O casaco de MarxUma vez, em um seminário, a filósofa Marilena Chaui chamou a atenção sobre a vida que há por detrás das grandes obras, os imensos desprendimentos de êxtase e sacrifício que a criação de um novo conhecimento para a humanidade exige. A leitura do pequeno e belo livro “O casaco de Marx. Roupas, memória e dor”, de Peter Stallybras (Belo Horizonte, Editora Autêntica), traz de volta este pensamento.

O livro nos coloca dentro do lar dos Marx nos anos 1850 quando do exílio em Londres. Como relembra, seu biógrafo David Mclellan, a partir de um relatório de um espião prussiano, Marx vivia no outono de 1852 em um dos piores quarteirões de Londres. Submetidos às mais agudas carências, os Marx vão nestes anos se valer recorrentemente da penhora dos objetos familiares e de uso pessoal, uma prática generalizada de sobrevivência na classe operária inglesa da época.

Em certas conjunturas mais difíceis, a prática do penhor nos bairros operários tinha um ciclo semanal: usa-se a roupa no domingo e se penhorava-a na segunda-feira para retomá-la no fim de semana seguinte. Nos casamentos operários, o anel era valorizado pois este era um item provavelmente penhorável e era comum as lojas de penhores serem cenários de despedidas dramáticas de objetos assim tão íntimos e estimados.

Como nos conta o autor: “Em 1850, Jenny Marx penhorou objetos de prata em Francfurt e vendeu móveis em Colônia. Em 1852, Marx penhorou seu casaco de inverno para comprar papel para poder continuar a escrever. Em 1853, “tantos de nossos objetos absolutamente essenciais tinham feito o seu trajeto para a loja de penhores e a família tinha ficado tão pobre que, nos últimos dez dias, não se encontra um centavo em casa.” Em 1856, para financiar a mudança para a nova casa, eles precisaram não apenas de toda a ajuda de Engels, mas também penhorar algumas posses domésticas. Em 1858, em outro período de dramática crise financeira, Jenny Marx penhorou seu xale e, no final do ano, ela está afligida com cartas de cobrança de seus credores e foi forçada a “fazer excursões às lojas de penhores da cidade”. Em abril de 1862, eles deviam vinte libras do aluguel e tiveram que penhorar as roupas das filhas e de Helene Demuth, bem como as suas próprias roupas. Eles as recuperaram mais tarde, na primavera, mas tiveram que penhorá-las, de novo, em junho. Em janeiro do ano seguinte, além de lhes faltar alimentação e carvão, as roupas das filhas foram, outra vez, penhoradas e elas não puderam ir à escola. Em 1866, a família estava, outra vez, em uma situação aflitiva, tendo penhorado tudo que era possível e Marx não podia comprar papel para escrever.”

Certo sábado à noite, ao tentar penhorar talheres de prata, Marx foi parar na delegacia: “Noite de sábado, judeu estrangeiro, roupa desordenada, cabelo e barba grosseiramente penteados, bela prata, timbre nobre – evidentemente, uma transação, de fato, bastante suspeita. Assim pensou o dono da loja de penhores a quem Marx se dirigiu. Ele, portanto, deteve Marx, com base em algum pretexto, enquanto chamava a polícia. O policial teve a mesma opinião que o dono da loja de penhores e levou o pobre Marx para a delegacia de polícia. Ali, outra vez, as aparências jogavam fortemente contra ele. ..Assim Marx recebeu a desagradável hospitalidade de uma cela policial enquanto a sua ansiosa família lamentava seu desaparecimento”.

Eleanor Marx, a filha, lembra que o pai contava uma fábula maravilhosa de um tipo chamado Hans Rockle, dono de uma loja de brinquedos, que, por não conseguir pagar suas contas, tinha que se desfazer de seus brinquedos mais fantásticos. Os brinquedos, na fábula de Marx, após muitas aventuras, retornavam sempre à loja de Hans Rockle. Os pais de Eleanor tinham visto antes dela nascer oficiais de justiça entrar em sua casa e levar tudo, “inclusive os melhores brinquedos que pertenciam às filhas”, Jenny e Laura, que ficaram em lágrimas por causa da perda.

Quando o casaco de Marx estava na loja de penhores durante o inverno, ele não podia ir ao Museu Britânico. Sem ir ao Museu Britânico, ele não podia realizar a pesquisa para “O Capital”. Todo o primeiro capítulo de “O capital” traça as migrações de um casaco, visto como uma mercadoria, no interior do mercado capitalista. Coincidência?

“Penhorar um objeto é desnudá-lo da memória”, escreve o autor, “pois somente um objeto desnudado de sua particularidade histórica pode se novamente se tornar uma mercadoria e um valor de troca”. E, ao final, conclui: “Tornou-se um clichê dizer que nós não devemos tratar as pessoas como coisas. Mas trata-se de um clichê equivocado. O que fizemos com as coisas para devotar-lhes tal desprezo? E quem pode se permitir ter este desprezo? Por que os prisioneiros são despojados de suas roupas a não ser para que se despojem de si mesmos? Marx, tendo um controle precário sobre os materiais de sua autoconstrução, sabia qual era o valor de seu próprio casaco”.