Processo de impeachment foi marcado por um forte movimento de traição encabeçado pelo vice Michel Temer

Ano 1 – nº 07 – Setembro 2016

O percurso do golpe e seus desdobramentos

O processo foi marcado por um forte movimento de traição encabeçado pelo vice Michel Temer e os partidos que construíam a base de sustentação do governo eleito, que durante todo o ano de 2015 se afastaram e votaram contrá as propostas do Planalto, gerando uma crise de governabilidade que paralisou o país e induziu ao processo de impeachment.

Em uma votação que será lembrada como um dos momentos mais vergonhosos da história da República, no dia 17/4/2016 a Câmara aprovou por 367 a 137 votos a admissibilidade do processo de impeachment. A postura dos parlamentares, que transformaram um ato tão sério em um momento ridículo, com justificativas para tal encaminhamento com menções a deus, moralidade, família, filhos, netos, esposa, marido etc., até mesmo os militares, com citação explícita ao Coronel Ustra, dirigente do Doi-Codi, foram homenageados nesse momento.

Em 5/5, Cunha foi afastado de seu mandato por perda de decoro parlamentar, desvio de função, envolvimento em corrupção na Operação Lava Jato e contas no exterior. O interino que assumiu a presidência da Câmara, Waldir Maranhão (PP-MA), chegou a anular a votação da Câmara, justificando que a orientação da bancada para os votos fere a liberdade individual dos deputados. O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), manteve a votação do processo de afastamento da presidenta, classificando a decisão do deputado como uma “brincadeira com a democracia”. Pressionado por seu partido, o PP, sob ameaça de perda de seu mandato, Waldir Maranhão recuou e revogou a anulação.

No Senado, em 12/5, foi aprovado o afastamento da presidenta por 55 votos contra 22. Eram necessários os votos da maioria simples dos 78 senadores presentes (40 votos). Na tarde do mesmo dia, o vice Michel Temer (PMDB) assumiu o cargo interinamente. A abertura do processo de afastamento da Dilma é um julgamento de exceção, sem fundamentação jurídica que lhe dê legitimidade. O impeachment é um golpe, cujo objetivo é a retirada de Dilma e de seu programa de governo do poder.

A partir de então, o Brasil passou a viver um futuro incerto e teve início a era Temer, de um governo ilegítimo e arbitrário que chegou ao poder sem voto, traiu sua chapa e o programa que a elegeu e reverteu a seu favor o mercado financeiro e parte do empresariado que apoiam seu projeto econômico, neoliberal e privatista, encabeçado por Henrique Meirelles, nomeado como ministro da Fazenda.

Além de Meirelles na Fazenda, o novo governo anunciou um ministério sem negros e mulheres, recheado de nomes indiciados por denúncia de corrupção, que sofreu baixas já nos primeiros dias, com o afastamento de Romero Jucá (Casa Civil), Fabiano Junqueira (Transparência) e Henrique Alves (Turismo).

No início de julho, Eduardo Cunha, tentando proteger seu mandato, renunciou ao cargo de presidente da Câmara, negociando seu sucessor com Temer e os partidos do “centrão”. Em uma eleição para a presidência da Casa, disputada por catorze candidatos, Rodrigo Maia (DEM-RJ) venceu, mantendo assim o Executivo e o Senado nas mãos do PMDB e a Câmara com o DEM, ambos da mesma coalizão. Essa composição tende a facilitar a implementação da agenda do golpe, a qual é contestada pela baixa popularidade do novo governo (em torno de 10%) e pelo apoio a novas eleições, superior a 60%.

Por fim, entre os dias 25 e 31/8, o julgamento do processo de impeachment chegou ao final. Em seis dias marcados por discursos inflamados, críticas, acusações, denúncias e defesas, sobressaiu como ponto mais marcante o discurso de Dilma e sua sobriedade na própria defesa durante mais de dezessete horas. Estava ali uma mulher segura de sua inocência, consciente da irreversibilidade do caráter político de seu julgamento e da injustiça de sua pena. Dilma expôs sua trajetória pessoal e política com força e verdade. Não deixou nenhuma sombra de dúvidas sobre seu caráter e honestidade. Não dirigiu seu discurso apenas aos senadores, mas ao país inteiro, e mostrou que sua defesa é a defesa da cidadania, da Constituinte de 1988 e da democracia.

Não obstante a traição, que por si já constitui parte do golpe, as razões que fundamentaram o processo foram inconsistentes e improcedentes. A principal acusação do pedido de impeachment foi o descumprimento da lei orçamentária, por meio de suplementação de recurso, as chamadas “pedaladas fiscais”, já utilizadas diversas vezes em outras gestões e que, até então, nunca haviam sido compreendidas pelo TCU como crime de responsabilidade. Ademais, tão logo mudou o entendimento, em 12/2015, o governo quitou essas pendências. Logo, não houve crime, pois na época em que foram contraídos não eram considerados como tal e a lei não pode ser retroativa.

Em uma votação com 61 senadores a favor da cassação do mandato da presidenta contra vinte votos, Dilma foi afastada definitivamente. Votaram a seu favor, além dos dez senadores do PT, um do PCdoB, dois do PTB, dois do PSB, um do PSD, um da Rede, um do PP e dois do PMDB (Kátia Abreu e Roberto Requião).

O destaque defendido pela senadora Kátia Abreu e aceito pelo então presidente do STF Lewandowski levou a uma segunda votação, na qual os direitos políticos da presidenta Dilma foram assegurados. Para que ela ficasse inelegível eram necessários 54 votos, mas 36 senadores votaram pela manutenção dos seus direitos políticos, contra 42 que votaram por sua inelegibilidade pelos próximos oito anos.

Nessa segunda votação, além da totalidade dos votos do PT (10), PCdoB (1) e Rede (1), a maior parte dos votos do PDT (2), PMDB (10), PR (3), PSB (4), PTB (2) também foi favorável à não cassação de seus direitos políticos, além de votos minoritários do PP (1), PPS (1) e PSD (1).

Direta ou indiretamente, a segunda votação revela que, em primeiro lugar, a argumentação da acusação não foi suficiente para convencer dois terços dos senadores de que pesa sobre Dilma crime de responsabilidade, a ponto de absolvê-la da perda da inelegibilidade. Em segundo, demonstra a fragmentação partidária e fragilidade da base de sustentação do novo governo. Para a aprovação de PECs, por exemplo, na qual se exige que três quintos dos parlamentares (49 senadores) sejam favoráveis, a quantidade de votos obtida seria insuficiente.

A defesa recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra a condenação, mas no dia 8/9 o ministro Teori Zavascki negou o pedido da liminar. Teori afirmou que os crimes que afastaram a presidenta têm “extrato essencialmente político”, mas só em ‘hipótese extremada’ o STF deve intervir sobre a decisão do julgamento do impeachment no Senado, uma vez que a defesa teve amplo direito de se manifestar e não conseguiu convencer a maioria dos senadores sobre sua tese. O advogado José Eduardo Cardozo também protocolou pedido de suspensão do impeachment junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), alegando que a presidenta eleita foi vítima de um golpe parlamentar, uma vez que não houve crime de responsabilidade.

O PSDB também recorreu ao Supremo para a anulação do fatiamento do impeachment, na tentativa de barrar a decisão de manter os direitos políticos de Dilma. A defesa de Dilma contraargumentou dizendo que se houvesse anulação da votação relativa à inabilitação, deveria haver também pela perda do cargo, já que dezeseis dos senadores que votaram pela manutenção dos diretos políticos de Dilma poderiam mudar seu voto perante a impossibilidade de votar em separado. Os pedidos foram rejeitados pela ministra Rosa Weber.
O PSDB pede, ainda, a cassação da chapa eleita em 2014, na Justiça Eleitoral, acusando a ex-presidenta e o vice de usar dinheiro desviado da Petrobras na campanha eleitoral. O processo entrará na pauta do TSE a partir de 2017. Se houver condenação, Temer deixará o cargo, e um novo presidente da República será eleito indiretamente pelos parlamentares.

Medidas sociais e econômicas anunciadas

a. Agenda do golpe e Uma Ponte para o Futuro

A agenda do golpe, que começa a ser aplicada pelo governo Temer, tem como base o documento lançado no ano de 2015 pelo PMDB por meio de sua Fundação Ulysses Guimarães, o “Uma Ponte para o Futuro”, que estabelece pautas e objetivos políticos, econômicos e sociais, por meio de medidas neoliberais e entreguistas. Essa agenda, derrotada quatro vezes seguidas nas eleições presidenciais, tem como objetivo, sob o discurso de eficiência da máquina pública, a redução do poder estratégico do Estado frente à economia e à sociedade e beneficia o empresariado e o mercado, tendo como consequência a retirada de direitos dos trabalhadores.

O documento defende uma política econômica “centrada na iniciativa privada”, com venda de estatais e transferências de ativos. Tal posição é demonstrada na Medida Provisória 727/2016, editada pelo governo, que promove alterações no marco legal sobre as parcerias público-privadas e cria o Programa de Parcerias em Investimentos (PPI), cujo secretário executivo será Moreira Franco, aliado de Temer e presidente da Fundação Ulysses Guimarães. A medida praticamente põe fim ao rigor da Lei de Licitações e Contratos Públicos, além de criar um conselho comandado pela Presidência da República com participação de ministros e presidentes do BNDES e Caixa, de modo a promover, facilitar e acelerar as privatizações.

O documento do PMDB aglutina inúmeras propostas que já tramitam no Congresso e que não eram defendidas pelo governo Dilma e os partidos de esquerda, e sim pelos setores derrotados nas eleições vencidas pelo PT, em especial o PSDB e seus candidatos. As medidas neoliberais que atacam os trabalhadores têm apoio efusivo do empresariado e do mercado, setores que apoiaram o golpe e se beneficiarão da sua agenda. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, que defendeu o golpe com unhas, dentes e recursos, por exemplo, declarou publicamente apoio à uma Reforma da Previdência que dificulte o acesso à aposentadoria, além de também defender o desmonte da CLT e a lei da Terceirização.

Mudanças trabalhistas e na Previdência estão presentes no programa do golpe, visando o desmonte da CLT em favor das negociações entre patrões e empregados. As propostas são impopulares, e o governo ainda tenta reduzir os danos da repercussão da declaração do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira (PTB-RS), que afirmou que a jornada de trabalho poderia chegar a doze horas diárias, com limite de 48 horas por semana. Recentes declarações sobre tais medidas continuam gerando indignação e repúdio na opinião pública, nas centrais sindicais e até na base aliada do governo federal. Segundo pesquisa do Datafolha de julho, 59% da população acham que os brasileiros aposentam mais tarde do que deveriam. Aumentar uma idade já considerada alta, tende a manter o governo nos baixos índices de aprovação.

O caráter antipovo das propostas é evidente. A rápida aprovação dessa agenda, como deseja o governo golpista, sofre resistência nos próprios partidos aliados, que demandam o adiamento das medidas para depois das eleições, visto que a enorme rejeição popular pode prejudicar campanhas e candidaturas dos partidos que apoiam Temer.

b. Outras medidas anunciadas

Como clara expressão do golpe, menos de 48 horas após a aprovação do impeachment o governo ilegítimo sanciona a Lei 13.332/2016, de autoria da Presidência da República. A lei flexibiliza a regra e autoriza a abertura de créditos suplementares sem autorização do Congresso, o que permite remanejar o orçamento, ou seja, entra em vigor a lei que torna lícita e legítima as “pedaladas fiscais”, principal fundamento que depôs o mandato de Dilma.

Por que a lei foi sancionada apenas depois de Dilma ser afastada do cargo e não antes, uma vez que já tramitava desde o início do ano? Por que a mesma base parlamentar que considerou o remanejamento de crédito algo tão grave a ponto de depor uma presidenta legitimamente eleita, contrariando o voto de mais de 54 milhões de brasileiros, passa a achar o mesmo ato insignificante no momento seguinte? A nova lei legitima a alegação da defesa e corrobora o argumento de que o Congresso Nacional nunca considerou ilícita tais medidas, denunciando o caráter golpista contido na prerrogativa política do processo.

Após a efetivação do governo ilegítimo no cargo, o Senado aprovou a Medida Provisória que reduziu de 32 para 26 o número de ministérios. Para o governo significou uma importante vitória: a medida foi votada logo após um feriado, em período eleitoral, quando há grande ausência de parlamentares nas votações e atropelando prazos procedimentais, uma vez que estava em seu último dia de vigência. A reforma ministerial realizada por Temer, por MP, em maio, foi criticada não somente pela extinção e fusão de pastas, como também pela composição de seus membros. A oposição ao não cumprimento do prazo regimental. A manobra contou com a deliberação da votação conduzida por Renan Calheiros (PMDB-AL), que tão logo consolidado o golpe, se reposicionou a favor do novo governo.

Três dias após a efetivação do governo Michel Temer, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, promoveu a troca de dezenove dos 25 membros da Comissão de Anistia. Paulo Lopo Saraiva, ex-sargento do Exército, que colaborou com a ditadura, foi nomeado para integrar a comissão. Outros membros nomeados são vinculados ao professor de Direito Constitucional da USP Manoel Gonçalves Ferreira Filho, teórico e apoiador da ditadura militar de 1964. Se a nova composição refletir o pensamento dos mentores de seus novos conselheiros, a Comissão terá mudado seu caráter de responsabilização penal dos agentes que praticaram crimes de lesa-humanidade na ditadura.

A proposta de Orçamento para o próximo ano encaminhada ao Congresso por Temer prevê um aumento de R$ 11 bilhões para a Defesa. Os valores destinados às Forças Armadas subirão de R$ 82 bilhões para R$ 93 bilhões. Segundo o ministro da pasta, Raul Jungmann, “a Defesa teve seu orçamento muito comprimido de 2013 para cá”. Das três Forças, o Exército é a que terá maior acréscimo no orçamento, subindo de R$ 34 bilhões este ano para R$ 40 bilhões, em 2017.

No dia 9/9, o ex-advogado-geral da União Fábio Medina Osório foi demitido por ter pedido acesso ao conteúdo das investigações da Operação Lava Jato. Tal fato incomodou muito o governo que defende que a AGU não deve se envolver nos inquéritos da operação e deve focar apenas na defesa do patrimônio público.

A intenção do ex-advogado-geral ao pedir acesso aos inquéritos era mover ações de improbidade e ressarcimento contra esses políticos. Segundo Medina Osório, a “AGU tem a obrigação de buscar a responsabilização de agentes públicos que lesam os cofres federais”. Ele diz que, para o ministro Padilha a AGU deve estar a serviço dos interesses do governo. Segundo Medina Osório, o ministro Teori Zavascki autorizou a vista dos documentos, mas estes não foram entregues. Ele afirma que “é muito grave o que vem ocorrendo, uma obstaculização dos trabalhos da AGU”. Para ele, sua demissão é um sinal de que o governo Temer “quer abafar a Lava Jato” e tem “muito receio” de até onde a investigação sobre o esquema de corrupção na Petrobras possa chegar. Quem irá substituí-lo é Maria Fernanda Mendonça, servidora de carreira da AGU, advogada da União desde 2001. É também a primeira mulher a assumir a AGU.

Estamos vivendo uma ruptura, não no sistema de governo, mas no projeto de país que foi eleito democraticamente nas urnas e aplicado nos últimos treze anos. Nas primeiras medidas anunciadas se percebe que os rumos da economia são a aplicação de uma política econômica contrária à eleita, redução de direitos sociais e regras da CLT. Da mesma forma, no que diz respeito à liberdade de expressão, vê-se o caráter intransigente e autoritário do novo governo, ao intervir em ONGs e exonerar funcionários que não se alinham a ele, alterando as regras e mudando leis que ferem a Constituição. Vê-se também avanço de uma forte onda repressiva da polícia nas ruas e infiltração de agentes do Estado ou mesmo das Forças Armadas em organizações, movimentos ou manifestações sociais.

 

 
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