Resistência: na defesa da democracia participativa, diversa e inclusiva
O cenário político do Brasil do pós-golpe apresenta uma reconfiguração que expressa tanto o deslocamento de partidos e lideranças partidárias que se situavam ao centro, em direção à direita, quanto o caminho reacionário que impõe a austeridade do ajustamento das políticas neoliberais e a lógica do rebaixamento das relações e das práticas democráticas. Esse é um contexto perigoso em que ocorre a perseguição e criminalização de partidos, movimentos e lideranças de esquerda para frear a reação popular e estabelecer a apatia no lugar da pluralidade de concepções e práticas políticas, reascendendo fortes tensões entre os campos de esquerda e de direita no país.
Evidenciando a politização de uma conjuntura marcada por intensos confrontos entre setores que demarcam concepções ideológicas, a distinção entre esquerda e direita, bem como a atribuição de sentido a cada um desses campos passou a integrar os discursos políticos, suas análises, propostas e informações, desveladas ou ocultadas. Em que pesem as controvérsias que interrogam a natureza e a complexidade desses conceitos, tais terminologias direita e esquerda estão presentes nas eloquentes manifestações de cada lado. Esse debate, se por um lado mostra fragilidades em apontar os elementos do confronto em torno de posições relativas ao sistema político, econômico e social, de outro revela a manipulação que visa imprimir uma qualificação da direita como “gente do bem, eficiente e honesta”, em oposição à esquerda.
A simplificação grosseira, da qual se depreende uma visão essencialista ou divina que ungiria a direita de pretensa superioridade, bem como a indiferença que nega as evidências da arquitetura do golpe de 2016, tem sido o mote da maior parte das manifestações golpistas. Ainda que uma simplificação similar seja algumas vezes utilizada para caracterizar “virtudes” da esquerda, é evidente o caráter fascista que assume a direita no mundo, onde se agravam as desigualdades e crescem posições antidemocráticas. Com a força de quem aumentou seu domínio, líderes de extrema direita proclamam uma política marcada pela cultura do ódio, incitando a descaracterização, a expulsão e até a extinção de seus adversários políticos.
Tudo isso trás à tona a questão das diferenças políticas. Em Direita e Esquerda – razões e significados de uma distinção política, Norberto Bobbio avalia que a identificação com bases nessa divisão entre dois campos é simples, porém não simplista. Compreende que no universo conflitual da política essa distinção é uma fiel representação da realidade, uma vez que a tendência de se alinhar nas situações em que há dois lados em luta é um comportamento mais natural que o de se colocar fora deles. Uma neutralidade, nesse caso não existe. Seu estudo referenda a igualdade como o critério fundamental adotado na distinção entre direita e esquerda, ou seja, a esquerda e m sua perspectiva igualitária busca a eliminação das desigualdades socialmente construídas e a direita fundada em posições inigualitaristas defende a manutenção de desigualdades tidas como naturais e benéficas.
As escolhas e as divisões políticas não foram agora reintroduzidas, muitas vezes foram escamoteadas, porém não desaparecidas. Em momentos de rupturas ficam mais nítidas as diferenças entre os partidos que, com impressionante agressividade, deixam à mostra sua face classista, racista, sexista, misógina, xenofóbica, homofóbica e transfóbica. Como uma verdadeira máquina de extermínio dos direitos econômicos e sociais, a direita se lança ao ataque contra tudo que não interessa ao capital, a legislação trabalhista e previdenciária, a educação e a saúde públicas e democráticas, enfim, o conjunto das políticas sociais. Como resultado desses retrocessos democráticos temos uma sociedade com mais discriminação e exclusão, a degradação da cultura cidadã.
A derrubada da presidenta Dilma Rousseff no Brasil, trata-se, sem dúvida, de um brutal processo de quebra da democracia para a instalação de um poder político guiado por um alinhamento exclusivo à lei do mercado. Também, a proliferação de estratégias jurídicas, midiáticas e de repressão objetiva a eliminação da esquerda do ambiente político, bem como a construção de uma narrativa de marginalização das lideranças e iniciativas do democrático governo popular, de 2003 a 2016. A direita precisa apagar o legado da esquerda, desfazer a identidade popular com a política inclusiva que esse período representa e anular sua força mobilizadora.
Contudo esse não é um momento isolado do Brasil. Em recente artigo, “A era do humanista está terminando”, o historiador pós-colonial Achille Mbembe, afirma que a democracia se tornou ameaça para um mundo centrado no lucro, que converte a política em negócio, uma competição cujos fatos não importam. Assim, explica uma crescente posição anti-humanista em um ambiente de desprezo pela democracia e crescente desigualdade, onde, sob diversas modulações, o apartheid será restaurado.
“Sua restauração abrirá caminho para novos impulsos separatistas, para a construção de mais muros, para a militarização de mais fronteiras, para formas mortais de policiamento, para guerras mais assimétricas, para alianças quebradas e para inumeráveis divisões internas, inclusive em democracias”.
Em “A Difícil Democracia: reinventar as esquerdas”, Boaventura Souza Santos, ao analisar ao resultado da tensão entre a democracia e as sociedades capitalistas modernas no contexto global, identifica que as democracias perderam sua intensidade, se tornando mais capitalistas colonialistas e patriarcais, vindo a constituir o que denomina como um “fascismo social”, ou seja, quando os indivíduos e grupos sociais se tornam alvos de decisões unilaterais dos detentores do poder.
“A concentração de riqueza e a degradação dos direitos econômicos e sociais estão fazendo com que o círculo de reciprocidade cidadã se estreite e cada vez mais cidadãos passem a viver na dependência de grupos sociais poderosos que tem direito de veto sobre seus modos e suas expectativas de vida, sejam eles, filantropos, narcotraficantes, latifundiários, industriais, empresas de megaprojetos e de mineração” (Santos, 2016).
Portanto, o momento é de alerta para o crescimento da extrema-direita no mundo, que objetiva aprofundar a exclusão reduzindo a democracia a um mero formalismo. Mas, também é um momento de indagação sobre o papel das forças de esquerda no enfrentamento ao projeto neoliberal. No Brasil, a direita teve um crescimento preocupante após o golpe, não apenas pela conquista de determinados governos, o que seria próprio da alternância em uma democracia, mas por assumir o domínio e estabelecer o controle absoluto das instituições do Estado.
A escalada de artimanhas golpistas é escandalosa. A cada dia um fato novo. Explicativo é o caso do Ministro do STF Teori Zavaski que era relator das delações da operação que investiga corrupção no país. Às vésperas de divulgar seu relatório, o juiz sofre um acidente aéreo muito suspeito e morre, a investigação do caso é pífia e a imprensa ignora sua gravidade; depois de pressão popular as delações foram homologadas, porém mantidas em sigilo pela presidenta do STF em evidente proteção aos partidos da direita que sustentaram o golpe; por fim, o presidente ilegítimo Michel Temer indica um Ministro do seu governo, filiado ao PSDB, para assumir a vaga aberta na Suprema Corte, em um ato de desespero para estagnar as investigações contra ele próprio e outros membros do seu governo.
Também há uma vergonhosa relação com uma imprensa imoral que fez ativa propaganda do golpe e depois foi recompensada como a elevação estrondosa dos recursos advindos do governo federal. A síntese da grande imprensa é a postura indiferente no que se refere aos atos de desrespeito constitucional, o desprezo às denúncias contra as medidas que eliminam os direitos econômicos e sociais, a perseguição sistemática aos partidos de esquerda, divulgando amplamente, e sem provas, qualquer suposição sobre suas lideranças e a minimização de fatos gravíssimos que mostram o envolvimento direto da cúpula no Poder nos principais casos de corrupção, como o presidente ilegítimo e líderes da direita, especialmente do PSDB.
Esse é o difícil quadro do pós-golpe no Brasil. A direita enquadra as instituições do Estado para a garantia da continuidade do jogo de poder que sustenta as práticas de corrupção e as medidas ultrarreacionárias como o congelamento dos recursos da educação e saúde, e a reforma da previdência. A esquerda, por sua vez, está diante do grande desafio de resistência ao golpe, de não sucumbir aos massacres do neoliberalismo e à redução da política a uma falsidade representativa. Essa é uma resistência sem trégua às manobras antidemocráticas e de subserviência ao grande capital, uma tarefa que não é simples porque exige desfazer as ciladas e os disfarces usados pela direita para ao mesmo tempo em que retira os direitos e reduz as políticas sociais, assumir a funções protetoras de setores que torna vulnerável.
Vale lembrar as palavras do ex-ministro Eugênio Aragão quando disse que ao golpe não se faz oposição e sim o combate. O combate se faz ao lado das forças políticas identificadas com a defesa da democracia participativa, diversa, inclusiva, junto ao conjunto de forças situadas nas lutas contra a destruição do Estado social, no embate contra hegemônico no âmbito das comunicações e das diversas esferas da produção cultural, no enfrentamento à interferência religiosa nas políticas de Estado, nas lutas feministas, LGBTs, antirracistas, dos povos indígenas, pela terra, sustentabilidade socioambiental, pela inclusão de pessoas com deficiência e outras de enfrentamentos às diversas formas de discriminação, segregação e exclusão.
* Paulo Pimenta é jornalista e deputado federal pelo PT-RS.