Há quem diga que as artes cumprem uma espécie de exercício premonitório com relação à aventura humana. Para eles, alguns artistas funcionariam como antecipadores da tragédia ou da felicidade coletiva. Entre nós, um sensível poeta mineiro, seguramente aquele que revelou a mais alta vocação pública, em língua portuguesa, contemplava no imediato pós-guerra, com olhos que já perdemos… “Nalgum lugar faz-se esse homem… / Contra a vontade dos pais ele nasce, / contra a astúcia da medicina ele cresce / e ama, contra a amargura da política. // Não lhe convém o débil nome de filho, / pois só a nós mesmos podemos gerar / e esse nega, sorrindo a escura fonte. // Irmão lhe chamaria, mas irmão por quê se a vida nova / se nutre de outros sais que não sabemos?// Ele é seu próprio irmão no dia vasto, / na vasta integração das formas puras, / sublime arrolamento de contrários / enlaçados por fim.(…)” (Drummond, Contemplação no Banco, Claro Enigma, 1951). Mal saídos da hecatombe que varreu a Europa, e cegou os olhos do mundo com a rosa incandescente de Hiroxima e Nagasaki – para lembrar também a canção de Vinícius – os homens ainda buscavam recolher os precários instrumentos teóricos ou estéticos, que restavam, para formular a polarização entre dois mundos que levariam a humanidade ao estado de terror nuclear permanente.

É possível identificar naquele momento no Brasil, como em outros lugares do mundo, um esforço de construção de representações estéticas, de símbolos culturais que dessem conta do desastre – quem se habilitaria a escrever um poema depois de Auschwitz? – mas também fosse capaz de projetar alguma esperança para os sobreviventes. Em alguns casos, os grandes dramas afastam os artistas do mundo, em outros os convoca em direção ao mundo. Tristão de Athayde os definia como poetas solitários e poetas solidários. Sem diminuir a contribuição dos primeiros, volto-me, neste artigo, mais para os segundos por uma única razão: seu trabalho em geral incide mais diretamente, e sem demora, sobre a vida social.

Trinta anos depois de vir à luz o poema “Contemplação no banco” de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1951, o Brasil viveria um momento raro de mobilização e de esperanças, com o declínio da ditadura militar e a emergência do movimento operário do ABC, e o que ele desatou na cena social pelo país afora. Poucas experiências políticas despertaram, ao nascer, tamanha onda de solidariedade, de esperanças, de generosidade nos meios culturais do Brasil como o Partido dos Trabalhadores. Uma parcela importante dos artistas e intelectuais, que diante das circunstâncias de opressão da ditadura militar, se engajaram na resistência, viu na invenção política do Partido dos Trabalhadores uma síntese, ainda que precária, das lutas populares que ao longo de décadas buscaram espaço para se exprimir de maneira autônoma na disputa de projetos ideológicos para o Brasil. Assim, nascemos tendo como testemunho solidário o traço irreverente do Henfil; os epigramas do Carlito Maia que nos chegavam como “torpedos” eletrônicos, com vinte anos de antecipação; a palavra e o gesto emocionado de Lélia Abramo e Bete Mendes no palco ou no cinema; a câmara de Renato Tapajós que flagrou no berço – lá na “Linha de montagem” – os vagidos, os primeiros movimentos do novo personagem que ocuparia o centro da cena social e política do país; a música de Chico Buarque que guiou a narrativa de sua descoberta e anunciou: “Eu não sei bem o que seja, mas seja o que será, o que será que se veja, vai passar por lá”.

Um olhar mais atento sobre a experiência do PT, acusa a ausência de um movimento cultural contemporâneo marcado por certas características comuns de tema e linguagem na produção e difusão de criações artísticas na música, na literatura, nas artes plásticas, no cinema, no teatro, balizadas a partir de um conjunto de valores ético-políticos voltados para alcançar aquela “sociedade sem explorados nem exploradores” tal como a define o Manifesto de 10 de fevereiro de 1980. Não se repetiu aqui a estreita sintonia entre o processo social e político e um significativo impulso na criação cultural como ocorreu no Chile da Unidade Popular, em outros países do continente ou mesmo no Brasil, em outros momentos do século XX. Ocorreu uma curiosa inversão, se compararmos com o período imediatamente anterior. Durante os anos de chumbo muitas expressões artísticas, em diferentes áreas cumpriram o papel de “ventrílocos” dos interesses sociais das classes populares que não tinham potência para se exprimir, com cara própria, nas condições opressivas do período da ditadura militar. Pode-se afirmar até que houve certa decepção quando foi suspenso o controle obscurantista da censura e não veio à luz nenhuma criação excepcional na literatura, na música, no cinema, no teatro. Pelo menos nada que superasse de maneira inequívoca a qualidade do que se havia produzido no período precedente.

Na medida em que os movimentos sociais dos trabalhadores foram ocupando espaço na cena política, despertaram a sensibilidade de artistas, já reconhecidos e consagrados pelo gosto popular, ou mesmo pela indústria cultural, durante os anos anteriores. Registrou-se assim certa sintonia entre uma vertente da criação artística com vocação pública e o novo processo social e político que vivíamos, mediado por artistas que individualmente se identificavam com os valores defendidos pelas esquerdas. Mas, aqueles movimentos sociais desencadeados a partir de S. Bernardo, não trouxeram consigo um novo impulso criador, não plasmaram o que poderíamos definir como uma nova estética, uma nova sensibilidade, um novo “gosto”, uma nova visão do país e do mundo que representasse ruptura com os padrões culturais anteriores. Não ocorreu, no Brasil que alcançara o apogeu de sua industrialização tardia – no final dos anos setenta – algo, na cultura, comparável com a expressão iconoclasta e libertária do modernismo frente à joalheria parnasiana, nos anos vinte, quando o país ensaiava os primeiros passos rumo à urbanização.

Talvez devamos buscar a explicação para essa ausência de pontes diretas entre os processos sociais e políticos que vivemos e a criação cultural em sentido estrito, na emergência e massificação dos produtos resultantes da indústria cultural; na extraordinária diversidade da nossa criação cultural regional que obedece a outros ritmos e outras dinâmicas produtivas e não encontra meios para se exprimir nacionalmente, em razão do controle monopolizado da mídia, em particular da TV; mas também a debilidade programática dos partidos, na ausência de uma sistematização do pensamento das esquerdas contemporâneas no campo dos valores, capaz de organizar e conferir nitidez ao horizonte ético-cultural das aspirações populares que encarnamos. Ao recusarmos inicialmente o “dirigismo” e a visão utilitarista do processo cultural – concebido como instrumento a serviço de propósitos ideológicos previamente definidos – que caracterizou em alguma medida a prática tradicional das esquerdas, incidimos no erro oposto, ou seja, numa concepção liberal de relação entre o coletivo partidário e os criadores – os artistas – que são tratados individualmente. Não realizamos um esforço consistente para incorpora-los de maneira articulada em espaços democráticos de debate e elaboração, capazes de gerar processos renovadores no tratamento dessa difícil relação entre o fazer político e o fazer cultural, no mundo contemporâneo. O resultado se expressa numa reduzida e descontínua capacidade do partido de oferecer respostas adequadas aos problemas que envolvem essa dimensão inseparável da transformação social que desejamos.

Nesse sentido, o exame atento da nossa experiência nos indica que o PT, mais que um partido contra a ordem, como queria Florestan Fernandes, tem se revelado um partido de inclusão dentro da ordem, ainda que sua simples presença dentro dela tenha produzido modificações substantivas no sentido democrático, materializadas, sobretudo, na ampliação dos espaços de participação popular que despertou. Além de dar conseqüência e radicalizar o processo de expansão horizontal da democracia brasileira, imprimindo nela o selo da participação popular, ao PT corresponde o desafio de suscitar a partir da sociedade, um vigoroso movimento cultural que aporte valores socialistas capazes de se contrapor à onda reacionária predominante na mídia liberal-consevadora, nos últimos anos. O gênio criador de nossa gente, o estímulo oferecido pelas políticas públicas de cultura do governo Lula às expressões culturais populares nos autorizam a acreditar que as sementes para um novo movimento cultural estão sendo lançadas. Cabe ao partido estimular e articular essas novas experiências estéticas que brotam da sociedade e inventar os espaços adequados para um diálogo entre elas e o novo projeto de Brasil para o século XXI.

As sínteses políticas que produzimos são precárias, talvez porque sempre estimulamos mais a liberdade de pensar e exprimir do que propriamente organizar, sistematizar o vivido e o pensado. Em um quarto de século, o PT jamais contou com um veículo de comunicação de massas com credibilidade – e durabilidade – suficiente para fazer chegar sua leitura e sua opinião sobre os acontecimentos diários do país e do mundo. Mantém, há dezoito anos, uma revista voltada para a discussão política e ideológica, “Teoria & Debate” de qualidade reconhecida, mas de alcance extremamente restrito. Desse modo, a face do PT sempre se mostrou difusa, sem contornos muito nítidos diante dos cidadãos e mesmo da sua própria militância. Fomos identificados mais como um partido combativo, aguerrido, para alguns, sectário e messiânico; e menos pelo conteúdo das posições que defendíamos, com ânimo combativo, de forma aguerrida, sectária ou mesmo messiânica… Ou seja, ficamos conhecidos mais pela forma enfática com que lutávamos do que pelos objetivos que buscávamos alcançar.

O documento “O socialismo Petista” que abre as resoluções aprovadas no 7º. Encontro Nacional, em 1990, se constitui como uma das sínteses mais completas e duradouras que produzimos a respeito do que definimos como uma “cultura política” específica do Partido dos Trabalhadores. Uma síntese que permanece como sólida referência teórica e política para enfrentar o que designamos em artigo anterior (“Identificar a crise de valores”) como a “dessacralização do partido”, decorrente da crise exposta em 2005. É muito feliz e atual a formulação: “Quisemos evitar tanto o ideologismo abstrato, travo elitista da esquerda tradicional brasileira, quanto o pragmatismo desfibrado, característico de tantos outros partidos. De nada nos serviria um aprofundamento ideológico puramente de cúpula, sem correspondência na cultura política real de nossas bases partidárias e sociais.” Revela uma compreensão madura da natureza política e não ideológica – no sentido doutrinário – que tornou possível erguer e consolidar o Partido dos Trabalhadores. E projeta, a respeito da nossa identidade socialista e democrática, um desenho que ainda não superamos ao afirmar que “O PT não concebe o socialismo como um futuro inevitável, a ser produzido necessariamente pelas leis econômicas do capitalismo. Para nós, o socialismo é um projeto humano cuja realização é impensável sem a luta consciente dos explorados e oprimidos. Um projeto que, por essa razão, só será de fato emancipador na medida em que o concebemos como tal: ou seja, como necessidade e ideal das massas oprimidas, capaz de desenvolver uma consciência e um movimento efetivamente libertários. Daí porque recuperar a dimensão ética da política é condição para o restabelecimento da unidade entre socialismo e humanismo.” O debate cultural que desejamos suscitar em torno da elaboração do programa de governo para responder às tarefas políticas imediatas da disputa eleitoral, não se separa daquele que devemos conduzir na preparação do III Congresso do Partido. Afinal a experiência nos ensina que não há transformação sem cultura transformadora assim como não há revolução sem teoria revolucionária.

*Hamilton Pereira (Pedro Tierra) é Presidente da Fundação Perseu Abramo e Secretário Executivo da área de Cultura do Programa de Governo.

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