Texto focaliza ações que podem realizar governos interessados em reorientar a relação Estado-sociedade (daqui para frente, mudancistas, em oposição aos conservadores)

Por: Renato Dagnino

Este texto focaliza ações que podem realizar governos interessados em reorientar a relação Estado-sociedade (daqui para frente, mudancistas, em oposição aos conservadores) no sentido de possibilitar que novos integrantes da burocracia, compreensivelmente pouco propensa a transformações desta natureza, sejam expostos a um saber que contribuam para a implementação de seu projeto de governo.

Desde Paulo Freire, pelo menos, as forças mudancistas têm apontado o caráter ideologicamente enviesado da educação que recebemos. Seu método de alfabetização, não por acaso, tem sido extensamente empregado por governos e organizações mudancistas.

Na universidade, onde esse caráter tem sido largamente denunciado, ele já havia sido o estopim da Reforma de Córdoba, na Argentina, em 1918. No Brasil, ele foi um dos causadores do movimento pela reforma universitária iniciado no começo dos anos sessenta e que, depois do golpe cívico-militar, foi distorcido e “pasteurizado”; inclusive mediante a ingerência dos EUA com o acordo MEC-USAID. Foi ele também que sinalizou o caminho por onde passou a radicalização do movimento estudantil que desaguou na mobilização mudancista e na luta política que engatilhou a democratização.
 
Esse caráter enviesado da educação formal em favor das forças conservadoras (cujos valores e, principalmente, interesses, são beneficiados pelo status quo e que por isto o defendem opondo-se a mudanças) se manifesta na universidade de modo sutil. É o que acontece nas chamadas ciências exatas (engenharias, etc.) e da saúde. Ou nem tanto, como sucede nas ciências humanas, como a administração, que é a que aqui se focaliza. Em qualquer caso, ele “inocula” nos profissionais um saber (aqui entendido como uma composição de três elementos – cultura, marco analítico-conceitual e instrumentos metodológico-operacionais – nesta ordem heurística de derivação) que tende a reforçar, obscurecer e até naturalizar os privilégios dos que integram os setores conservadores de nossa sociedade.

Uma parte dos jovens que logram inserir-se no mercado formal de trabalho (cada vez mais restrito, há que reconhecer) ocuparão cargos de gestão. Os que se formam em administração de empresas (que são 170 mil por ano) irão empregar os instrumentos metodológico-operacionais que adquiriram que poderão lhes proporcionar uma vida confortável. A cultura – socializada através do “currículo oculto” – e o marco analítico-conceitual – este modo particular de perceber, explicar a realidade e de atuar (ou não) sobre ela -, ao bloquearem autocríticas, garantirão que sua vida seja, ademais, psicologicamente tranquila. O modelo de gestão privada que aprendem na universidade que, praticando, vão aperfeiçoar, é inteiramente funcional para suas atividades.

Mas há os jovens que vão precisar conhecer gestão pública. São os que preferem atuar no Estado. Muitos deles, por visualizá-lo como responsável por promover políticas que atenuem a tendência inerentemente excludente do mercado, vão precisar conhecer o componente de gestão governamental que integra a gestão pública. Há também os que, por razões similares, optam por se incorporar à miríade heterogênea de organizações que alavancam os movimentos sociais mudancistas e que precisarão do outro componente, a gestão social. O saber que possuem, mesmo quando pertencem ao contingente formado pelos 500 que se graduam anualmente em administração pública, tampouco parece adequado para atender suas expectativas.

Desde logo há que ressaltar que os muitos intelectuais mudancistas que tratam do tema alertam que não há que cair em determinismos. Em particular por que, se o viés conservador da universidade fosse absoluto eles próprios não existiriam. E, em geral, porque a função de “levedura” da estudantada tributária de uma cultura e de um marco analítico-conceitual mudancistas que celebrizou a cantautora chilena Violeta Parra, não seria possível.

Apesar dos proverbiais conflitos entre os “desumanos” e os “inexatos” que habitam a universidade, que é onde se reproduz e propaga o saber de que estou falando, eles possuem pouca consciência sobre o quão ideologicamente enviesado ele é. Por ser universalmente reconhecido como ciência e por ser um “ativo meritocrático” diferenciador custosamente adquirido, ele raramente é questionado. Nem mesmo os mestres mudancistas das ciências humanas – os “inexatos”- quando se referem às ciências exatas, alertam sobre o caráter não neutro da tecnociência alimentada pelos “desumanos”. E isso apesar de que ele, além de contrariar seu viés mudancista, os penaliza profissionalmente dada a hegemonia dos “desumanos” nos processos decisórios das políticas públicas que tratam do conhecimento.

Tendo me referido à educação formal que, por inclusão, recebem os servidores públicos, passo a tratar de sua relação com os poderes do Estado. Todos os três (e também o quarto poder, a mídia) são ocupados, quase sem exceção, por pessoas que passaram por universidades onde lhes foi infundido, aquele saber conservador. De fato, salvo os dirigentes políticos das coalizões que governam – que ocupam transitoriamente o cume do poder executivo do Estado -, os que compõem a chamada burocracia estatal e que participam das ações de governo têm essa passagem como primeira condição de entrada.

A segunda condição é terem sido admitidos num concurso que avalia sua capacidade de se adaptar às funções burocráticas dos três poderes. O que é feito mensurando um saber (que pode ser heuristicamente “esquartejado” em cultura, marco analítico-conceitual e instrumentos metodológico-operacionais) conservador, mas tido como necessário pelos outros já burocratas que preparam seus pontos, bibliografia, questões, etc. Por ter sido intensa e arduamente recapitulado, às vezes repetidamente por anos a fio, os aprovados nos concursos passam a valorizar ainda mais esse saber. Ademais de ter sido internalizado durante sua passagem na universidade como verdadeiro, justo e neutro, ele passa a ser o seu principal instrumento de trabalho como servidores públicos ou burocratas.

Mas, como argumentei, esse saber tende a servir de suporte para a reprodução do caráter ideologicamente enviesado – ainda que não percebido ou negado pelas pessoas conservadoras – da “máquina” conservadora do Estado. Ao qual, por ser dotado de elevadas elasticidade, adaptabilidade e resiliência, típicas de um ser vivo que, respondendo a estímulos externos e à sua própria dinâmica (corporativa), esta sempre em mutação, cabe melhor o “prefixo” de “ameba”.

Abordar as coalizões de governo mudancistas, que querem alterar o modo como a sociedade e o Estado se organizam e se relacionam, além de ser o objetivo deste texto, permite deixar mais clara a relação entre o saber dos burocratas e o Estado, e destes com o interesse das forças conservadoras.

É possível que partidos que integram coalizões mudancistas, sobretudo aqueles considerados ideológicos (em oposição aos fisiológicos), tenham se preocupado com anterioridade em proporcionar a seus militantes uma formação ideológica e política coerente com seu projeto político. Quando isso acontece, o conteúdo dessa formação costuma ser de tipo doutrinário fundamentado na contribuição de de autores clássicos de áreas classificadas como Filosofia, Economia Política e Sociologia. Ela tende a estar orientada, e é compreensível que seja assim, mais para conscientizar e mobilizar a população para angariar apoio político e conquistar o poder do que para mantê-lo; isto é para governar. A exceção mais notável é a recente criação, no âmbito da Fundação Perseu Abramo do Partido dos Trabalhadores, de cursos que tratam do tema da Gestão Pública para seus militantes. Ela poderá fortalecer no âmbito dos seus intelectuais orgânicos, em geral muito bem formados naquelas áreas, uma tendência a valorizar a formação em gestão pública.

Em síntese: uma coalizão mudancista enfrentará obstáculos para reorientar a “ameba” e materializar seu projeto de governo. Afinal, ela tem sido retroalimentada ao longo de séculos com um viés conservador. Sua governabilidade, que é inversamente proporcional à ambição mudancista do seu projeto e diretamente proporcional ao seu apoio político e ao que ela sabe sobre como governar (governança), estará sempre ameaçada. Seus dirigentes, por razões a esta altura evidentes, não possuem a capacidade cognitiva – governança – e, por serem novatos, a experiência para “tocar” a “ameba” do Estado. Muito menos para que ela possa alavancar as transformações societárias que desejam.

Os dirigentes de uma coalizão conservadora, ao contrário, terão os três elementos que asseguram a governabilidade – apoio político, governança e conservadorismo do projeto de governo -, atuando a seu favor. Seus colaboradores situados nos três poderes do Estado – tanto os servidores públicos comissionados quanto os de entrada lateral – por deterem aquele saber enviesado, emprestarão aos dirigentes a governança requerida para implementar projetos de governo conservadores e, assim, manter o apoio político que lhes elegeu ou mesmo ampliá-lo, “fazendo” seus sucessores.

Eles navegam (e sabem bem como fazê-lo) no barco bem equipado do “Estado Herdado”, a favor da corrente e com vento a também favorável. O saber que a educação formal proporciona (cultura, marco analítico-conceitual e instrumentos metodológico-operacionais) garante a governança necessária para governar para a elite.

Vou agora tratar dos servidores públicos que possuam a complexa dupla capacidade de “tocar” e reorientar a “ameba” para promover a mudança – para “trocar o pneu com o carro andando” – e que podem auxiliar os dirigentes de uma coalizão mudancista. Para analisar o modo como podem atuar, vou classificá-los em dois tipos.

Há os que são provenientes da classe subalterna ou que, por convencimento, com ela se identificam. Por terem conseguido ultrapassar barreiras tidas como meritocráticas por uma sociedade hegemonizada por valores e interesses conservadores, adquirido a qualificação formal que ela supervaloriza, e o conhecimento exigido pelos concursos que os recrutaram, podem já ter sido cooptados pelo conservadorismo. Mas ainda que isso não tenha ocorrido, eles não costumam perceber que o saber que lhes foi apresentado como neutro e apolítico, que é o que possuem, valorizam e operam no âmbito da “ameba”, não é funcional ao projeto mudancista que defendem como cidadãos.

Os outros, os servidores que por extração de classe ou por arrivismo comungam de um projeto conservador, com maior razão serão disfuncionais para alavancar “por dentro” o trânsito do “Estado Herdado” para o “Estado Necessário”. Aquele que o projeto mudancista ao mesmo tempo requer e precisa ajudar a conformar. Os dois compromissos institucionais dos burocratas – o republicano (colaborar para implementar o projeto da coalizão eleita e que por sito deve governar) e o cidadão (privilegiar aqueles que “pagam” via imposto o seu salário, e que numa sociedade conservadora costumam ser os mais pobres) – tendem a ser anulados pelo terceiro: o ideológico (que implica apoiar ou solapar projetos de governo que não lhes agradam). Por ser obscurecido pelo conservadorismo que associa meritocracia à neutralidade, ele tende a ser desconsiderado pelas forças mudancistas. O que, como muita frequência, é fatal para a implementação de seu projeto.

Tendo tratado das relações entre a educação formal e a burocracia, e tipificado, ainda que caricatamente, sua composição, tento agora responder à pergunta que me interessa. Que poderia fazer uma coalizão mudancista para alcançar um estilo de gestão governamental capaz de assegurar sua governabilidade? Isto é, como teria que desenvolver a governança necessária para implementar seu projeto de governo, diminuir as ameaças à governabilidade e incrementar seu apoio político para seguir avançando?

A resposta não é a promoção de alterações na educação formal que a tornem menos conservadora. Essa ação, ainda no caso pouco provável de que essa coalizão possua força política para neutralizar as corporações conservadoras que a controlam e implementá-la só terá resultados a muito longo prazo. Entre outras coisas porque essa ação envolve uma cadeia que supõe a formação de professores e pesquisadores mudancistas capazes de formar profissionais de novo tipo e que estes se sintam atraídos a candidatar-se a ocupar cargos públicos e que para tanto sejam aprovados.

Utilizando os termos que venho concebendo para a formação de gestores públicos, posso por isso afirmar, sem minimizar a importância do “nó explicativo” do problema – “educação formal conservadora” -, que ele não é um “nó estratégico” (aquele que se pode atacar de imediato) do modelo que explica o problema das coalizões mudancistas: “escassez de profissionais para implementar seu projeto de governo”.

Por isso, destaco um “nó explicativo” que considero estratégico na perspectiva de uma coalizão que esteja governando: “concursos favorecem candidatos com formação conservadora”. Ele é estratégico porque amenizaria o problema e poderia ser “desatado” sem o apoio de outros atores por intermédio de ações que essa coalizão pode implementar.

Duas ações devem ser nesse sentido ressaltadas.  A primeira, que teria uma motivação semelhante àquela que comentei antes e que originou a criação de cursos de especialização em gestão pública para militantes seria ´reorientar as Escolas de Governo´ situadas nos níveis de governo federal, estadual e municipal que prevê a Constituição de 1988. Essa ação permitiria que, num prazo relativamente curto, pessoas que por serem formadas numa perspectiva visão crítica à gestão pública conservadora teriam que conhecê-la até melhor do que outros candidatos.

Embora essencial e quase evidente, a atuação dos governos mudancistas nesse sentido tem sido extremamente tímida. Além de razões como as que apontei acima, que encobrem o fato de que seja necessário um conhecimento enviesado numa direção distinta da hegemonicamente conservadora para governar de modo mudancista, parece haver um receio por parte desses governos de serem acusados de “aparelhar ideologicamente” um Estado tido como neutro.  É importante destacar que alguns governos conservadores, ao atuar de modo contrário, mostraram o quanto isso é importante para a consecução de seus objetivos. É o caso das coalizões conservadoras que governaram o Estado de Minas Gerais até há alguns anos. O sistema que implementaram, que entre outras coisas forma já na graduação os gestores com o viés desejado para ocupar a “ameba” em condições de ensino e pesquisa que só encontram paralelo na Escola de Administração Pública francesa, permitiu a instalação de um circulo virtuoso que vai da governança para a governabilidade passando e retroalimentando o apoio político.

A segunda ação teria também a motivação
sera Elas poderiam ´reformatar os concursos públicos` – os pontos que devem ser preparados pelos candidatos, a bibliografia que recomendam, as perguntas que formulam – de modo a convidá-los a adentrar a um território distinto daquele conservador em que foram formados como profissionais e, em muitos casos, socializados como cidadãos. Além de possibilitar aos futuros gestores públicos a aquisição de um saber mais aderente à mudança, isso permitiria o recrutamento de pessoas mais simpáticas a projetos de governo mudancistas.

Aquilo que aprenderiam para preparar-se para o concurso, os três componentes de uma nova gestão pública – a cultura mudancista, e o marco analítico-conceitual e os instrumentos metodológico-operacionais a ela aderentes – passaria a ser o saber que passariam a valorizar, que colocariam em prática durante sua vida profissional e que reforçaria seus compromissos institucionais, republicano e cidadão.

Seria então possível superar o círculo vicioso que tem em concursos que, com suas regras, temas, bibliografia, perguntas e avaliação positiva para as mesmas respostas com viés conservador, tendem a alimentar e reforçar o que se busca mudar.

O ataque a esse “nó estratégico” relativo aos concursos poderia desencadear no médio prazo um processo de mudança na atuação do Estado, nas suas características, e na forma como ele se relaciona com a sociedade. Simetricamente, ao não aproveitar a oportunidade de atuar sobre ele, uma coalizão mudancista dificilmente poderá contar com a governabilidade necessária para cumprir seu programa. E, para manter-se aparentemente governando e em busca de um ilusório apoio político terá que sacrificá-lo aceitando em seu seio forças conservadoras que irão – por bem ou por mal – ocupar seu lugar.