Eleições nos Estados Unidos
Ainda durante o processo de primárias, o sucesso de candidaturas pouco convencionais para o padrão dos Estados Unidos, como Donald Trump e Bernie Sanders – apesar das posições opostas no espectro político – lançou alguma luz sobre o empobrecimento dos trabalhadores e sobre o crescimento drástico das desigualdades sociais no país.
No caso de Trump, o discurso talhado para a classe média e trabalhadora branca, focado na piora de seus níveis de vida e no preconceito contra imigrantes, é visto como uma das causas de sua popularidade, frente ao descontentamento com aqueles tidos como representantes do establishment político, como seria o caso de Hillary Clinton. De forma semelhante a alguns países europeus, que também experimentam o crescimento de forças políticas de direita e extrema-direita, o empobrecimento dos trabalhadores e as consequências profundamente excludentes do processo de globalização neoliberal das últimas décadas são elementos capitalizados pelo conservadorismo.
Por outro lado, as primárias viram também o sucesso inédito de uma candidatura mais à esquerda dentro do partido democrata, com a alta popularidade obtida pelo senador Bernie Sanders. A dificuldade de acesso à educação superior, aos serviços de saúde e a crescente precarização do trabalho, principalmente entre os jovens, estiveram entre as propostas de maior apelo da pré-candidatura Sanders e levaram a algumas concessões de Clinton – pelo menos no âmbito do discurso – em torno de temas como a seguridade social, os acordos de livre comércio e o sistema de saúde.
Para além dos discursos de campanha, há grande ceticismo sobre a real disposição dos candidatos alterarem as políticas adotadas nas últimas décadas, dada a captura das estruturas institucionais por parte das grandes corporações. Segundo informações da revista The Atlantic (How Corporate Lobbyists Conquered American Democracy, 25/4/2015), as corporações gastam por ano cerca de US$ 2,6 bilhões em lobby na Câmara e no Senado, o que supera o orçamento das duas casas legislativas. Das cem organizações que mais gastam em lobby, 95 representam corporações. Houve nas últimas décadas mudanças significativas na forma pela qual as corporações interagem com o Estado, na medida em que crescentemente suas agendas estão no interior das estruturas institucionais e buscam colocá-las a serviço de seus negócios. Esta situação é clara, por exemplo, quando observamos as negociações de acordos comerciais (como o TPP, o TTIP e o TiSA): enquanto as organizações da sociedade civil denunciam a total falta de transparência, representantes das grandes corporações têm assento garantido ao lado dos negociadores governamentais. Para além das diferenças dos discursos de campanha dos candidatos Clinton e Trump, a pressão dos grandes lobbies financeiros e empresariais têm se refletido em políticas que parecem transcender as divisões partidárias (tanto em negociações de acordos de comércio e investimentos, quanto em intervenções militares ao redor do mundo).
No plano doméstico, os dados apontam o crescente empobrecimento dos trabalhadores, a precarização do emprego e a elevação dos níveis de concentração de renda e riqueza. Embora a economia exiba indicadores de recuperação, os níveis de renda e bem-estar seguem abaixo do patamar anterior à eclosão da crise em 2007 (que por sua vez já estavam entre os mais baixos desde o final dos anos 1970).
Emprego, renda e desigualdade
Apesar dos aparentes bons números do mercado de trabalho nos EUA – o desemprego tem se mantido em torno dos 5% nos últimos meses, conforme indicam as medições do Escritório de Estatísticas Trabalhistas de setembro – a recuperação dos salários ainda não atingiu os níveis pré-crise e a desigualdade de renda cresceu dramaticamente nas últimas décadas. Sem desconsiderar o profundo impacto da crise de 2007, diversos estudos mostram que a tendência ao empobrecimento e à precarização do trabalho remonta ao final dos anos 1970, com drástica queda nos empregos industriais e crescente disparidade entre o ganho de produtividade e a remuneração do trabalho.
A taxa de desemprego atual de 5% não leva em conta a queda na participação da força de trabalho, que está em declínio desde 2000. Excluindo as pessoas potencialmente aposentadas e, se considerados apenas os trabalhadores com idade entre 25 e 54 anos, a participação da força de trabalho caiu cerca de 4% entre 2000 e 2016. Estes 4% correspondem à população que, apesar da idade, encontra-se excluída do mercado de devido a condições estruturais de desemprego.
Segundo o 12º relatório do think-tank Instituto de Política Econômica, de 1979 a 2007, 38,3% do crescimento total da renda foi para a parcela 1% mais rica da população, enquanto 36,9% para os 90% mais pobres. No mesmo período, os salários cresceram 156% para o segmento 1% mais rico e 17% para os 90% da base. O relatório aponta ainda uma crescente disparidade entre a produtividade e os salários: enquanto a primeira cresceu 69,2% entre 1979 e 2007, a compensação média por hora de trabalho cresceu 7%. Estes números estão associados à erosão do poder de compra do salário mínimo, a práticas hostis ao sindicalismo, à integração à economia global, à desregulamentação de uma série de setores (como comunicações, logística e companhias aéreas) e às privatizações, que juntos colocaram enorme pressão sobre os salários da grande maioria da população. Por outro lado, a desregulamentação do mercado financeiro e as reduções de impostos deram condições para o crescimento desigual da renda e da riqueza da parcela correspondente ao 1%.
Entre 2002 e 2011, a produtividade aumentou de 18,5% para 37,6%. No mesmo período, a compensação real por hora de trabalho caiu de 13,9% para 12,6% para os trabalhadores com ensino superior completo e de 8,7% para 6,2% para aqueles com ensino médio.
Segundo o último censo, 15,3% da população vive abaixo da linha da pobreza, o que equivale a cerca de 47 milhões de pessoas. O índice alcança 26,2% na população afro-americana e cai para 10,1% entre os brancos. Desde o final dos anos 1970, indicadores apontam a perda de metade dos empregos industriais, que passaram de um quinto dos postos de trabalho para aproximadamente 11% em 2010 (The State of American Labour, junho/2016). No desenrolar da crise iniciada em 2007, embora a recuperação do emprego industrial tenha sido mais rápida nos EUA se comparada com a Europa, por exemplo, tem sido ainda a mais fraca desde a Segunda Guerra Mundial, segundo dados do Economy Policy Institute.
Em paralelo, de 1990 a 2010 estima-se que tenham sido criados oito milhões de empregos no setor de serviços, que tendem a prover menor remuneração e condições mais precárias, como vínculos empregatícios ambíguos ou terceirizados. Apesar disso, os postos de trabalho na indústria também passam por mudanças, com a concentração em grandes centros urbanos, a partir de fusões crescentes entre empresas desde 1980. Setores diversos como a produção de autopeças, de carne, logística, telecomunicações e empresas de varejo, como o Walmart e a Amazon, exibem esta concentração. Se por um lado há claro crescimento das jornadas de trabalho parciais, por outro os empregadores usam mais jornadas parciais (que diminuem custos com benefícios médicos e pensões). Neste sentido, a precarização não está limitada aos efeitos da última crise econômica, mas associada à própria reestruturação do capitalismo em sua fase neoliberal.
Os dados sobre desigualdade de renda e riqueza são mais alarmantes se olhados pelo prisma dos trabalhadores afro-americanos. Segundo o relatório de setembro do Escritório de Estatísticas Trabalhistas, embora a participação na força de trabalho seja semelhante, o desemprego entre os afro-americanos é quase o dobro da taxa entre os brancos (8,3% e 4,4% respectivamente).
Em 1992 – ano no qual a disparidade de riqueza entre lares brancos e afrodescendentes foi o menor registrado – os lares médios de afro-americanos alcançavam apenas 16,8% da riqueza dos lares brancos. Este número caiu para 5% em 2010, após a queima de sete trilhões de dólares com a explosão da bolha imobiliária (47% das hipotecas para hispânicos e 53% das hipotecas para afro-americanos eram subprime, quase o dobro da taxa para brancos). Com relação à renda, a diferença bruta entre famílias médias chega a 131 mil dólares, a maior desde 1989.
Restrições ao direito de voto
Em paralelo à desigualdade socioeconômica, a maior vulnerabilidade e exclusão desta parcela da população se verificam ainda em violações constantes de direitos civis e políticos, que incluem os casos sistemáticos de violência policial. Em meio à crescente visibilidade dos protestos contra o assassinato de afro-americanos pelas forças policiais em diversos estados e às vésperas da eleição presidencial, diversos movimentos sociais têm exposto as relações perversas entre a exclusão socioeconômica, o racismo, o encarceramento em massa e negação do direito de voto para uma parcela significativa da população.
Embora o baixo comparecimento às urnas seja tratado por boa parte da mídia como desinteresse individual, movimentos sociais recentes (como o Black Lives Matter) e tradicionais (como o National Association for the Advancement of Colored People/NAACP) têm demandado a restauração dos direitos civis e políticos da população negra e apontam o crescimento de uma tendência histórica de exclusão deste segmento da sociedade.
Para esta eleição, um relatório da organização Sentencing Project aponta que 6,1 milhões de americanos estão proibidos de votar devido ao cumprimento de algum tipo de pena. Vale ressaltar que a suspensão do direito de voto não se restringe apenas àquelas pessoas que cumprem atualmente penas: diferentes formatos de leis estaduais retiram os direitos para quem está em liberdade condicional ou mesmo para quem já cumpriu pena no passado e foi inteiramente reintegrado à comunidade. As primeiras leis para a supressão do direito de voto surgiram após a guerra civil para impedir o voto de ex-escravos. Outro elemento que restringe o direito de voto é a falta de determinados documentos de identidade exigidos para a votação, mas de difícil acesso (seja pelo custo ou pela burocracia). Estima-se que cerca de nove milhões de pessoas estejam nesta situação.
Aproximadamente 2,5% da população do país não têm direitos políticos devido a condenações passadas. Isso significa que um em cada treze afro-americanos estão impedidos de votar, número quatro vezes maior que a taxa de brancos: 7,4% dos adultos afro-americanos encontram-se nesta situação, em comparação a 1,8% dos brancos.
Segundo dados da organização da NAACP, de 1980 a 2008, a população carcerária dos EUA subiu de 500 mil para 2,3 milhões de pessoas, das quais um milhão são afro-americanas. Americanos negros são em média presos seis vezes mais que brancos. Em New Jersey, a proporção chega a 12,2 negros para cada branco, seguido por Wisconsin, Iowa, Minnesota e Vermont. Juntos, negros e hispânicos respondem por 58% da população carcerária, embora sejam apenas 25% da população segundo o censo. Maine e Vermont são os únicos estados que permitem pessoas presas a votar. Trinta e quatro estados proíbem o voto para pessoas em liberdade condicional e doze estados negam os direitos mesmo para quem já cumpriu suas pendências com a justiça. Segundo o Sentencing Project, apenas 23% dos que estão inabilitados ao voto estão presos, enquanto 77% já vivem em suas comunidades (51% já completaram a sentença e 26% estão sob algum tipo de liberdade condicional ou em regime semiaberto).
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