O destino da esquerda
Um desafio para todas as esquerdas, inclusive a esquerda da esquerda: se elas não recompuserem uma frente comum a partir de agora, em função da reeleição de Lula na disputa federal e dos candidatos progressistas nas disputas estaduais, é isto que nela vai virar: coadjuvante de tucano.
Ontem eu assistia os debates na Band quando vi uma cena muito interessante. Quem debatia com os jornalistas era Plínio de Arruda Sampaio, com aquele seu simpático jeito de Papai Noel que emagreceu. Falava da possibilidade de se estabelecer alguma forma de diálogo entre (setores do) PSOL e PT neste segundo turno das eleições presidenciais. De repente entrou em cena o Senador Sérgio Guerra, coordenador da campanha de Alckmin e Plínio foi literalmente deixado de lado pelos jornalistas, que só foram se dar conta da descortesia ao final do programa, quando deram 30 segundos para o candidato do PSOL em S. Paulo finalizar sua intervenção que fora truncada.
A cena foi emblemática e sinaliza um desafio para todas as esquerdas, inclusive a esquerda da esquerda: se elas não recompuserem uma frente comum a partir de agora, em função da reeleição de Lula na disputa federal e dos candidatos progressistas nas disputas estaduais, é isto que nela vai virar: coadjuvante de tucano. A esquerda – toda ela – regressará ao tempo em que críticos de cinema nada politicamente corretos diziam que no faroeste índio era parte do cenário.
Alguns pontos de impacto no resultado:
1) O crescimento expressivo de Alckmin na reta final, sobretudo em S. Paulo, onde pelo visto, ele chegou mesmo a “tirar” votos que poderiam ser de Lula. Não tenho pesquisa a respeito, mas no domingo percebi em conversas variadas que tinha crescido uma narrativa do tipo “é melhor que haja segundo turno”, “não tenho simpatia por Alckmin mas Lula e o PT precisam de uma lição” e por aí vai. A questão aí é se Alckmin vai conseguir capturar este voto migratório, consolidando-o e ampliando seu alcance. Sua candidatura sai do primeiro turno fortalecida porque pode agora galvanizar novamente o PFL e outros setores de direita que não se entusiasmavam antes com ela. E ainda pode também acaudilhar Serra, novamente no papel de coadjuvante de sua candidatura, mas com interesse em se projetar no tucanato contra Aécio.
2) A surpreendente vitória de Jacques Wagner na Bahia, o que equilibrou, do ponto de vista simbólico, as já esperadas vitórias de Serra e Aécio. De quebra, ainda expôs, com outros resultados, a fragilidade das pesquisas em vários estados. E pode marcar o fim de uma época na Bahia, com o declínio do carlismo, que também não conseguiu eleger seu senador preferido.
3) A consolidação da família Gomes no Ceará, e o crescimento petista com a vice-governança; a passagem de Ana Júlia Carepa para o segundo turno no Pará; a surpreendente situação no Rio Grande do Sul, com a primeira derrota de Lula no estado desde 1989 e a eliminação de Germano Rigotto do segundo turno, a ser realizado entre Yedda Crusius e Olívio Dutra. Neste caso repete-se a situação de 2002: entre duas posições cristalizadas (naquela época entre Antonio Britto e Tarso Genro, que superou Olívio nas prévias petistas), o eleitorado preferiu uma terceira opção (que então foi Germano Rigotto).
4) O espeto em que fica o PSOL. É curioso, mas enquanto partido, o PSOL sai mais prejudicado do que o PT no segundo turno que afinal se criou. O voto do PSOL vai migrar em três direções, potencialmente: um resíduo direitista deve completar a migração (ou a volta) para Alckmin; uma parte vai para Lula; e outra parte vai para o voto nulo, abstenção, etc. Ou seja, mal nasceu o Partido periga se esfacelar, o que o prejudica mais do que a cláusula de barreira. Uma opção que o fortaleceria seria, vencendo ressentimentos, o que não é fácil, propor a formação de uma frente de esquerda em apoio a Lula e contra Alckmin, com todas as críticas que poderia fazer, como acenou Plínio. Isto poderia galvanizar parte de sua base e tornar o PSOL de fato um partido com um perfil de esquerda junto à população, desenho que foi prejudicado pela campanha de Heloísa Helena que lançava palavras de ordem à direita e à esquerda. Será possível? Veremos.
5) O PT de S. Paulo sai muito fragilizado da eleição, pelas práticas danosas do “serviço de inteligência” aqui sediado, o que enfraquece o PT nacionalmente numa hora crucial como essa de um segundo turno histórico para toda a América Latina. Não há alternativa: ou o PT se compromete de vez em coibir tais práticas e punir quem nelas insistiu ou ainda venha a insistir ou ele vai, de fato, se tornar uma espécie de sombra, detido por uma cláusula de barreira de natureza ética – e me refiro à própria ética da responsabilidade weberiana, aqui citada em artigo de Bernardo Kucinski. Ou o PT recupera sua estrutura partidária, ou vai continuar neste destino de volta e meia dar de bandeja aquilo que a mídia conservadora e seus arautos tucanos tanto deseja para orquestrar suas campanhas contra Lula (agora) e a esquerda (sempre).
Voltando ao debate da Band, o senador tucano pontuou o que seria uma pauta de seu lado para o segundo turno:
1) A campanha pela “ética”, que, neste caso, só pode vir mesmo assim entre aspas, depois da orgia que foi o governo FHC.
2) A agricultura. (Isso é curioso: de certo modo retoma aquela simbolicamente aquela “vocação agrária” com que a classe dominante resistia ã industrialização antes da Revolução de 1930).
3) A educação (apesar de em S. Paulo a situação ser das mais precárias)
4) Investimento em infra-estrutura (certamente, na minha interpretação, às custas de programas sociais).
5) O propalado choque de “competência” ( que se choca ele mesmo com a situação do sistema presidiário em S. Paulo e o rombo financeiro deixado por Alckmin para Lembo).
Um último lembrete: em 2002, Lula terminou o 1° turno com 46% e Serra com 23%, mas lá havia Ciro Gomes e Garotinho com expressivas votações. Agora a situação está bem mais cristalizada, com 49 x 42. Qualquer movimento é expressivo. Uma coisa é certa, em todo caso: a esquerda tem o destino nas suas mãos. Se estará a altura do desafio é o que vamos ver.
*Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior