-comunismo.

As reflexões de Bobbio, valendo-se de leituras sobre o uso do conceito de sociedade civil na filosofia política, é acentuar a dimensão cultural do conceito de Gramsci em oposição ao economicismo de Marx que teria se fixado em uma definição econômica da sociedade civil. Gramsci, então, é conduzido pela intervenção de Bobbio à condição de teórico da super-estrutura, aliás como alguns marxistas acabaram por entendê-lo. Travada no plano cultural, dos valores, a luta pela hegemonia sem questionar os fundamentos econômicos e de poder do Estado capitalista, ganharia então uma projeção conciliável com um liberalismo social.

Se é rico e útil para a cultura petista retornar ao conceito de hegemonia é exatamente porque ele foi construído com um estatuto categorial autônomo, isto é, em diálogo e ruptura com Lênin e, em outra medida, porque ele foi concebido exatamente como a necessidade do marxismo se tornar plenamente um princípio antagonista ao liberalismo. Isto é, Perry Anderson e Norberto Bobbio, em sentidos opostos, ao dissecar analiticamente Gramsci a partir de seus próprios pressupostos, acabam por fechar as portas ao entendimento do conceito de hegemonia segundo o próprio campo teórico de Gramsci.

Ora, em Gramsci, o conceito de hegemonia centraliza todo um campo conceitual e, nesta condição, é enriquecido pelas várias reflexões deste campo teórico. Há, pelo menos, cinco dimensões chaves desta relação a serem esclarecidas.

Em primeiro lugar, a superação no pensamento maturado de Gramsci das concepções deterministas do marxismo e a elaboração do marxismo como filosofia da práxis. Isto permite a ele entender que o socialismo não resulta diretamente das contradições do capitalismo (crítica do economicismo) nem pode ser visto como uma conseqüência direta da consciência de classe proletária (o marxismo não pode ser reduzido a uma sociologia das classes). Está restabelecida, plenamente, pois, no campo do marxismo, a autonomia da política como cultura a ser formada em relação imanente (isto é, não externa ou arbitrária) com as contradições da sociedade capitalista. A hegemonia está no centro por causa desta conquista metodológica.

Em segundo lugar, a identificação que o liberalismo como uma religião moderna da liberdade é o princípio hegemônico do capitalismo e que o marxismo deveria se conceber, em suas próprias palavras, em um diálogo irônico com o grande filósofo Benedetto Crocce, como uma heresia da religião moderna da liberdade. Neste sentido, o liberalismo como princípio de solda do Estado no capitalismo é um princípio de civilização, isto é, organiza todas as esferas da vida social, a economia, a cultura, as instituições do Estado e da sociedade civil. Para se tornar hegemônico, o marxismo deveria se desenvolver no sentido de um princípio de civilização alternativo ao liberalismo.

Em terceiro lugar, o retorno à polêmica Marx-Hegel sobre o Estado, permite a Gramsci pensar a relação entre Estado e sociedade civil não como campos separados e em oposição (como reza o liberalismo) mas como compondo uma unidade tensa, ou na teoria hegeliana, um Estado integral ou ético-político. O princípio ético político é exatamente o que estabelece a unidade em tensão entre a sociedade civil e o Estado. É por não trabalhar com este diálogo que Perry Anderson se confunde. Na concepção de Gramsci, o processo de transição para o socialismo implica em desenvolver um novo Estado a partir de um princípio hegemônico alternativo, estabelecendo-se uma nova relação entre uma sociedade civil ampliada e um Estado restringido em suas funções coercitivas. Esta noção é, então, fundamental para pensar um princípio democrático de transição ao socialismo.

Em quarto lugar, Gramsci trabalha com um conceito anti-iluminista ou racionalista de construção da hegemonia, ampliando ou praticamente universalizando o conceito de intelectual. É o que permite a ele trabalhar as noções de senso comum, bom senso, cultura popular, antevendo a expansão do marxismo como novo princípio de civilização como a soma de um Renascimento + Reforma protestante, isto é, que cultivasse o princípio humanista erudito do primeiro e a dimensão de reforma moral de massas do segundo. O socialismo passa a ser co-extensivo às dimensões nacional-populares, superando-se ao mesmo tempo, visões elitistas ou vanguardistas da política e visões populistas ou messiânicas.

Em quinto lugar, ser hegemônico é liderar em meio à diferença e ao heterogêneo. O princípio de hegemonia mais forte é exatamente aquele que consegue integrar em si o maior número de visões e valores em perder a coerência, devendo ser capaz até de integrar “trechos” ou conquistas históricas progressivas do princípio hegemônico antagonista. É evidente a importância desta noção, portanto, para um princípio pluralista de socidedade socialista.

O conceito de hegemonia, assim pensado, faz perguntas à cultura petista: no Brasil, qual a força e enraizamento histórico do liberalismo? Como desenvolver um novo princípio estatal a partir de um princípio de civilização alternativo a ele e em fusão com os valores e a cultura popular? Como pensar, enfim, o processo histórico da construção democrática da transição ao socialismo a partir de dentro e de fora do Estado, apoiando-se e ao mesmo tempo superando no sentido democrático, as suas instituições?

JG

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