Socióloga defende aprofundamento das políticas sociais e mudanças na política econômica

Professora da Universidade de São Paulo admite caráter assistencialista do Bolsa Família, mas defende o projeto. Para ela, só ‘revolução’ poderia gerar mudanças estruturais no país.

por Bia Barbosa – Carta Maior*

SÃO PAULO – Na opinião da socióloga Maria Victoria Benevides, a democracia é o regime político fundado na soberania popular e no respeito aos direitos humanos. Para ela, a definição pode ser breve, mas agrega democracia política e democracia social, duas questões centrais para o debate deste segundo turno que se aproxima. Sempre crítica do governo Lula, Maria Victoria não se intimidou com a posição de presidente que ocupou na Comissão de Ética Pública do governo federal. No ano passado, em meio à crise do mensalão, em uma entrevista à Carta Maior (leia “Superação da crise exige mudança na política econômica”), ela já defendia mudanças radicais em algumas opções adotadas pela equipe de Lula.

Continua defendendo. No entanto, é contundente ao afirmar que, neste segundo turno, há duas candidaturas muito diversas, com concepções de Estado opostas. Em nova conversa com a Carta Maior, Maria Victoria Benevides afirma que é preciso exigir do governo a punição dos responsáveis pela corrupção e um aprofundamento das políticas sociais, mas considera que um governo dos tucanos e do PFL seria uma opção desastrosa para o país. “O PSDB não tem moral pra denunciar a falta de ética de ninguém”, disse ela, que dá aulas na Universidade de São Paulo. Leia abaixo os principais trechos desta conversa.

Carta Maior – Como a senhora avalia cada uma das opções que temos neste segundo turno, com base nas experiências de governo do PSDB e do PT e desses quatro anos de governo Lula?
Maria Victória Benevides – Em primeiro lugar, queria dizer que temos a obrigação de tomar um lado, de não ficarmos neutros neste segundo turno, a não ser que a opção fosse entre Hitler e Stalin. Mas, num momento como este, é extremamente importante nos conscientizarmos de que o voto nulo é uma fuga a uma tomada de decisão, principalmente num país como o nosso, no qual a construção da democracia ainda é uma tarefa árdua. Não é possível que se diga que não há escolha, que não há opção, que é tudo farinha do mesmo saco. Isso não é verdade. É preciso ter claro não apenas a figura do candidato, porque ninguém se elege sozinho e, menos ainda, governa sozinha; é importante olhar o que significa um lado e o que significa o outro. Depois dos últimos resultados, e com a exploração de escândalos, tenho ouvido muita gente dizer que não percebe quais seriam as diferenças. Mas isso não é verdade em nenhum ponto de análise. Mesmo para mim, que fui e continuo sendo muito crítica da política macroeconômica do governo Lula, reconheço que há grandes e importantes diferenças entre um lado e outro.

CM – Que diferenças seriam essas?
MVB – Citaria três exemplos que me parecem eloqüentes. O primeiro deles, quando se fala muito dos escândalos e da corrupção para acusar o lado do Lula e valorizar o lado do Alckmin e dos tucanos em geral, deve-se lembrar que, nesses quatro anos de governo Lula, a Polícia Federal se empenhou em mais de 180 operações. A Polícia Federal, a CGU [Controladoria Geral da União] e os órgãos afins tiveram plena liberdade de ação. No dobro do tempo, ou seja, em dois mandatos, o governo Fernando Henrique foi um dos em que se usou com mais força a expressão “engavetador-mór” da República, no caso do Procurador Geral. A Polícia Federal iniciou apenas 28 operações. São oito anos de um lado, com 28 operações; e quatro anos do outro, com mais de 180. Acho que isso já mostra a má-fé daqueles que insistem em caracterizar todo o governo e o partido em função de crimes e delitos, claramente identificados, mas que foram investigados e punidos. Quando se fala que o PT deu um tiro no próprio pé, eu perguntaria: “que imagem é essa de tiro no pé?”. Aqueles mais pragmáticos poderiam dizer “metralhadora no pé” é o governo não interferir no trabalho constante da Polícia Federal. A comparação com os anos anteriores é colossal. E não adianta dizer que a Polícia Federal não trabalhou no governo Fernando Henrique porque não precisou. Basta lembrar a quantidade enorme de casos que surgiram: Sivam, o banco do [Salvatore] Cacciola, o escândalo do Proer e principalmente a compra de votos pra reeleição. Tudo foi rigorosamente abafado. Não apenas a Polícia Federal não se mexeu como as CPIs foram inteiramente abafadas. Num dos casos escandalosos envolvendo o Sivam e um conhecido embaixador, muito próximo a Fernando Henrique, o indivíduo simplesmente foi afastado e premiado com uma embaixada. Essa é uma comparação importante para mostrar a hipocrisia e a má fá daqueles que não vêem diferença ou vêem para valorizar a candidatura da frente PSDB/PFL.

CM – E os outros pontos?
MVB – O outro se refere ao papel do Estado. Os tucanos nunca esconderam, e o PFL menos ainda, sua aversão a um Estado do Bem-Estar Social, um Estado que dê a devida importância a políticas sociais. Eles acham isso “gastança”. E já estão afirmando, através de um de seus mais importantes porta-vozes, o economista Mendonça de Barros, que tem que parar com a gastança, tem que diminuir o Estado, tem que continuar as privatizações. Chegam a falar em privatizações absurdas. Certamente nós sabemos que, no Brasil, quando se fala em parar com a gastança significa bloquear políticas sociais. Outro ponto que poderia ser lembrado se refere à política externa. A frente PSDB/PFL critica fortemente a política brasileira de aliança Sul-Sul, de entendimento e solidariedade com os países emergentes, de integração da América do Sul.

CM – Em relação às políticas sociais, há críticas de que elas seriam assistencialistas e compensatórias, e não emancipatórias. Essa é uma questão específica do Bolsa Família ou é uma concepção empregada no governo Lula como um todo?
MVB –
Eu não conheço ninguém do governo, a começar pelo professor Paul Singer, da Secretaria de Economia Solidária, que não reconheça que Bolsa Família e políticas do gênero são compensatórias. O Frei Betto, que participou desde o início desse projeto, reconhece que o caminho está certo mas que tem que haver um avanço muito grande. O próprio Presidente reconhece isso. Enfim, todos nós, que conhecemos minimamente a realidade socioeconômica e as brutais desigualdades sociais no Brasil, sabemos perfeitamente que só mudanças estruturais começarão a resolver o problema, e não apenas melhorar as conseqüências dessa brutal desigualdade. O que acontece é que mudanças estruturais reais, profundas, no nosso país, ainda com um sistema muito oligárquico, representam uma verdadeira revolução. Temos condição de fazer uma revolução? Não temos. Olhe o exemplo de Salvador Allende. Então me parece razoável exigir do governo um aprofundamento das políticas sociais junto a uma mudança radical na política macroeconômica, que diga respeito ao capital financeiro, à especulação, aos altos juros e que, aí sim, tenhamos uma política decisiva de desenvolvimento, de crescimento econômico. Mas podemos ter uma política de crescimento, uma política industrial que não temos, sem precisar fazer uma revolução brutal. E isso, uma política industrial que leve realmente ao desenvolvimento minimamente sustentável, contará com o apoio dos empresários, principalmente dos menores e daqueles que realmente produzem – e não daquelas 20 mil famílias rentistas que ganham só no capital financeiro.

CM – Como lidar então com a questão do assistencialismo?
MVB –
Como militante e defensora dos direitos humanos, a vida toda me angustiei com essa história de que “não tem que dar peixe, tem que ensinar a pescar”. Em tese, concordo inteiramente com isso. Mas se meus filhos estivessem passando fome, iria querer receber o peixe, sim. Minha tese de direitos humanos é a seguinte: o que acho indispensável para mim tenho a obrigação de achar que é para todos os outros também. E que o Estado é responsável por isso. Ou seja, a sociedade solidária é responsável por isso. Sou inteiramente favorável, até como educadora, que se ensine a pescar. Mas tenho que dar o peixe também. Tem que haver também os meios para uma vida com um mínimo de dignidade, o que inclui esse apoio. É um apoio pequeno, mas para a pobreza brasileira é muito importante.

CM – E isso não é feito pelos governos da oposição?
MVB –
Justamente. Isso não vem sendo feito. Aliás, queria lembrar especificamente do Alckmin, que agora virou “o Geraldo”, o bom moço, o limpo, o ético. Até ontem era amigo íntimo da Daslu, de todo o pessoal enfiado nas “trambicâncias” em São Paulo. Ele é o responsável pelo engavetamento de 69 CPIs na Assembléia Legislativa do estado. Então não tem a menor autoridade para falar em ética e condenar as alianças dos outros, ainda mais depois de estar se aliando ao casal Garotinho, do Rio de Janeiro. Então, em matéria de retificação, é um deboche apresentar essa “santidade do Geraldo”.

CM – A corrupção foi a grande discussão do primeiro turno. O PSDB tem dito que a população que votou no Alckmin deu um voto contra a corrupção. Ao mesmo tempo, os ícones da desonestidade do país foram maciçamente votados e eleitos. Isso derruba essa tese dos tucanos?
MVB –
Primeiro de tudo, o PSDB não tem moral para denunciar a falta de ética em ninguém. Continuo lembrando que o escândalo da compra de votos foi o que existiu de mais grave até hoje. As pessoas costumam dizer “nunca existiu tanta corrupção na República”. Isso não é verdade. A compra de votos foi para fazer algo gravíssimo: uma mudança na Constituição do Brasil. Então eles não têm moral. O Fernando Henrique menos ainda. Ainda mais ele, que patrocinou o seu “engavetador-mór”. Estou convencida de que o povo brasileiro repudia a corrupção, principalmente quando ela está associada a desvio de recursos públicos, que deveriam ir para o próprio povo na forma de políticas públicas. Corrupção tira dinheiro da saúde, do transporte público, da merenda escolar, da habitação popular, do ensino público. Mas isso ainda é pouco politizado no país. Uma grande parcela da população ainda não tem essa consciência política para fazer essa associação imediata. Então, se uma liderança política foi acusada de algum delito, de alguma prática de corrupção, mas se na sua região, no seu bairro, no seu pequeno lugarejo, alguma coisa é feita para melhorar sua vida, essa questão da corrupção tende a ser negligenciada. A classe média confortável – para não falar da classe alta, porque ali muita gente acha que a questão de ética e corrupção é bobagem; se não existisse isso eles não estariam tão ricos e tão bem de vida – encara isso como ignorância das camadas mais pobres do país. Fazem porque não percebem este lado. Para ela, o asfalto de rua, a construção de um posto de saúde, uma merenda escolar não faz diferença nenhuma. Mas para os muito pobres, a diferença pode ser crucial. Não é a toa que ouvimos muito que este é o governo que mais fez pelo povo. Basta comparar um item importante da vida socioeconômica: a cesta básica. Quantas cestas básicas é possível comprar hoje com um salário mínimo e quantas daria pra comprar nos oito anos de Fernando Henrique. Isso faz muita diferença.

CM – Mas isso explicaria o voto nesses candidatos?
MVB –
Não é que as pessoas sejam incoerentes. Pra sabermos isso, seria preciso pesquisas muito especificadas por região, nível de escolaridade, por uma série de variáveis pra ver no que isso influenciou as pessoas a elegerem pessoas como Collor, Maluf e etc. Sabemos que o voto para alguns candidatos foi uma relação de deboche, como foi o caso da eleição de gente como Clodovil. Por outro lado, temos que lembrar que todos os partidos têm candidatos que são muito beneficiados pela máquina partidária ou pelo poder econômico privado ou grupal. Aqueles candidatos que têm uma máquina partidária – que foram dirigentes, que fazem parte da organização burocrática do partido – ou sindical por trás se elegeram. Aqueles que têm um perfil mais ideológico e, por isso, um voto muito disperso não se elegeram, com raras exceções. Essas são questões que todos partidos deveriam dar muita atenção. Mas o PT, como se afirma ainda como um partido democrático e dos trabalhadores, deveria refletir com mais força ainda.

CM – Como a senhora avalia a situação da esquerda brasileira daqui pra frente, suas perspectivas? O que seria preciso pra fortalecer este campo diante de uma possível virada conservadora com a campanha de Alckmin?
MVB –
Eu continuo acreditando – e neste ponto posso ser jurássica – nessa história de direita e esquerda. Aliás, seguindo a linha do Norberto Bobbio, que é tão gostosamente citado pelos tucanos: aqueles que são mais favoráveis ao enfrentamento das desigualdades socioeconômicas e afirmam o papel do Estado nesse enfrentamento se situam na esquerda e aqueles que querem manter o status quo continuam sendo a direita. Na minha opinião, a esquerda hoje tem que levar essa máxima: dar prioridade ao enfrentamento das desigualdades socioeconômicas com muito rigor. Isso significa desenvolvimento econômico com planejamento, com papel do Estado, com uma articulação muito maior entre política e economia. Significa politizar a economia e não economizar a política. É a única saída que vejo para a esquerda. Quando falam de toda essa história de tiro no pé pra cá, tiro no pé pra lá, eu costumo dizer que o tiro foi no coração, com a desmoralização da esquerda. Isso foi fatal principalmente para os jovens. Então se a esquerda quiser avançar, terá que realmente ter um projeto sério e viável de desenvolvimento econômico, com inclusão social, e fazer uma mudança na política econômica, principalmente no que se refere a juros, a Banco Central, etc. E investir pesadamente nos programas de juventude.

CM – Neste momento em que as pessoas estão procurando algumas respostas, este seria um caminho para garantir a reeleição? Afinal, sabemos que as chances de haver uma mudança na política econômica nas próximas três semanas são ínfimas. Como conciliar esse fortalecimento da esquerda como um todo com a necessidade que a candidatura Lula tem de dar respostas para a sociedade?
MVB –
Eu acho difícil, mas acho viável a partir de uma comparação. O governo Fernando Henrique privatizou, inclusive com as jóias da coroa. O que isso trouxe de bom para o país? Melhoraram os índices? Pelo contrário, levaram a dívida pública para a estratosfera. Então é comparar, vamos aprofundar esse caminho. Mas a crítica que sempre fiz ao governo é que há a necessidade de investir seriamente, com recursos que garantam a viabilidade, num projeto de desenvolvimento econômico, voltando àquilo que o Celso Furtado morreu insistindo, que é ter planejamento com participação social, aumentar a participação popular nos processos decisórios. Essa é uma bandeira que o PT deixou cair e que é extremamente importante, que sempre foi de esquerda. Acho que dá pra aprofundar essas questões mesmo em pouco tempo. Não se pode ficar só na questão defensiva em relação à corrupção. É realmente jogar na cara: nós enfrentamos a corrupção assim, demos liberdade para investigação, houve CPI de todo tipo, houve intervenção da Polícia Federal em quase 200 operações, cortamos na carne. E vamos em frente.

CM – Essa comparação de governo seria um caminho pra retomar essa consciência que a população acabou perdendo?
MVB –
Acredito que sim. Mas há outra coisa: a mídia é muito condescendente com o Alckmin. Por causa dessa história do dossiê – que realmente é um absurdo – se esqueceu uma questão importantíssima em qualquer governo: o problema da segurança pública. O governador Alckmin foi um desastre total em relação à segurança pública. Foi neste longo reinado que vicejou o PCC e que a Febem chegou a níveis inenarráveis de desumanidade e ineficiência. As pessoas falavam que esta seria a questão principal das eleições. Agora não. Agora a questão número 1 está dividida entre a Cicarelli e o dossiê. O que é isso?

CM – Há um culpado por essa situação que a esquerda enfrenta?
MVB –
Ninguém é responsável individualmente. O governo errou, o candidato Lula errou. Erros políticos, erros táticos e erros colossais, que são mais do que erros, porque são crimes de pessoas no partido. Acho que o pior erro que persegue a esquerda historicamente é a crença que alguns ainda têm – mais forte do que eu imaginava – na máxima de que os fins justificam os meios e que, em política, a única coisa feia é perder. Acho que há responsabilidade na direção do partido, desde o início do governo Lula, quando passou a privilegiar a luta pelo poder, a disputa pelos cargos, deixando de lado a militância, a organização popular, os movimentos de base de apoio. A luta interna no partido é uma desgraça. É uma luta insana e que levou a muito dos nossos problemas hoje. Estou me referindo à vida partidária e isso me incomoda profundamente. Se o PT não enfrentar isso com radicalidade, vejo muito mal o futuro do partido.

CM – A senhora é otimista para o segundo turno?
MVB –
Acho que as perspectivas para a reeleição são favoráveis. O presidente tomou uma decisão acertada de participar do debate – e essa é mais uma crítica que faço aos tucanos, porque Fernando Henrique não foi a nenhum, então é realmente interessante ver como são dois pesos e duas medidas. Sendo só os dois, é uma chance importantíssima de o presidente expor realmente a diferença, sem ficar na defensiva. Tem que mostrar objetivamente o que foi feito, principalmente para aqueles que sempre foram esquecidos. Esta é uma verdade que temos que reconhecer. E mostrar mais uma vez a diferença entre a visão que se tem do papel do Estado no governo Lula e no governo dos tucanos e do PFL. Então estou relativamente otimista com a eleição, mas estou aflita com um segundo mandato, porque vai ser difícil, sem a menor dúvida. Agora é um momento histórico de enfrentamento, pelo qual temos que passar. Foi extremamente importante a eleição de um líder de origem operária como o Lula para a Presidência da República, um fato histórico importantíssimo para o Brasil e para a construção da democracia brasileira; e a reeleição dele também será. Agora, se vai ser fácil, evidentemente nenhum de nós diria uma coisa dessas. De qualquer maneira, um governo dos tucanos com o “pefelê” é uma opção absolutamente desastrosa para o país.

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