Mais casas com novas leis
O acesso da população à moradia pode ser facilitado mudando dispositivos arcaicos e ineficientes da legislação.
Autor: José Carlos Vaz
Consultor: Ricardo Moretti
O acesso da população à moradia pode ser facilitado mudando dispositivos arcaicos e ineficientes da legislação.
Autor: José Carlos Vaz
Consultor: Ricardo Moretti
Com poucos recursos à disposição, os governos locais chegam a desistir do investimento em habitação. E ainda que haja recursos, jamais são suficientes para eliminar o déficit. Ao mesmo tempo, a legislação impede que sejam implantados diversos projetos, muitos deles considerados exemplares na Europa.
Mudar a legislação urbanística não resolve o problema crônico de falta de moradia, mas, com certeza, cria condições para iniciativas que venham a reduzi-lo.
PORQUE A LEGISLAÇÃO ATRAPALHA?
Grande parte dos códigos de obras brasileiros bebe na fonte do Código Sanitário do Estado de S. Paulo, de 1894. Naquela época, há cem anos, a preocupação com a saúde pública (determinante das exigências para a edificação) elegia os cortiços, onde se aglomerava a população pobre, como o grande inimigo a ser combatido. Esta forma de residência era considerada insalubre e perigosa, pois poderia se transformar em foco de epidemias. O cortiço também era visto como centro estimulador do crime e da desordem social. O Código Sanitário proibiu sua construção e determinou que as vilas operárias não seriam mais erguidas na área central da cidade, onde residiam e trabalhavam as elites. Mais tarde, em 1934, o Código de Obras do Município de S. Paulo inspirou-se no código de 1894, mantendo a proibição aos cortiços, enquadrando nesta categoria qualquer forma de habitação em que duas ou mais residências compartilhassem o mesmo acesso à via pública, excetuando-se os prédios de apartamentos.
Este código influenciou a elaboração da legislação de várias outras cidades. Consolidou-se um modelo urbanístico caracterizado por prédios de apartamentos e residências unifamiliares totalmente isoladas em lotes mínimos relativamente grandes. Os prédios de apartamentos não permitem a ampliação posterior das unidades habitacionais; a exigência de lotes maiores dificulta sua aquisição pela população de baixa renda. As especificações técnicas de construção expressas na legislação tornaram-se obstáculos que não são completamente absorvidas pela população, que busca alternativas nas favelas e na auto-construção sem orientação técnica. São predominantes, portanto, as construções fora das exigências da legislação. Estas "cidades ilegais" são periodicamente regularizadas pelas anistias do poder público.
A opção pelo automóvel como meio de transporte privilegiado na cidade implicou, por sua vez, o superdimensionamento das vias e a valorização de alternativas em que o automóvel tem acesso direto à edificação. Mesmo cidades com pouco tráfego adotam sistemas viários abertos, em malha, com vias largas e asfaltadas, ainda que destinadas apenas ao uso local. O espaço que poderia ser apropriado pela população para moradia ou lazer é destinado a facilitar a locomoção da minoria proprietária de automóveis.
Assim, a produção da cidade fica limitada pelos padrões de construção ultrapassados ou inaplicáveis (que não conseguem ser seguidos pela maioria da população) e pela visão de cidade em que o automóvel, e não o pedestre, é o principal ator. Dentro do processo de urbanização acelerada e de supervalorização da terra urbana, a conseqüência inevitável é o agravamento do déficit habitacional.
Piorando o quadro, a complexidade da legislação alimenta a criminosa prática de criar dificuldades para vender facilidades.
O QUE ALTERAR NA LEGISLAÇÃO?
As leis que regulamentam a construção de habitações e a implantação de loteamentos, na maior parte das cidades, são ricas em detalhes. A criatividade dos projetistas fica, portanto, restrita. Ao mesmo tempo, raramente a legislação deixa claro quais são os seus objetivos. Os motivos técnicos que levaram à formulação de algumas normas chegam a ser indecifráveis. Algumas exigências passam a ser contraproducentes, como a generalização indiscriminada de recuos, impedindo, em algumas circunstâncias, soluções mais adequadas para insolar e ventilar a habitação, ou requerendo maior movimento de terra. As exigências legais são responsáveis por parcela significativa dos custos de empreendimentos habitacionais, especialmente com relação aos custos de urbanização. Os padrões técnicos adotados usualmente fazem com que no Brasil a área pavimentada por habitante seja maior que a existente em países com taxa maior de propriedade de veículos. Levam a um trabalho de terraplenagem da totalidade do terreno, que traz também custos ambientais e riscos geotécnicos. Os custos de pavimentação e terraplenagem são, exatamente, os mais importantes do item infra-estrutura, chegando a corresponder a 53,2%.
A legislação dificulta a implantação de empreendimentos que prevejam ruas de pedestres e vias de caráter essencialmente local (de pequenas dimensões, destinadas a pequeno volume de tráfego, onde o automóvel pode compartilhar o espaço com o pedestre). Da mesma forma, soluções como condomínios horizontais, casas de fundo e edificações sem acesso para o automóvel ficam prejudicadas na maioria das cidades. A exigência de larguras mínimas das vias e vagas de estacionamento internas aos lotes, recuos entre as edificações e as vias de doação de áreas públicas são os maiores empecilhos. Por isso, os condomínios horizontais, que poderiam ser uma alternativa de baixo custo e alta qualidade de vida, só são possíveis, na maioria das cidades, quando dirigidos a populações de renda elevada.
Não fossem as barreiras legais, os custos de implantação (pavimentação, terraplenagem, redes de infra-estrutura) poderiam ser menores, conseguindo um melhor aproveitamento do terreno (inclusive com áreas de lazer mais amplas), em decorrência de maiores densidades habitacionais.
A legislação contribui negativamente, também, pelas dificuldades que coloca em termos de procedimentos administrativos para a construção, reforma e regularização de imóveis.
REVENDO A LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA
A revisão da legislação urbanística deve se voltar para o objetivo central de assegurar direitos coletivos e o interesse da cidade, levando em conta porém, a necessidade de facilitar e reduzir os custos da produção de moradias. É uma ação com expressivo sentido político, voltada para a resolução de um problema social. Não pode ser, portanto, encarada como uma questão apenas técnica. Seu encaminhamento deve ser marcadamente político, valendo-se dos subsídios técnicos que forem necessários.A participação da sociedade não pode ser descartada. Esta participação é indispensável para que as normas estabelecidas sejam representativas das vontades e das necessidades da população. Os movimentos de moradia, associações de moradores, sindicatos de trabalhadores, empresas da construção civil, entidades ambientalistas, instituições de ensino superior e outros organismos da sociedade civil devem estar presentes e trazer suas opiniões desde a elaboração do primeiro esboço da nova legislação. Isto não quer dizer que a prefeitura não deva ter posições claras. Avaliando os interesses em jogo (nem sempre declarados), a prefeitura deve agir no sentido de assegurar o caráter social da iniciativa, neutralizando os lobbies das empreiteiras, dos fabricantes de asfalto, dos especuladores imobiliários e de outros beneficiários dos altos custos dos projetos habitacionais.
A nova legislação deve garantir liberdade de concepção para os projetistas, ao invés de impedir que soluções inovadoras e criativas sejam postas em prática. A liberdade de concepção, no entanto, deve ser delimitada por padrões técnicos, evitando que a mudança traga efeitos negativos. É fundamental que os condicionantes técnicos das normas adotadas sejam expressos com clareza, de modo que facilitem o seu questionamento e revisão. Mais importante ainda é explicitar os objetivos, permitindo que a interpretação e a aplicação da lei busquem o bem-estar de todos os cidadãos, e não apenas a obediência a um conjunto de normas que nada têm a ver com as demandas da cidade.
RESULTADOS
a) Econômicos
A flexibilidade da legislação urbanística permite reduções de custos nos projetos habitacionais pela possibilidade de adensar a ocupação dos lotes, reduzindo também os custos por residência no tocante a pavimentação, terraplenagem, e redes de infra-estrutura.b) Sociais
Reduzindo-se os custos dos projetos habitacionais, as prefeituras podem aumentar a eficiência de suas ações em habitação, produzindo um volume maior de unidades. A implantação de empreendimentos pela iniciativa privada ou mesmo a auto-construção são beneficiadas pela redução de custos, facilitando a produção de moradias.c) UrbanísticosContribui para a implantação de uma nova visão do espaço urbano, diferente daquela que vem triunfando nas cidades brasileiras. Ela deixa de estar a serviço do automóvel e fica menos hostil ao cidadão. A construção da paisagem urbana passa a considerar melhor as necessidades da sociedade: a flexibilidade e a criatividade podem substituir as obscuras definições técnicas.
d) Ambientais
É possível, com esta mudança de visão, oferecer ganhos em qualidade de vida aos habitantes. Mesmo os conjuntos destinados à população mais pobre podem oferecer um ambiente digno aos seus moradores, com oferta de espaços adequados para lazer e convivência. É possível, ainda, reduzir a impermeabilização do solo e as alterações radicais nas características geomorfológicas das áreas.e) Políticos
A alteração nas exigências legais contribui para a ampliação da cidadania e do direito à cidade, tanto por facilitar o acesso à moradia como por permitir a humanização do espaço urbano. Investindo-se na participação da sociedade no processo de revisão da legislação, consegue-se, ainda, incorporar mais atores às ações de governo municipal.
* Publicado originalmente como DICAS nº 6 em 1994
Dicas, é um boletim voltado para dirigentes municipais (prefeitos, secretários, vereadores) e lideranças sociais. Os textos buscam oferecer informações sobre técnicas e práticas de gestão que contribuam para o avanço da democracia, otimização da aplicação e uso dos recursos públicos, promoção da cidadania e melhoria da qualidade de vida.