Morre Zeelândia Cândido de Andrade
Filha de João Cândido – líder da Revolta da Chibata -, Zeelândia faleceu aos 82 anos de idade
Filha de João Cândido, líder da Revolta da Chibata, faleceu aos 82 anos
Com 82 anos de idade, morre Zeelândia Cândido de Andrade. Sua história de vida serve como exemplo de força de luta em prol da história dos afrodescendentes. Zeelândia nunca deixou de defender seus ideais, assim como seu pai, o marinheiro João Cândido, líder da Revolta da Chibata, que entrou para a história como o maior levante contra as injustiças praticadas pela Marinha de Guerra contra os marujos negros e nordestinos.
Incansável na luta pelo resgate da memória do seu pai, em novembro do ano passado, Zeelândia esteve com o presidente Lula e com Aldo Rebelo, presidente da Câmara dos Deputados, para pedir a aprovação do processo de anistia (apresentado pela então senadora Marina Silva). Recentemente ela voltou a Brasília para acompanhar a revisão do projeto de lei 7.198, de 2002, e teve a promessa de votação em medida urgente.
O enterro de Zeelândia foi realizado ontem, dia 14 de setembro, no Cemitério de Vila Rosali, em São João de Meriti.
Confira abaixo a entrevista realizada por Sílvia de Mendonça, jornalista e atriz, que faz parte da equipe de comunicação do CEAP – Centro de Articulação das Populações Marginalizadas; publicada no Jornal da Marcha de novembro de 2005.
Zeelândia, mulher negra guerreira, revive a memória de seu pai João Candido
O Jornal da Marcha chega no bairro Coelho da Rocha, município de São João de Meriti, Baixada Fluminense/RJ e encontra a sexta filha de João Cândido, Zeelândia Cândido de Andrade, mulher negra guerreira que aos 81 anos ainda tem muita determinação. Dona Zeelândia fala da infância, da convivência com o pai e de esperanças. Ela fala das tragédias que aconteceram na família e das suas expectativas para o futuro. Ela, uma fervorosa católica, nos lembra que João Cândido nasceu em 24 de junho no dia de São João Batista, do ano de 1880, em Rio Pardo, hoje denominada Cruzada do Sul, em Porto Alegre/RS. Lembra com tristeza que seu pai, João Candido Felisberto, foi muito perseguido e morreu em 1969, como vendedor no Entreposto de Peixes da cidade do Rio de Janeiro com o sonho de ser reintegrado a Marinha de Guerra, porque, segundo ela, o mar era a sua maior paixão. Todavia, ele morreu sem patente, sem aposentadoria e no esquecimento até que um dia foi intitulado popularmente por Almirante Negro.
Jornal da Marcha: A senhora tem sido convidada a falar sobre João Cândido em diversos lugares, o que tem a dizer sobre a convivência com o seu pai?
Dona Zeelândia: Eu sempre falo sobre o João Candido revolucionário, o cidadão. Hoje, eu prefiro falar sobre o exemplo do pai que ele foi e da afinidade que eu tinha com ele. Imaginava que ele viveria mais tempo e hoje tenho muitas lembranças do tempo em que passamos juntos. Mesmo tendo passado 36 anos após sua morte ainda sinto muito a sua falta.
Jornal da Marcha: João Cândido teve quantos filhos e como era a sua família?
Dona Zeelândia: Eu quero lembrar um pouco a história da nossa família, porque em alguns livros não registraram o correto sobre os seus filhos. Com a primeira esposa, dona Marieta, tiveram dois filhos, o Arnaldo e o Mário. Depois que ficou viúvo conheceu a minha mãe, sua segunda mulher, Maria Dolores e aí nasceram a Nança (era assim mesmo o nome dela), a mais velha, o João Cândido, o Daniel que morreu, eu e logo depois de mim nasceu um outro filho que ele deu o mesmo nome do meu irmão falecido, Daniel. Ficou viúvo novamente com todos os filhos pequenos e sempre trabalhando muito. Alguns anos depois conheceu uma mineira, que batia muito na gente, dessa união nasceu o Mackenzie. Eles acabaram se separando e ela levou o filho. Ele voltou anos depois, algumas vezes, e depois desapareceu definitivamente após a morte do nosso pai. Sozinho novamente ele conheceu a Ana do Nascimento, com quem teve a Almerinda, o Arnaldo (novamente repete o nome de um dos filhos), Adalberto e o José Crokner. Vivos, hoje, somos três filhos: eu, o Arnaldo e o Adalberto.
Jornal da Marcha: Depois que chegou aqui em São João de Meriti, João Cândido chegou participar de alguma atividade política?
Dona Zeelândia: Quando fomos morar em São João de Meriti o povo que o conhecia convidava o João para os partidos políticos e pedia o seu apoio. Os integralistas disseram que chegando ao poder fariam com que ele e os outros fossem reintegrados na Marinha. Meu pai entrou na marinha com 15 anos e só soube trabalhar no mar. Ele ficou esperançoso. Os marinheiros queriam justiça e integridade. Quando invadiram o Palácio do Catete ele chegou em casa e queimou tudo do partido, preocupado que algo de ruim pudesse acontecer com a nossa família.
Jornal da Marcha: Quais as lembranças que você têm de seu pai?
Dona Zeelândia: Meu pai era muito severo e carinhoso. Gostava de cantar as cantigas regionais do Rio Grande do Sul pra gente dormir. Um chefe de família trabalhador. Ele sempre viveu as maiores dificuldades. Lembro-me de quando ele pegava o trem de madrugada em São João de Meriti para trabalhar no cais da Praça XV. Com esse trabalho contraiu tuberculose, mas mesmo doente ele dizia que queria ficar perto do mar.
Jornal da Marcha: Quais são as lembranças mais tristes?
Dona Zeelândia: A memória do meu pai não é respeitada pelos que têm o poder porque ele era negro e humilde, se ele fosse um oficial já tinha sido anistiado. No Brasil não se respeita uma pessoa como o meu pai, é o que também está acontecendo com o presidente Lula. Ninguém admite alguém com uma história de origem pobre, e se for negro, pior ainda. Acredito que hoje meu pai apoiaria o Lula e votaria nele, porque tem uma história parecida com a dele. Depois de 1910 ele queria pelo menos entrar na marinha mercante, mas a marinha de guerra não permitia. Ele nasceu marítimo e na marinha ele queria morrer, por isso trabalhava junto ao mar, ele amava o mar.
Quando o navio Minas Gerais foi vendido como sucata e estava ancorado fora da baía, ele pediu a um pescador de um caiaque para levá-lo até lá. Foi se despedir. Quem assistiu disse que lágrimas saíram dos olhos dele.
Até hoje sinto tristeza por nossa família não ter tido condições de comprar a sepultura do meu pai. Hoje não existem mais os seus restos mortais. Assim que ele for anistiado vou mandar rezar uma missa na Igreja São Francisco de Paula, no Rio e outra em São João de Meriti.
Jornal da Marcha: Nesse episódio político quais fatos marcaram a vida da sua família?
Dona Zeelândia: Um fato que marcou muito foi quando achávamos que os companheiros da marinha tinham esquecido dele. Em 1937 meu pai foi internado, ele estava muito doente e as crianças ainda todos pequenos passávamos por muitas dificuldades. Então meu pai chamou um vizinho que trabalhava no Diário da Noite, eles conversaram lá mesmo no hospital e dias depois saiu uma notícia no jornal de que meu pai estava muito doente, passando necessidades e deu resultado. Meu pai recebeu muitas visitas dos marinheiros e chegou a pedir que não fossem todos de uma só vez, porque incomodava os outros pacientes. Naquele tempo não deixaram faltar nada para o meu pai, durante a doença e nem em nossa casa. Até alguns oficiais foram visitá-lo e pediram para não serem citados.
Outro fato marcante ocorreu foi antes do meu pai morrer. Meu irmão havia comprado um terreno que ficou vazio durante anos, e numa ocasião o governador Roberto Silveira convidou papai para ir ao Ingá e conversou com ele sobre a luta dos marinheiros. Então o Roberto Silveira perguntou se ele tinha casa própria e ele disse que só tinha um terreno do meu irmão. O Roberto Silveira fez uma doação para papai e com esse dinheiro ele pode construir sua casa, isso foi em 1958 e foi lá que ele viveu até os seus últimos anos.
Jornal da Marcha: E o que mais teria marcado a vida do João Cândido?
Dona Zeelândia: Meu pai teve dois momentos muito tristes na vida dele, o primeiro foi quando minha mãe suicidou-se. Dez anos depois foi a minha irmã mais velha que fez igual a minha mãe, ateou fogo no corpo. Ela ficou internada uma semana e mesmo doente ele ia visitá-la todos os dias. Ele ficou o resto da vida marcado por esses dois acontecimentos.
Jornal da Marcha: E quais as lembranças alegres?
Dona Zeelândia: Ver o busto do meu pai olhando para as águas, as margens do Rio Guaíba (Porto Alegre). Lembrar dele jogando balas dentro da fogueira de São João e agente pensando que iam explodir. Ir ao parque de diversão que ele gostava muito e chamava de ‘mafuá’. Vê-lo conversando em casa com os amigos marinheiros, que levavam instrumentos de corda e tocavam e cantavam cantigas do tempo deles. Uma vez eles trouxeram um bolo no formato do navio Minas Gerais e esta foi à última vez que fizeram uma festa juntos.
Jornal da Marcha: Qual a herança ou lição maior que ele deixou para a família?
Dona Zeelândia: Ele deixou para a família a noção de que este mundo era desigual e isto ele sentiu na pele com a Revolta da Chibata. Ele dizia na comunidade de marinheiros que não deviam se rebaixar e se humilhar. E isso ele passou para todos os filhos também. Eu aprendi e fui à luta, participo nas associações de moradores, no movimento negro e de mulheres. Parada eu não fico. A lição que meu pai deixou é que se a gente tem um ideal, e não se sente bem com uma situação e se puder reverter essa situação, que não devemos esperar pelos outros, temos que arregaçar as mangas e lutar para mudar. Com luta ou com diálogo, vamos nós mesmos tomando as rédeas do nosso destino, porque abaixo de Deus nós temos esta condição. Não podemos esperar que a solução dos nossos problemas venha só de cima.
Jornal da Marcha: João Cândido foi muito homenageado?
Dona Zeelândia: A marcha de Zumbi a João Cândido que saiu do busto do Zumbi na Praça Onze até a Praça XV / RJ fez minha família chorar muito. Ele recebeu muitas homenagens nas universidades. O samba do João Bosco e Aldir Blanc. Ele foi tema do enredo da Escola de Samba União da Ilha, em 1985. Recebeu o título pós-morte das Assembléias Legislativas de Porto Alegre e do Rio de Janeiro, da Câmara Municipal do Rio de Janeiro e de São João de Meriti, em 1986. O meu pai foi enredo da Escola de Samba Camisa Verde e Branca, em São Paulo, em 2002. O CIEP no bairro onde ele viveu sua vida leva o seu nome.
Jornal da Marcha: E hoje quais são as suas esperanças?
Dona Zeelândia: Quero ver a memória do meu pai e todos os seus companheiros ser resgatada e respeitada a ponto de realizar o grande sonho de serem reintegrados a Marinha, por isso ainda luto junto a Unidade Nacional e Mobilização Pela Anistia. E espero ver a Associação dos Marinheiros se tornar a Fundação João Cândido.