As dificuldades crescentes da candidatura Alckmin demonstram o grau de deslegitimação das propostas neoliberais diante da democracia brasileira. É hora, portanto, de maximizar a derrota neoliberal, inclusive nas disputas estaduais, e construir a legitimidade pública das reformas democráticas, nacionais e populares.

As dificuldades crescentes da candidatura Alckmin demonstram o grau de deslegitimação das propostas neoliberais diante da democracia brasileira. É hora, portanto, de maximizar a derrota neoliberal, inclusive nas disputas estaduais, e construir a legitimidade pública das reformas democráticas, nacionais e populares.

As quatro pesquisas de tendências de voto para as próximas eleições presidenciais divulgadas nestes primeiros dias de agosto não deixam margem à dúvida que são crescentes os impasses da candidatura Alckmin. Nos resultados do Ibope recém divulgados, por exemplo, Alckmin caiu de 27% para 21%, Lula subiu de 44% para 46% e Heloísa Helena cresceu de 8% a 11% entre os dias 22 de julho a 7 de agosto. As mesmas tendências foram captadas pelas pesquisas CNT/Sensus, Datafolha e Vox Populi. De acordo com o Ibope, o índice dos que avaliam o governo Lula ótimo/bom ascendeu de 38% em maio a 41% em julho, assim como recuou a rejeição à candidatura Lula de 32% a 28%.

É possível captar a expressão das dificuldades da candidatura Alckmin em seus movimentos: a continuidade da crise de segurança em São Paulo, os atritos públicos entre as principais lideranças do PSDB, a dificuldade do ex-governador de São Paulo a se vincular às candidaturas aos governos estaduais mais dinâmicas, a dificuldade de arrecadação financeira de seu comitê, a performance discursiva muito medíocre do candidato. Como analisamos desde o lançamento de sua candidatura no Periscópio, Alckmin é cada vez mais prisioneiro de três impasses estruturais: o da nacionalização (em particular, no Nordeste), o da disputa com Lula entre os setores pauperizados que conformam a maioria do eleitorado e a dificuldade em atrair setores e lideranças da centro-esquerda para conformar uma dinâmica de isolamento político-eleitoral de Lula.

Estes três impasses estruturais, no entanto, estão relacionados a um fundamento já histórico e que se manifesta com força nesta conjuntura: a deslegitimação do paradigma neoliberal na democracia brasileira. Quando Serra foi candidato em 2002 com o lema “continuidade sem continuísmo”, utilizou-se o conceito gramsciano de transformismo para caracterizar o sentido liberal-desenvolvimentista de sua candidatura. Seria necessário criar o conceito de “amorfismo”, no sentido de amorfo, de forma sem conteúdo e conteúdo sem forma, para designar o sentido público da candidatura de Alckmin, conservador de um partido liberal, obrigado a tergiversar ou camuflar as teses que lhe são mais caras por sua impopularidade frente à maioria do eleitorado.

A dinâmica eleitoral até agora vai conformando uma grande derrota das teses neoliberais que, no entanto, não são claramente apresentadas. Mesmo o fenômeno, ainda não sedimentado, de um certo crescimento da candidatura minoritária de Heloísa Helena não deixa de revelar este sentido mais profundo da conjuntura. Considerando-a como uma candidatura de sentido anti- neoliberal, a soma dos votos conferidos a Lula e a ela alcançam quase três quartos dos votos válidos!

Pode se considerar improvável que o horário eleitoral gratuito, no qual Alckmin desfruta de maior tempo, seja um componente que, isoladamente, possa alterar o sentido mais geral desta dinâmica. Ele teria que se soldar a novos acontecimentos políticos eleitorais, de profundas implicações para o reposicionamento do eleitorado, mas que são difíceis de serem criados. Mesmo assim, por um posicionamento prudencial, o amplo favoritismo hoje desfrutado por Lula a 45 dias das eleições não deve ensejar um clima que antecipe uma histórica vitória que ainda precisa ser confirmada.

Maximizar a derrota neoliberal

Neste contexto, a maximização da derrota neoliberal passa por três dimensões: em uma dinâmica centrífuga, criar canais e iniciativas que facilitem a transmissão e apropriação por parte das candidaturas anti-neoliberais aos governos estaduais das energias que advêm da candidatura Lula; fortalecer o vínculo entre as candidaturas antineoliberais ao Congresso Nacional com esta dinâmica e fundar claramente diante da democracia brasileira a legitimidade de uma nova agenda democrática e popular para o país. A pressão político-eleitoral sobre as candidaturas estaduais liberais e conservadoras mais expressivas, como as do PSDB em São Paulo e Minas e a do PFL na Bahia, exige um maior esclarecimento de suas oposições programáticas ao forte movimento nacional de opinião que indica hoje a grande possibilidade de reeleição do presidente Lula.

O programa da candidatura Lula pode ser concebido sob três perspectivas: como continuísmo em relação ao primeiro mandato, como “continuidade sem continuísmo” ou como uma nova etapa da transformação histórica do país propiciada pelas conquistas do primeiro mandato.

Um programa de sentido continuísta equivaleria a afirmar a extensão, a ampliação e o aprofundamento das várias dinâmicas positivas desencadeadas ao longo dos últimos quatro anos. Muitos programas apenas foram inicialmente desencadeados, vários fundamentos de gestão republicana do Estado foram reconstruídos ou inovadoramente criados, limites como a extrema vulnerabilidade externa da economia, o monitoramento do FMI, a ameaça inflacionária foram superados. Em um contexto de retomada firme do crescimento, com recuperação mais rápida do emprego e da renda dos trabalhadores, com mais disponibilidade para investimentos sociais, os sentidos virtuosos do primeiro mandato seriam, assim, multiplicados.

Uma perspectiva programática de “continuidade sem continuísmo” exigiria, mais além disso, um olhar reflexivo sobre a experiência vivida, identificando limites e erros cometidos e projetando a sua superação. A priorização da reforma política, a conformação de um sentido mais largo de governabilidade a partir de dinâmicas participativas mais amplas, a ênfase e o aprofundamento das medidas estruturais de combate à corrupção sistêmica e a superação do padrão monetarista muito conservador de gestão do Banco Central poderiam alavancar, em uma nova cena histórica, as possibilidades transformadoras do governo Lula.

Uma terceira perspectiva programática, no entanto, que supera as duas primeiras integrando-os em uma nova lógica governativa, seria a que permite maximizar a derrota neoliberal e fundar amplamente a legitimidade de um governo democrático e popular. Ela parte da compreensão de que o primeiro mandato do governo Lula, mesmo considerando suas limitações e contradições, foi marcado pelo esforço de transitar do paradigma neoliberal de Estado e das agendas anteriormente legitimadas. A vitória possível da candidatura Lula neste novo outubro deveria ser capaz de sinalizar a passagem da fase final da transição para uma nova dinâmica histórica virtuosa e coerente em suas dimensões políticas, econômicas, sociais e culturais de transformação.

Antes, transitou-se da agenda Alca e do impasse da construção do Mercosul para uma retomada vigorosa da construção da unidade latino-americana. Agora, trata-se sobretudo de conferir um sentido histórico largo e historicamente inédito a este projeto.

Viveu-se nos primeiros anos do governo Lula a difícil coabitação com o monitoramento do FMI até a superação, através do fortalecimento da soberania econômica do país. Agora, trata-se de ocupar este espaço de soberania com uma dinâmica plenamente desenvolvimentista e distributivista em tudo oposta à macroeconomia do neoliberalismo.

O primeiro mandato do presidente Lula colocou no centro da agenda do país as políticas de inclusão social, em particular os programas integrados ao Ministério do Desenvolvimento Social. Agora, trata-se de construir as políticas públicas desenvolvimentistas – economia solidária, agricultura familiar, microcrédito, planos de desenvolvimento local, massificação da oferta de empregos – capazes de dar um novo estatuto de plenitude cidadã, como trabalhadores, a estas dezenas de milhões de brasileiros. Ao invés da combinação perversa entre desemprego e políticas sociais focalistas, expansão dos direitos do trabalho e políticas sociais de sentido universalista.

Limitado pelas restrições orçamentárias, mais fortes ainda nos primeiros anos, trabalhou-se intensamente e em muitas direções pela superação das dinâmicas de precarização, terceirização e sucateamento das funções republicanas do Estado brasileiro. Estas dinâmicas certamente devem prosseguir mas cada vez mais combinadas com o aprofundamento da prática da democracia participativa em todos os níveis de gestão, a começar pelas definições de orçamento. Não mais a falsa oposição entre Estado mínimo/ estatismo, mas formação das dimensões públicas, universalistas e democráticas, do Estado brasileiro.

Se o primeiro mandato foi marcado pela crise da ética da política, trata-se de no segundo mandato elevar os padrões da dignidade da política, do controle social e da superação da corrupção sistêmica.

O primeiro mandato, enfim, foi marcado pela construção de novos fundamentos para a política da cultura, de superação da discriminação racial e de gênero. Estas políticas apenas iniciadas podem e devem ganhar crescente centralidade na cultura política do país, criando uma ambiência história propícia à superação de históricos preconceitos e opressões.

Assim como o neoliberalismo soube construir, no seu auge, a legitimidade de suas agendas de reforma do Estado, precisamos saber construir agora a legitimidade das reformas democráticas e populares que interessam ao povo brasileiro : a reforma agrária, a reforma urbana, a revolução educacional que se projeta.

Das agendas da transição a uma verdadeira transição de agendas: que a democracia brasileira seja capaz de expressar plenamente nestas eleições que ficou definitivamente para trás o pesadelo dos tempos neoliberais !

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