Aquele que talvez seja o intelectual mais típico da experiência do Fórum Social Mundial e que já conquistou a cidadania cultural brasileira, elaborou toda uma rede de conceitos, argumentos e iluminações que servem ao diálogo crítico para a construção de um Brasil pós-neoliberal.

Aquele que talvez seja o intelectual mais típico da experiência do Fórum Social Mundial e que já conquistou a cidadania cultural brasileira, elaborou toda uma rede de conceitos, argumentos e iluminações que servem ao diálogo crítico para a construção de um Brasil pós-neoliberal.

Seria banal afirmar a cidadania brasileira do sociólogo Boaventura de Sousa Santos. Existem afinidades insondáveis entre um intelectual português, que se colocou desde sempre na vanguarda da crítica ao colonialismo, e a nossa “civilização luso-tropical”, para utilizar uma expressão de Gilberto Freyre. A pesquisa em favelas do Rio de Janeiro esteve na gênese do seu campo teórico em busca de uma sociologia crítica do Direito. Desde os anos 1970, alimenta e nutre-se de uma rica interlocução com toda uma geração de intelectuais nacionais. Suas obras já encontraram rica recepção universitária nas áreas do Direito, Sociologia, Educação, Serviço Social e nas pesquisas sobre democracia participativa. Tem sido marcante a sua presença na cena intelectual brasileira, em várias polêmicas públicas, sempre a favor de novos posicionamentos emancipatórios.

Como campo de pensamento que se elabora nas últimas décadas sob uma perspectiva normativa socialista e democrática, com forte inspiração em Gramsci, a obra de Boaventura tem, sem ser partidária, fortes afinidades com a cultura do PT. E por ser uma razão que se orienta com paixão pelo Sul e pelo Oriente da utopia – no sentido de buscar alternativas à hegemonia da civilização liberal – ela está sempre em busca de fronteiras. A leitura retrospectiva de “Pelas mãos de Alice. O social e o político na pós-modernidade” (Cortez Editora,1995) mostra que estão lá, em estado teórico de afloração, os temas e a atitude que viriam à tona nas experiências do Fórum social Mundial. Os cinco volumes, por ele editados, da coleção “Reiventar a emancipação social: para novos manifestos”, editados no Brasil pela Civilização Brasileira, já percorrem estes temas de modo aberto: a democracia participativa, os caminhos da produção não capitalista, os caminhos do cosmopolitismo multicultural, os caminhos da biodiversidade e o novo internacionalismo operário.

É neste sentido, dos tempos antecipatórios do pensamento utópico, que é possível ler a sua obra mais recentes com os olhos de quem descortina futuros possíveis a serem inventados e construídos para a sociedade brasileira. Este não é, sem dúvida, um desafio sem maiores riscos e exigências. Trata-se de um exercício de nacionalização de um autor, por auto-definição, cosmopolitano, isto é, que cuja identidade encontra nas caravelas de Portugal o seu “mito fundador”: o sentido das fronteiras e das margens do mundo, a disposição para os ventos, a forma universalista mas sem conteúdo pré-fixado.

Seria necessário, nesta reflexão de aproximação com as fronteiras e impasses da experiência de emancipação vivida pelo povo brasileiro, um tratamento sistemático do ponto de vista conceitual de um pensador que faz da abertura epistemológica a sua força. Boaventura dos Santos mantém, paralela à sua pesquisa sociológica, uma saudável reflexão sobre as ciências ocidentais, sobre o que ele chama de epistemicídio, a morte de saberes e possibilidades de saberes que o processo de redução dos horizontes instrumentais da ciência impôs aos povos do mundo com a consagração do domínio liberal e euro-cêntrico. Daí uma insistente recusa ao fechamento de sínteses teóricas e a proposta de linhas de pesquisa-emancipação que gerem culturas de manifestos sociais pela emancipação. Recém participou, por exemplo, de um congresso internacional de povos indígenas, realizado no Peru, e tem assessorado os esforços de integrar na experiência em curso de uma nova Constituição na Bolívia a gramática alternativa dos direitos indígenas.

A reflexão que se seguirá implica também em forçar o sentidos de vidência de um pensamento que recusa falar em nome ou por cima das experiências sociais e reivindica uma dimensão prudencial para a utopia. Isto é, a utopia, após as histórias já tragicamente vividas em tentativas de construção do socialismo, não pode ser auto-referida e auto-referenciada.

Vale a pena, no entanto, correr todos estes riscos. Há certamente mais que convergência mas assombrosas coincidências em sua obra, formuladas por caminhos diversos, com vários temas fortes que organizam o campo teórico que vem sendo trabalhado desde o início de 2001 na leitura analítica-normativa, histórica e conjuntural, do Periscópio.

Informulação teórica e sociologia das ausências

Um primeiro tema forte nos escritos de Boaventura dos Santos incide sobre os riscos da não teorização das experiências vividas e, em função disso, a necessidade de uma sociologia das ausências. A formação dos movimentos sociais e políticos anti-neoliberais nas últimas décadas deu-se em um contexto de crise dos paradigmas da emancipação, de grave recuo das correntes do marxismo e de carecimento de uma visão de perspectiva e de totalidade. Assim, haveria segundo Santos, o grande risco de “desperdiçar a experiência”: sua sub-teorização implica em que ela não é acolhida, em todo o seu potencial de emancipação, no pensamento e na imaginação social. As épocas de domínio do neoliberalismo implicaram na formação de agendas e narrativas que levaram a tornar zonas da vida social super-visíveis e outras quase invisíveis. A visibilidade das práticas de emancipação social depende, então, de uma sociologia atenta ao que está emergindo mas ainda não ganhou força para ocupar o centro, de lógicas alternativas potenciais apenas entrevistas mas não generalizadas, de experiências locais que são universalmente importantes mas que estão contidas e emparedas.

Refletindo sobre a experiência brasileira, seria possível dizer que há na nossa cultura política um conjunto de questões chaves mas não adequadamente teorizadas nem mesmo programatizadas: as dimensões de orçamento participativo que não encontraram ainda um correspondente na experiência nacional, o potencial ainda sub-aproveitado da economia solidária, dimensões vividas do novo paradigma ecológico que ainda não foram ao centro, experiências de expansão social da identidade feminina que não entraram com força na agenda, intuições fortes da vida cultural e da presença identitária dos negros que permanecem segregadas da vida política nacional. Na linguagem da sociologia de Boaventura dos Santos, fomos das margens para o centro da vida institucional brasileira sem levar ainda muitos companheiros de viagem de novos sonhos de emancipação que, continuam socialmente conosco, mas que ainda carecem encontrar uma lógica política plena capaz de potencializá-los.

Transição de paradigmas

A noção de sociologia das ausências só ganha o seu sentido mais profundo quando vista sob o ângulo do diagnóstico de transição de paradigmas que organiza todo o pensamento de Boaventura dos Santos. Para ele, os problemas criados pelo padrão civilizatório da modernidade ocidental não são passíveis de serem solucionados nos marcos deste paradigma de civilização. Daí porque, embora se nutra muito, em particular nos anos oitenta e noventa, de um diálogo com a obra de Habermas (defensor da tese que a modernidade não realizou ainda as suas promessas históricas), ele se defina problematicamente como “um pós-moderno de oposição” (em crítica frontal aos pensamentos pós-modernos que abriram mão de qualquer noção de emancipação e apenas celebram o efêmero, o contingente e os simulacros da liberdade inscritos na condição contemporânea).

A transição de paradigmas seria, então, uma situação epocal: cobre toda um período histórico da humanidade e tem um caminho irresolvido, em disputa. Ora, este diagnóstico, afirma Boaventura dos Santos, implica em conceber a política como política cultural ou cultura polìtica: ela é exatamente marcada pela disputa de valores, de racionalidades, de narrativas, de alternativas. Há, de um lado, o peso inercial das estruturas, a reiteração das lógicas da dominação, as razões conformistas ou indolentes. De outro, o trabalho de subjetivar, amolecer, flexibilizar e, no limite, corroer os limites do possível a cada momento e cada situação através da formação de novas vontades sociais de emancipação.

A modernidade ocidental não seria, para o sociólogo português, um “universalismo” mas um “localismo cuja expansão foi bem sucedida”. E, diante dele, seria necessário multiplicar as lógicas da emancipação através do diálogo entre os direitos da igualdade e os direitos da diferença. Ali onde a desigualdade oprime é preciso afirmar a equivalência dos direitos; ali onde a homogeneidade oprime é preciso gritar o direito de ser diferente.

Nesta época de transição de paradigmas, a nossa própria condição e identidade é intervalar, está em mudança. Há muitas vozes falando em nós ao mesmo tempo, polifonias, deve haver lugar inclusive para a cacofonia. Há, sem dúvida, na cultura petista contemporânea hoje muitas vozes falando em gramáticas diversas e às vezes não compatíveis entre si. Neste sentido, a cultura petista é uma cultura também de transição a um porto, que mais do que em brumas, precisa ganhar contorno e nitidez histórica.

Utopia como novo senso comum

Nesta época de transição de paradigmas, de muita experimentação política e social nova e de culturas e teorias da emancipação informuladas, há o grande risco do pragmatismo adaptativo, o que Gramsci chamou de “filosofia da prática”. A inteligência do pragmatismo é concebida como análise da mecânica da correlação de forças dissociada de uma luta político-cultural por uma nova hegemonia. O que é o possível deixa de ser dinamicamente concebido e passa ser fixado como limite. A patologia do pragmatismo seria exatamente a dissociação entre meios e fins da emancipação: visar a emancipação através de um sub-paradigma da dominação ou pretender o ardil pretensamente inteligente de usar a favor da emancipação o que conspira contra ela.

A teoria, propõe Boaventura dos Santos, vale como “uma cartografia das possibilidades do real”, de seus futuros possíveis inscritos. Não se trata de cultivar a adesão a futuros já previstos. Nesta cartografia não deveria haver lugar para um evolucionismo: o que poderia ter sido, não foi mas ainda pode ser deve ter o seu lugar. As vidências do passado devem ter o seu lugar, no sentido de Walter Benjamin. A cultura e a história brasileira, a cartografia de nossos sertões, está plena de experiências, imaginações e projetos de emancipação secados antes de dar fruto e sombra.

Para ser democrática, a utopia não pode se recolher à condição sectária. Não pode pretender ser o juiz, a consciência crítica, de si própria e do mundo à imagem e semelhança. Ela deve visar, em boa linguagem gramsciana, ser um novo senso comum civilizatório, a partir do bom senso, do que é racional para o bem público. Porisso, a sua natureza não é extremada, é prudencial, não é irrefletida mas reflexiva, é capaz de dobrar-se sobre seus próprios erros, não é auto-proclamatória mas dialogal. “Conhecer é reconhecer”, não pode ser “colonizar o outro”, seja este o social ou a natureza.

As intuições fortes do pensamento de Boaventura dos Santos estão hoje muito próximos, ao rés mesmo, respiram o mesmo ar da consciência vital de vastos milhões de brasileiros que pretendem votar em Lula nestas eleições presidenciais de 2006. Compreender isto é estritamente necessário para ir também aos seus desvãos de seu pensamento, aos seus limites e, ao mesmo tempo, ir aos aléns de nossa experiência.

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