Esse é um tema difícil, sobretudo se queremos extrapolar os marcos nos quais ele já está colocado. O conceito de participação política tem sido hegemonicamente utilizado para tratar da participação nos espaços da democracia representativa, e como corolário da participação que se realiza através dos partidos políticos. Por outro lado a Reforma Política também tem sido tratada, sobretudo, como relativa à democracia representativa, aos partidos e com foco no sistema eleitoral.

Portanto, extrapolar esses dois marcos requer um certo esforço e também um risco de seguir por um caminho que não está, já de saída, assegurado.

No entanto, acho importante tentar essa errância, porque minha questão é a seguinte: quais ações e reflexões políticas podemos colocar em prática neste processo da Reforma Política que nela impactem e extrapolem para além dela. Isto é, para o movimento feminista essa é uma ocasião histórica de mobilizar, pautar debates, estabelecer alianças, enfrentar conflitos de forma a se colocar como sujeito no processo da Reforma e ao mesmo tempo pensar para além disso os desafios políticos que o feminismo deve enfrentar para avançar na participação política das mulheres, que com certeza não estarão realizados, nem poderão se encerrar no âmbito dessa Reforma. Ela poderá de alguma maneira contribuir para um processo que requer uma revolução mais longa e permanente para democratizar a democracia. A mobilização e a reflexão em curso podem ser elementos de acumulação de forças para enfrentar o contexto atual e para construir novas estratégias. Por isso meu objetivo aqui não é o de construir um panorama nem nomear os fatos históricos que envolvem a participação das mulheres mas levantar questões que suscitem um debate para ação feminista no atual contexto. Trago alguns pontos – breves reflexões – como contribuição para o debate.

Para as mulheres, essa Reforma Política se realiza em um contexto absolutamente marcado pela desigualdade das relações entre homens e mulheres em todas as dimensões da vida social e de maneira particular, na esfera da política, que é o nosso ponto aqui. Os homens são hegemônicos nos espaços de poder, nos partidos, nos movimentos sociais mistos. E mesmo quando as mulheres são majoritárias, o poder é hegemonizado pelos homens. No movimento sindical, que considero parte dos movimentos sociais e que com certeza constitui uma força política com expressão muito própria, isso também acontece.

Para o feminismo se colocam muitas questões. O feminismo tem uma grande conquista, do meu ponto de vista, que é a instituição das mulheres como sujeito. O feminismo é o movimento que mais contribuiu para a ruptura com a perspectiva do sujeito único da história, e essa é uma questão política estratégica. Por outro lado, colocou em questão a ordem dominante ao expor criticamente a dominação e a exploração das mulheres neste sistema. Claro que o feminismo tem várias correntes, e dentro delas algumas confluências, fronteiras mais rígidas e outras mais borradas, mas estou tomando como minha referência do feminismo as correntes políticas que estão embasadas na teoria crítica ao sistema capitalista e patriarcal, e comprometidas com as lutas anti-racista e contra a homofobia. Mas essa não é uma questão que eu vou tratar aqui, ficam apenas algumas observações.

A superação da desigualdade das mulheres e os direitos das mulheres são hoje causas legitimadas na sociedade mas essa legitimação não é entendida da mesma forma por todas as correntes políticas e teóricas, evidentemente. Do ponto de vista de muitos setores dentro e fora do feminismo, essa legitimação é um ganho paulatino e sem contradições. Para outros, essa legitimação deve ser tomada como um momento de acumulação de forças para mostrar as contradições e avançar dialeticamente nos processos de transformação. E é nessa última perspectiva que eu acho que deve ser colocada a questão da Reforma Política.

Se pensarmos a Reforma só como uma oportunidade de abrir mais espaço para as mulheres individualmente ocuparem espaços de poder nos parlamentos, nos governos e nos partidos, será uma perspectiva que não questionará os marcos que estão dados na mídia, no parlamento, na maioria dos partidos, e mesmo nas análises acadêmicas que aparecem via imprensa e outros meios.

Mas se pensarmos a Reforma a partir das contradições do contexto social e da relação entre feminismo e poder político com certeza iremos mais longe no questionamento.

A relação com os partidos políticos neste debate é fundamental, uma vez que são eles os sujeitos condutores do processo, e, em última instância, aqueles que definirão os resultados. A correlação de força exige uma imensa capacidade de mobilização dos movimentos sociais para interferir nesse processo, e os partidos serão aí também os catalizadores de toda ação voltada para os trabalhos no Parlamento.

O movimento feminista contemporâneo nasce dentro de um processo geral de radicalização da esquerda, dos movimentos de contracultura, e com uma forte crítica às formas autoritárias e hierárquicas da política. Os partidos de esquerda radical tinham como perspectiva, nesse contexto, a revolução, a tomada do poder etc. O movimento feminista criticava os partidos de esquerda mas se alinhava na sua perspectiva insurreicional no sentido de uma ruptura radical como meio de superação do antagonismo com a ordem estabelecida. Mas ainda assim, com críticas ao método da prática política definida como revolucionária. O movimento fazia uma defesa radical da autonomia, uma crítica muito forte ao conceito de poder por este estar sempre pensado como sistema de hierarquia e mando. As feministas estavam no movimento, e muitas também estavam nos partidos. Havia um acirrado debate sobre a dupla militância x autonomia, os conflitos eram grandes, mas o debate era vigoroso e estratégico para os dois campos, do partido e dos movimentos. Superada a perspectiva inssureicional dos partidos de esquerda, a partir dos anos 1980, todos eles, ou pelo menos a maioria, tomou o caminho da democracia representativa como forma de alcançar o poder, e a crítica à democracia burguesa ou liberal, representada nessa forma de democracia, foi perdendo a densidade, e hoje praticamente inexiste, ou é incipiente. Quanto ao feminismo como movimento, as questões da participação e do poder também não estão, de certo, inteiramente redefinidas.

A questão do poder não foi recolocada do ponto de vista teórico-político como um debate no interior do próprio movimento feminista, isto é, entre as diversas correntes ou pelo menos entre as diversas articulações, e neste ponto estou me referindo ao Brasil. O debate entre feministas nos partidos e feministas no movimento autônomo perdeu espaço, e se é feito, não tem qualquer impacto sobre as estratégias dos partidos ou dos movimentos, pelo menos não temos qualquer referência pública sobre isso.

De outro lado, o movimento feminista é publicamente cobrado a mostrar resultados na ocupação dos lugares de poder pelas mulheres. Isso se faz, em geral, a partir de uma visão sobre participação política apenas como aquela feita através dos partidos para ocupar os espaços do poder no sistema institucionalizado, que não levam em conta a importância da organização das mulheres como movimento, nem tampouco suas estratégias e objetivos. Aliás, esse é um problema sério sobre participação política e poder que nos leva à relação entre política e produção de conhecimento.

Dentro do movimento feminista a questão das mulheres pode ser colocada a partir de várias posições, sem uma precisão clara quanto a definição teórico-político. A questão das mulheres pode aparecer como suprapartidária; suprapartidária dentro do campo da esquerda, ou ainda ser defendida como suprapartidária em geral. Essa e outras questões deveriam constituir pontos para a construção de alianças, no movimento e entre movimentos e partidos. Dentro dessa variação, muitas vezes não é possível distinguir quando se trata de um método de acumulação de forças e luta por hegemonia ou quando se trata de um princípio político feminista

Para mim, uma estratégia fundamental de poder é o fortalecimento do movimento de mulheres. É pelo crescimento e radicalização do movimento que a questão do poder se coloca, para alcançá-lo, para transformá-lo. Movimento forte é poder, e aliança entre feministas dentro dos partidos e nos movimentos é estratégica para defesa das bandeiras do movimento. Mas, sobretudo, é também uma forma de fortalecimento das mulheres no interior dos partidos.

É possível enfrentar essa Reforma sem construir alianças no interior do movimento feminista com outros movimentos sociais e com os partidos? Para isso temos que construir os mecanismos de relação democrática entre partidos e movimentos, e ainda, no interior do próprio movimento. Este seminário é uma contribuição nesse sentido.

Para o feminismo, a democracia direta sempre foi considerada como uma questão de organização da prática política, mas também como uma questão teórica sobre a perspectiva de transformação que deve ser levada. As mulheres estão massivamente nos movimentos sociais, nos mecanismos de democracia participativa. De um ponto de vista teórico-político eu defendo que sem fortalecer esses três níveis, representativa, direta e participativa, não há como democratizar a democracia. Mas indo além, o grande desafio é o fortalecimento da Democracia Direta e Participativa, por que, assim, se estende o processo de participação, e se cria bases para um processo mais profundo de transformação. A própria democracia representativa não conseguirá avançar sem um movimento político mais intenso que extrapole o sentido da luta política para além do período eleitoral e supere esse sistema no qual uma minoria tem acesso ao poder de decisão e a maioria com direito ao voto que delega esse poder, é totalmente subtraída dos meios de participação nas decisões políticas. Como se na relação eleitor/a e eleitos/as, através do voto se esgotasse toda capacidade de luta e resistência social. Sendo essa relação candidatos/as x eleitores/as intensamente mediada pelo poder econômico e pelos meios privados de comunicação os quais fazem parte desse poder econômico.

No Brasil e nos países ocidentais em geral, a demanda por cotas, e por paridade, entre homens e mulheres exige uma aprofundamento da reflexão sobre “os desafios e as escolhas políticas do feminismo atual” (Varikas). Segundo Varikas, a demanda por paridade na França e as discussões que levanta, trazem para o âmago do debate político uma das contradições mais flagrantes da democracia histórica: a incapacidade manifesta, apesar de ter sido instituída a igualdade de direito e do sufrágio universal, de integrar, no âmbito da democracia representativa a metade da população formada de cidadãs.

As experiências de democracia direta no Brasil, através de referendo, plebiscito, consulta popular, são inexistentes ou raras e quando aconteceram foram extremamente instrumentalizadas pelos setores que detém o poder sobre os processos da democracia representativa por meio da grande imprensa. Nestes processos os movimentos sociais e o movimento feminista em particular mesmo tendo tomado posição não conseguiram ou não se propuseram a ter uma ação de impacto no processo de debate. A democracia participativa, tão importante no final dos anos 1980 como perspectiva de democratização do processo político brasileiro, resiste a duras penas, e em algumas casos está capturada pelos interesses do poder executivo, e em outros está restrita como campo de decisão a questões ou a definições de políticas periféricas que envolvem o uso de recursos destinados a pequenas obras nas áreas pobres das cidades. Experiências importantes existem, e as mulheres participam ativamente desses processos, porém, mesmo quando consideradas exitosas essas experiências de democracia participativa são de pequeno alcance em termos de capacidade de decisão e apesar da presença massiva das mulheres, há desigualdade de poder com os homens.

No entanto considero que é um compromisso histórico do feminismo a defesa de formas mais diretas de participação política e mais democratizadas de exercício de poder. A idéia da esfera política como uma espaço a priori da igualdade é uma visão liberal e além disso formalista da igualdade. Mas é sobretudo uma falsa idéia de igualdade.

Como estamos tratando de relações sociais e políticas, não é o caso de buscarmos apenas nos espaços da participação política as razões da manutenção de tamanha desigualdade. É necessário compreender a força das estruturas que sustentam e reproduzem as desigualdades de gênero, as condições sociais de acesso à esfera política.

Quem está na esfera pública, tem necessidades privadas. São as mulheres, no modelo capitalista de duas esferas dicotomizadas, as responsáveis pela satisfação dessas necessidades. Portanto, estando ou não no mercado de trabalho e na atividade política, as tarefas domésticas continuam sendo, basicamente, de sua responsabilidade. A dupla jornada funciona concretamente como um fator que bloqueia ou dificulta o acesso das mulheres à esfera pública. A superação desse impedimento tem sido historicamente garantida na relação entre as próprias mulheres, que através de diferentes tipos de relações produzem os meios que garantem, com mais ou menos dificuldades, os deslocamentos entre esfera privada e esfera pública. Portanto, para pensar a participação política deve-se levar em conta que as mulheres além de diferentes, como ressaltam as correntes pós-modernas, são também desiguais.

Quando se trata de mulheres pobres, que no caso brasileiro são majoritariamente mulheres negras, a falta de recursos materiais aliada a outros fatores, como a violência sexual e doméstica, torna ainda mais difícil o exercício da cidadania política das mulheres. Para se pensar em uma esfera política igualitária é importante pensar no acesso a essa esfera pública, caso contrário as desigualdade e discriminações existentes nas sociedades vão funcionar como impedimentos invisíveis e a dificuldade de participação pode ser percebida como um atributo das mulheres. Isto é, a desigualdade social, perversamente se transforma em um déficit do sujeito.

A história desse país é marcada por profundas desigualdades sociais e teve como elemento central na formação do poder político burguês que instituiu o Estado Nacional, o ideário positivista que justificou, através de argumentos naturalizadores da vida social, as formas de dominação exercidas sobre as mulheres, sobre a população negra e as classes pobres. A manutenção da pobreza foi uma prerrogativa dos modelos de desenvolvimento econômico que se sucederam ao longo dos tempos, os quais estiveram sempre sustentados em formas de exploração de classe, de raça e de gênero. O Brasil ainda é um dos países com maior índice de concentração de renda do mundo.

Elementos deste processo histórico estão presentes até hoje em todas as dimensões da sociabilidade em nosso país. São exemplos disso os interesses patrimonialistas que tiveram grande peso na conformação do Estado Brasileiro e ainda influenciam relações políticas e a presença majoritária de mulheres e, sobretudo, de mulheres negras, nos estratos mais pobres da população. A própria relação entre exploração sexual das mulheres e o exercício do poder foi desde a origem da colonização um mecanismo da violência patriarcal extremamente utilizado, e que até hoje se reproduz através dos “modernos” meios capitalistas de mercantilização do corpo das mulheres. Com essas questões quero também ressaltar a relação entre economia, cultura e política como dimensões indissociáveis.

Se as relações de poder estão presentes em todas as dimensões da vida social, é estratégico pensar que o acesso à participação política das mulheres se configura, ela mesma, como um campo de luta para o movimento de mulheres.

Questões Finais

Considero, portanto, que da organização original (lembrando que tomo os anos 60 do século XX como marco do feminismo contemporâneo), que tinha como objetivo o confronto com a “velha ordem social” sem mediações ou metas, o movimento feminista tem hoje uma responsabilidade historicamente adquirida de construir uma democracia na qual as mulheres participem integralmente. Isto implica, inclusive, em reconsiderar os significados dos próprios conceitos de cidadania e democracia.

Novas grades de análises que não encaixem a diversidade dos processos políticos dentro dos modelos teóricos clássicos são necessárias. Que rompam com um modelo teórico que só considera a participação a partir dos partidos e dos mecanismos legais, e só aí encaixa a participação das mulheres, e, geralmente, de forma descritiva, deixando de fora as batalhas cotidianas que as mulheres lutam desde as aldeias mais remotas até as grandes manifestações mundiais. E essas ficam fora do escopo. Além disso, muitas vezes as mulheres aparecem como personagens, ou como números, que ocupam lugar nas estruturas políticas, mas as análises não dão conta das relações sociais e das estruturas que sustentam a desigualdade apontada nos próprios dados. São dados e estudos importantes, claro, mas insuficientes para sustentar as necessidades de um projeto político de emancipação das mulheres. A produção de conhecimento é uma dimensão fundamental do poder. Aí também pode haver enquadramento ou transformação. É necessário construir categorias de análises que tornem mais inteligíveis os processos políticos conduzidos pelo movimento de mulheres e outros movimentos sociais, os quais articulam outras formas de organização e participação, como também produzem visões críticas a forma hegemônica de exercício do poder político.

A filosofa Françoise Collin (1992) assinala que de uma maneira geral, o acesso dos/as recém-chegados/as à cidadania implicará sempre na redefinição da cidadania, ela mesma, e do espaço político-social. Segundo ela, uma entidade já constituída não pode pretender assimilar puramente e simplesmente as/os recém-chegadas/os, sem se deixar questionar por elas e por eles. Concluindo dessa forma, que o partilhamento não é, jamais, puramente adicional. Isto é, que a história não se realiza por simples adesão.

No Brasil, o movimento feminista contemporâneo se organizou ainda sob o regime militar, e está, desde a sua origem, envolvido no processo de democratização do país. Neste contexto, o movimento feminista se situou, historicamente, no campo da esquerda. Isso significa que sua perspectiva de luta sempre deve ser a da transformação social. Considero que o feminismo foi e deve continuar sendo revolucionário no combate a ordem dominante e avançar na reflexão crítica que pode orientar as estratégias políticas para o enfrentamento dessa ordem.

Parece que ainda não houve o tempo, mas as condições necessárias parece que estão dadas para que as feministas se situem frente aos novos desafios da democracia política, para daí pensar a relação entre a prática revolucionária de origem – antagonista e insurreicional – e a prática de confronto e negociação dos conflitos na esfera pública como um processo que articula as várias formas de democracia política. O desafio é manter a radicalidade ao produzir reformas.

Acho que a prática feminista pode aportar uma grande contribuição ao clássico debate sobre a relação entre reforma e revolução. Pois desde a origem levou para essa discussão uma contribuição importante. Por exemplo, sempre apontou as insuficiências e desvios da democracia representativa e sempre mostrou apego à democracia direta. A questão do poder, que na origem foi negada por uma grande maioria de correntes feministas, enquanto aspiração ou como instrumento da prática política deve estar, e está, hoje sendo repensada. Porém, deve ser repensada criticamente, e segundo minha visão, sem aceitar os meios de lidar com o poder que predominam no sistema político em vigor.

. Collin, Françoise, La démocratie est-elle démocratique? in: La Societés des Femmes, Les cahiers du Grif, Bruxelles, Editions Complexe, 1992
. Varikas, Eleni; Refundar ou Reacomodar a Democracia? Reflexões críticas acerca da paridade entre os sexos. In: Estudos Feministas, N.1/96, IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 1996

*Maria Betânia Ávila é socióloga, coordenadora do SOS Corpo e membro da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB)

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