O mistério das bombas que queimam
Novas pistas sobre as bombas que a polícia brasileira está utilizando para reprimir manifestações e que podem provocar queimaduras de 3º grau
Que bombas terríveis são essas que a polícia paulista utilizou para reprimir a manifestação estudantil na PUC de São Paulo, na noite de 22 de setembro do ano passado, e que causou horríveis queimaduras nas estudantes Maria Cristina Raduan, Iria Visona e Graziela Eugênio Augusta, que até hoje estão submetidas a tratamento médico para se recuperarem?
Ainda no ano passado, durante o funcionamento da comissão Especial de Inquérito (CEI) aberta pela Assembléia Legislativa de São Paulo, vários depoimentos tomados davam a entender que as bombas utilizadas pela repressão na PUC não eram simples bombas de gás lacrimogêneo ou “de efeito moral” que a polícia vem utilizando nesses últimos anos para reprimir manifestações pacíficas. As queimaduras sofridas pelas estudantes e as descrições das testemunhas deixaram a polícia sob forte suspeita.
“As bombas expeliam fumaças de cores variadas – laranja, branca, preta – e além disso faziam-nos chorar e o nosso corpo arder…” (depoimento do DCE da USP).
“Os policiais nos perseguiram (aos estudantes) histéricos, dando cacetadas e jogando bombas que expeliam gás, outras que soltavam chamas e outras ainda que espirravam outro líquido que queimava a pele…” (depoimento do DCE da PUC).
“A violência foi iniciada quando os policiais começaram a atirar bombas que expeliam gás e provocavam chamas em meio aos estudantes que se encontravam em frente ao TUCA (Teatro da Universidade Católica)…” (depoimento da Associação dos professores da PUC).
Diante desses e de outros depoimentos, a CEI da Assembléia Legislativa conclui: “quanto às labaredas (provocadas pelas bombas), vistas por dezenas de professores e alunos, não foi possível a esta CEI constatar a existência de algum armamento anteriormente ainda não utilizado, mas prevalece suspeitas que exigiriam a vistoria dos novos tipos de bombas adquiridos pela Polícia Militar”. E mais adiante: “As queimaduras ocasionadas pelas bombas sobre uma das manifestantes (…) demonstram gravíssimos ferimentos por ação continuada de chamas provindas de “uma bomba preta que soltava faíscas” (depoimento).
A estudante Maria Cristina Raduan, a mais atingida, confirmou na semana passada a Movimento que seu estado de saúde logo após ter recebido as queimaduras se agravou bastante “porque os médicos não sabiam a origem das queimaduras e não fizeram as raspagens desde o começo”. Disse ainda que é um absurdo a polícia afirmar que as bombas utilizadas não produziam estilhaços pois “durante as operações os médicos descobriram estilhaços em minha perna. Isso agravou o caso, porque esses estilhaços queimaram profundamente a parte interior da perna e foram apodrecendo lá dentro”.
Diante dessas evidências, o coronel Erasmo Dias continuou sempre a sustentar que a polícia havia utilizado na PUC “as mesmas tradicionais bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral” e que nenhum novo tipo de bomba havia sido empregado. E em ofício dirigido ao ministro da Justiça, em 28 de setembro do ano passado, o governador Paulo Egidio confirmou a informação e chegou ao acinte de elogiar a prudência da polícia paulista: “Mesmo quando houve necessidade de confronto, a Polícia se fez presente observando o respeito devido à população, armada apenas com os recursos tradicionais de distúrbios, isto é, gás lacrimogêneo e água …”.
Ha duas hipóteses: em ambas os efeitos são terríveis
Mas as coisas não parecem tão simples. Preocupadas com os terríveis efeitos causados pelas bombas nas estudantes, um grupo de mães conseguiu enviar para a Suécia um pedaço da roupa carbonizada de Cristina Raduan e um invólucro usado de uma bomba de gás lacrimogêneo, encontrado na PUC após a invasão da polícia. Na Europa, Gerald Thomas, do escritório da Anistia Internacional de Londres, acompanhou os exames que puderam ser feitos no material enviado.
Segundo declarações de Gerald Thomas a Movimento, a análise química das roupas de Maria Cristina Raduan, feita por peritos em Estocolmo, concluiu que o material usado é bem mais sério que simples gás lacrimogêneo e sugere que além de um produto químico denominado “Chemical Mace”, tenha sido usado o fósforo branco e amarelo.
Juntando as informações fornecidas por Gerald Thomas, na Europa, com as pesquisas feitas nos Estados Unidos por Michael Klare, do Institute of Policy Studis de Washington, pode-se construir duas hipóteses sobre as origens das queimaduras:
1)Elas teriam sido provocadas sobretudo por bombas de “efeito moral” utilizadas pela polícia paulista, nas quais estava misturado fósforo branco e amarelo – um componente presente em todas as modernas e perigosas bombas químicas. O fósforo pode causar danos horríveis a pessoas humanas, e esses danos podem ainda ser mais graves, de acordo com o perito inglês Julian Perry Robinsons, da Science Policy Research Unit, da Universidade de Sussex, se as embalagens das bombas tivesse algum defeito e distribuíssem o pó ou fumaça em quantidades não homogêneas. E isso teria ocorrido com as bombas lançadas na PUC.
2)A outra hipótese é que a origem das queimaduras seria o “Chemical Mace” misturado nas bombas de gás lacrimogêneo. Esse tipo de bomba já foi usado nos Estados Unidos, mas sua utilização para o controle de manifestações pela polícia acabou sendo proibida naquele país desde 1971, por ser considerado material perigoso: irrita os olhos e a pele, provoca opacidade ou arranhaduras na superfície da córnea, causa prejuízo à traquéia, bem como lesões na pele.
Não há dúvidas sobre a origem das bombas: foram compradas nos EUA
O Brasil adquiriu nos Estados Unidos, em fins de 1975 e princípios de 1976, grandes quantidades de latas de gás CN, CM e CS, máscara para pessoas que jogam esses gases e também equipamento para a fabricação de agentes químicos que são usados para recarregar essas latas. Desses gases, o CS é o que mais problemas causa. Ele é o gás ativo na composição do Mace, que, por sua vez, é uma mistura de agentes químicos que inclui o querosene e o CS. O CS penetra na pele e age sobre os nervos paralisando temporariamente as pessoas. Mas essa mistura de gases muitas vezes não é bem feita e em certas ocasiões, dependendo de variações bruscas de temperatura, se deteriora. Algumas pessoas nos Estados Unidos, que investigaram as matérias publicadas na imprensa brasileira sobre a repressão na PUC, acham que foi o próprio Mace que causou as queimaduras. Nos Estados Unidos há registro de diversos casos de cegueira provocados pelo uso do Mace.
O Mace é produzido nos Estados Unidos pela General Ordnance Equipment Corp, de Pittsburgh, uma subsidiária da Smith and Wesson. Segundo Klare, o Exército brasileiro adquiriu, em 1976, da General Ordnance, 1.326 latas de Chemical Mace.
O fato é que não se sabe com exatidão se as queimaduras foram provocadas por fósforo branco e amarelo ou pelo Mace. Médicos que cuidaram das três estudantes mais atingidas declararam que se tratavam de queimaduras “esquisitas”, diferentes das queimaduras provocadas por fogo, eletricidade ou produtos químicos conhecidos no Brasil. Eles disseram que as lesões devem ter sido causadas por algum produto químico novo – cuja natureza exata, por enquanto, só a polícia paulista pode esclarecer.
Não há, no entanto, dúvidas sobre a origem desses produtos. Uma pesquisa feita em Washington revela que nos últimos anos os Estados Unidos vêm fornecendo ao Brasil, em grande quantidade, diversos materiais usados para “controle de multidões” e equipamentos para luta contra o “terrorismo”, além do equipamento militar propriamente dito. Em alguns poucos casos os pedidos foram feitos pelas próprias Polícias Militares, mas na maior parte das vezes os embarques foram destinados ao Exército brasileiro.