por Sérgio São Bernardo

 

Bobbio, um dos ideólogos da Republica Democrática, escreveu: mais que justificar direitos, era necessário garanti-los. Ao elaborar tal sentença, pragmatizou uma das essências do liberalismo moderno: as anomalias do sistema estatal precisariam ser ajustadas, independente do apelo ético/moral no qual se fundamentam.

Os signatários da nota "Todos tem direitos iguais na Republica Democrática" manifestam, em bom momento e de forma visível, o sentimento de uma parcela da população brasileira que diz existir racismo no Brasil, mas não concordam com os instrumentos institucionais até então buscados para superar as desigualdades decorrentes do escravismo e do colonialismo.

Não é verdade que a história condenou dolorosamente as tentativas de atribuir privilégios a partir de classificações de cor, pele, religião, sexo etc., ao seres humanos. Ainda no Brasil de hoje, temos incontáveis dados que atestam que os mais "preferidos", os mais "capazes" e os mais "belos" são aqueles moldados em grupos sociais bem distintos dos negros, do indígenas, das mulheres e dos pobres.

Não foram as manifestações negras ao longo da história do Brasil que dividiram o país. Ao contrário, quem dividiu o Brasil foram aqueles que necesssitavam de argumentos baseados numa certa ciência e numa certa estética, que localizavam quem devia recepcionar no invisível das ações do Estado e das elites, as benesses da política pública e da riqueza social.

Observem atentamente que, os que assinam tal documento, sejam intelectuais ou militantes do movimento social, são, em sua maioria, ligados a uma tradição que interpreta que o Brasil é uma democracia racial. Estas mesmas pessoas tem uma compreensão do Brasil e de seu processo civilizatório enquanto um processo de longo prazo de inclusão subordinada das ditas "minorias". Assim, acenam para um modelo de Estado que possa realizar esta suposta igualdade formal, e ampliar o investimento em políticas universais como solução para enfrentar tal "desequilíbrio".

Os signatários da mencionada nota estão jogando com o desespero de quem está perdendo na luta que afirma direitos fundados na diferença e na identidade. No entanto, a realidade tem mostrado o sucesso das medidas afirmativas. Estas tem se tornado uma prática da sociedade brasileira em nome da diversidade. Por isso, o desespero de quem sabe haver poucas possibilidades de revertê-la. Afirmam eles que o Estado brasileiro, ao atestá-la, comete uma afronta constitucional. Acreditam que o conceito de raça pode levar a conflitos e a intolerância. Ora, o que foi nossa história, senão um punhado de arranjos e de privilégios em beneficio de não negros e indígenas? E quem disse que queremos o conceito de raça biológica como identificadores de nossa condição? A questão é mais complexa e requer muito cuidado.

A República Democrática é que promete em seu programa a igualdade isonômica Vale dizer: tratar a desigualdade em sua especificidade de origem ou, dito de outro modo, tratar desigualmente os desiguais. Já o conceito de raça possui vários conteúdos e, desde Aristóteles e Platão, esteve associado a idéia de virtude e caráter – como dito no final do texto republicano -, nos séculos posteriores esteve vinculado a idéia dos que eram "escolhidos pelo divino". Depois, no século XIX, foi vinculado à crença da perfeição evolutiva e genética. Hoje, se apresenta com outros atributos, que podem ser classificados e flexibilizados de acordo com outras identidades voláteis típicas da ideologia neoliberal. Assim, ser negro e indígena no Brasil possui características que transcendem os caracteres típicos de como concebemos a idéia de raça no passado.

Esqueçamos a idéía de raça como querem os republicanos democráticos e teremos ainda um passivo para uma população de "iguais" que passam fome, não tem emprego e não estão nas universidades. A questão é que o fenômeno discriminatório modernizou-se e continua a classificar as pessoas, inferiorizando-as, fulminando com seu olho que naturaliza as diferenças, colocando as pessoas em "lugares" distintos, mantendo as desigualdades do jeito que se nos apresentam. A etnia, enquanto conjunto que localiza estes iguais, responde quem são os sujeitos dos sonhos de King.

Enquanto milhões de jovens negros morrem nas cidades e milhões de mulheres negras ocupam espaços subalternos no mercado de trabalho, o caminho unilateral das políticas públicas universais se coloca como limitadas e preservadoras de privilégios aos que já os tem. Esperar mais quinhentos anos para avistarmos a Republica Democrática que demora em chegar é que pode transformar o Brasil numa eminente guerra civil em busca da liberdade e da cidadania. Quem tem fome tem pressa…

* Sérgio São Bernardo
– Advogado, Assessor de Relações Racias da Liderança do PT na Câmara dos Deputados