Uma estratégia de refundação do partido
Por Paul Singer
1. Se quisermos refundar o PT, teremos de rever o seu passado e projetar o seu futuro. As duas tarefas podem ser feitas simultaneamente porque o futuro que desejamos não decorre do seu passado. Precisamos rever o passado do PT para descobrir as causas e as circunstâncias que nos levaram à profissionalização da direção, à priorização da vitória eleitoral a qualquer custo, à disputa do voto apolítico e finalmente à adoção de todas as táticas dos Partidos convencionais, do uso da marketagem à captação de contribuições de empresas e empresários e finalmente ao delito. Esta revisão do passado visa armar o partido refundado contra qualquer tentação de repeti-lo.
2. Se queremos refundar o PT como um partido socialista, temos de traçar o perfil do socialismo que almejamos e as vias econômicas, políticas e sociais que imaginamos trilhar para chegar a ele. Seria, neste contexto, possível vislumbrar o papel do partido, ao lado dos movimentos sociais, das ONGs, das organizações de classe, no processo (provavelmente multissecular) de construção do socialismo.
3. Os clássicos enxergavam o socialismo como resultado de duas abolições: a da propriedade privada dos meios sociais de produção (distintos dos meios de produção de pequeno porte, utilizados por indivíduos ou famílias) e do Estado, como instrumento de opressão de classe, por meio da defesa duma ordem opressiva.
4. A abolição da propriedade privada dos meios de produção de grande porte (fábricas, fazendas, supermercados, shoppings, sistemas de transporte, de comunicação, de produção e distribuição de energia etc) já vem sendo feita desde o início da “era ferroviária” na segunda metade do século XIX, mediante a estatização dos serviços públicos (deixando de lado a estatização total dos meios de produção iniciada com a Revolução Russa). No entanto, grande parte dos serviços públicos foi e está sendo reprivatizada em muitos países e no Brasil também, desde o final do século passado.
5. Empreendimentos de grande porte,que não constituem monopólios naturais, estão sendo socializados mediante sua criação ou apropriação por trabalhadores, que os operam, em geral, sob a forma de cooperativas de produção. Empreendimentos individuais e familiares são socializados em medida crescente sob a forma de cooperativas de compra e venda ou outras modalidades associativas. Desde o início, nos anos 1980, da grande crise social do trabalho no Brasil, estas formas de socialização vêm sendo meios importantes de reinserção produtiva de trabalhadores vitimados por ela.
6. A nossa história recente, assim como a de outros países, mostra que a estatização de monopólios naturais e a socialização de meios sociais de produção já vêm ocorrendo há mais de um século. Certamente, não se trata dum processo linear. É uma das mais importantes frentes de luta anticapitalista, travada simultaneamente no plano político e no plano econômico e social. No plano político por partidos e no plano econômico e social por movimentos sociais, entidades de classe etc.
7. A abolição do Estado como instrumento de opressão de classe foi iniciada pelas revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII, que inventaram o estado de direito, submetido a representantes eleitos pelos cidadãos. A partir destas conquistas, começou a grande luta pelo sufrágio universal e pela democracia, que alcançou vitórias decisivas no século passado, e continua sendo travada.
8. A abolição do Estado opressor não acontece de uma só vez, como as visões cataclísmicas e messiânicas do socialismo imaginavam. Trata-se dum processo, no qual a destruição das estruturas opressivas se combina necessariamente com a construção de estruturas de crescente democratização das funções públicas. Neste processo, as tarefas de eliminação de estruturas opressivas parecem hoje se dirigir principalmente para a legalização de comportamentos sociais antes estigmatizados e reprimidos. As lutas pelos direitos humanos são fundamentais neste contexto.
9. A tarefa que hoje parece fundamental na construção política do socialismo é a invenção de instituições que ampliem os espaços de prática da democracia direta e participativa e que aperfeiçoem a prática da democracia representativa. A urgência duma reforma política, que a atual crise coloca de forma dramática, deveria ser encarada por um PT em refundação no contexto da construção política do socialismo.
10. Convém explicitar que esta concepção de socialismo está de acordo com a experiência histórica tanto da evolução do capitalismo, que já atravessa cerca de cinco séculos e ainda não se esgotou, como da evolução do estado de direito. Revoluções políticas são episódios, algumas vezes cruciais, cujo papel só pode ser captado se forem contextualizadas no processo revolucionário mais amplo em que as grandes transformações se gestam e vêm à luz. A luta pelo socialismo já tem mais de 200 anos, em plano mundial, e ela de fato vem produzindo mudanças de grande alcance, que não são irreversíveis, mas podem se revelar cumulativas numa perspectiva maior de tempo.
11. Trata-se dum processo de tentativa e erro, cuja interpretação teórica é frágil, dadas as limitações fatais de nossos conhecimentos, mas que é essencial para quem deseja atuar no mesmo. Para lutar pelo socialismo – e não meramente pelo aperfeiçoamento do capitalismo + democracia – é indispensável ter uma visão do mesmo, para servir de norte aos que procuram o rumo duma transformação abrangente.
12. Em suma, precisamos conceber uma divisão de trabalho entre as diversas organizações que visam ao socialismo: partidos, movimentos sociais, sindicatos, ONGs etc. Porque na refundação do PT será necessário redefinir as suas relações com estas outras entidades e sobretudo reservar espaços de participação das mesmas nos centros de decisão do partido, se este deve ser (como penso que deve) o braço político delas.
*Paul Singer é economista, professor da USP, secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego e autor de Introdução à Economia Solidária (Editora Fundação Perseu Abramo).