Estamos assistindo diariamente todas as rupturas decorrentes do golpe que, na verdade, se iniciou com a retirada da presidenta Dilma do poder. As diversas alterações legislativas que reduzem direitos do cidadão, são, quase sem exceção, inconstitucionais. Isso porque o valor social do trabalho é um fundamento do Estado Democrático de Direito Brasileiro, conforme podemos verificar no Artigo primeiro, inciso IV da Constituição. Interessante perceber que a livre iniciativa aparece nesse mesmo inciso.

Em outras palavras, a CF limita a livre iniciativa com o valor social do trabalho, e esse é o primeiro dos inúmeros “recados de bem-estar social” dados pelo maior instrumento do ordenamento jurídico. Em outro recado, no seu terceiro artigo, a Constituição afirma que são objetivos fundamentais do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a redução das desigualdades sociais.  Em todos os debates a respeito dos direitos humanos no mundo, aparece como princípio fundamental a irredutibilidade dos direitos já conquistados para a proteção social da cidadania e da humanidade.

No entanto, não é preciso relembrar, mas apenas esses elementos já apontam que não vivemos o nosso melhor período no que diz respeito ao estado democrático de direito. O estado de golpe que vivemos nos diz com clareza que não há preceito constitucional sólido o suficiente para ser respeitado, independente das pressões políticas e/ou econômicas.

O que o golpe fez com a terceirização, no entanto, foi ameaçar toda a estrutura das relações de trabalho no Brasil, e é sobre isso que vamos falar dessa vez. De uma técnica legislativa pobre, o processo legislativo do PL 4302/98, aprovado na última semana, se iniciou no governo Fernando Henrique Cardoso. Curioso perceber que, já em transição para o primeiro mandato do presidente Lula, no final de 2002, o projeto ganhou regime de urgência em sua tramitação. Ele trata de modificações na CLT nos artigos a respeito de trabalho temporário, e insere, vergonhosamente, uma pretensa regulamentação da terceirização.

Um simples juízo constitucional sério já seria capaz de ferir de morte o prosseguimento do processo legislativo que encerrou a sua etapa no Congresso Nacional. No entanto, como se não bastasse, a sanha golpista e precarizante atingiu seu ápice jogando mais de doze milhões de relações de emprego no Brasil em uma total insegurança.

O desespero legislativo criou uma lei fraca e sem nenhuma ascendência tecnicamente respeitável. São inúmeros dispositivos legais, jurisprudenciais e de doutrina que podem facilmente desmontar de maneira irreversível tamanha estupidez.

Apenas sobre a terceirização, tocaremos em dois pontos. A lei encaminhada para sanção presidencial fala que a prestação de serviços de uma terceirizada deverá ser “determinada e específica”. Isso vale para a natureza econômica da prestadora de serviços, para o contrato de trabalho a ser firmado por ela e para o instrumento contratual entre a empresa primária e a terceirizada, ou ainda entre a terceirizada e a quarteirizada.

No entanto, a grande maioria das atividades econômicas terceirizadas no Brasil, segundo a nota técnica 172 do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese)  de março de 2017, são atividades exatamente não determinadas e não específicas. Por exemplo: atividades de apoio, atividades auxiliares, outras atividades, suporte técnico, outras atividades de prestação de serviços, serviços combinados e, pasmem, atividades de serviços prestados principalmente às empresas, não especificadas anteriormente, entre outras.

Isso nos faz crer, com certo grau de lógica aplicada, que a lei, na verdade, lança na ilegalidade a grande maioria das atividades terceirizadas do Brasil, ao invés de gerar segurança jurídica sobre elas.

Ainda mais, com o mínimo de coragem, o conceito balizador da terceirização consolidado pelo Tribunal Superior do Trabalho de vedação à terceirização de atividade-fim pode ser mantido na aplicação do Judiciário. Isso porque carecem de sofisticação jurídica os termos “específicas e determinadas”. Caberá, mais uma vez, ao poder judiciário determinar o que é um contrato ou uma atividade empresarial específica e determinada. O que podemos afirmar com certo grau de certeza é que as atividades hoje prestadas por terceiras em sua grande maioria não são específicas e determinadas.

Pra piorar, se a atividade deve ser específica e determinada, poderemos afirmar também com tranquilidade que, ainda que terceirizada, a atividade não poderá ser enquadrada no termo vago de “prestação de serviços”, o que lançará os trabalhadores e empresas a uma incerteza generalizada com relação à representação sindical. Ainda sem regulamentação, a prática da terceirização ganhou certo terreno na realidade brasileira. Essa realidade apontou para diversos problemas de representação, já que a lógica sindical brasileira aponta para a relação entre representante e representado no parâmetro da atividade econômica. Ora, terceirização não é uma atividade econômica, mas sim uma delegação de tarefas dada por uma empresa que, ela sim, realiza uma atividade econômica.

Assim, diversos sindicatos foram criados de forma a abranger as empresas terceirizadas de forma genérica, como “sindicatos de trabalhadores de empresas prestadoras de serviço”.  Se a categoria representada é genérica, e o texto legal  aprovado determina que as atividades terceirizadas devem ser específicas e determinadas, podemos entender que esses sindicatos não representarão a terceirização regulamentada.

O fato é que a lei aprovada cria uma enorme confusão na questão da representação sindical, mas de nenhuma forma revoga o conceito de atividade econômica (ao menos preponderante) para regular a representação.

Assim, aquilo que parecia se consolidar no processo de terceirização do Brasil até a semana passada acaba de cair por terra: sindicatos de categoria econômica não determinada e específica não poderão representar os “novos terceirizados”. Quem representará?

Essa é uma pergunta difícil no momento em que percebemos que o homem que diz ocupar a presidência da República não representa, em nenhum sentido, sequer no eleitoral, a vontade da democracia brasileira. Essa é mais uma das inúmeras batalhas que precisarão ser travadas ao menos até o restabelecimento da ordem democrática brasileira. Seguimos.

Antônio Carlos Carvalho* é advogado e integra o grupo técnico de análise da conjuntura da Fundação Perseu Abramo

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