Mais do que colocar eventos culturais ao alcance de todos, a ação da prefeitura deve permitir aos cidadãos desenvolver suas próprias práticas culturais, favorecendo a melhoria da qualidade de vida.Autores: Valmir de Souza e Hamilton Faria

Mais do que colocar eventos culturais ao alcance de todos, a ação da prefeitura deve permitir aos cidadãos desenvolver suas próprias práticas culturais, favorecendo a melhoria da qualidade de vida.Autores: Valmir de Souza e Hamilton Faria

O planejamento dos governos locais raramente inclui uma política municipal de cultura. O setor cultural é visto como ações ou programas desarticulados (oficinas, exposições, bienais, festivais, etc.) e não é considerado constitutivo da vida das comunidades nem fundamental para o desenvolvimento social e cultural e a melhoria da qualidade de vida.

Para se estabelecer um trabalho mais abrangente, é preciso definir uma política municipal de cultura articulada com o desenvolvimento local e incluindo prioridades e estratégias no plano de governo. Ou seja, a cultura no município deve ter lugar não apenas na secretaria ou órgãos afins, nem deve se restringir às atividades culturais realizadas nos "templos" da cultura (casa de cultura, biblioteca, museu, etc.), mas desbordar para as casas, as ruas, o bairro, a escola, a igreja, a câmara de vereadores, as secretarias, as associações e sindicatos. O papel da cultura é instigar o cidadão a realizar sua cidadania e participar ativamente da dinâmica da cidade.

O QUE É

Política Cultural é a ação do poder público ancorada em operações, princípios e procedimentos administrativos e orçamentários. Esta política é orientada para melhorar a qualidade de vida da população através de atividades culturais, artísticas, sociais e recreativas. Precisa ter um escopo amplo por se tratar de uma ação voltada para todo o município e não para alguns segmentos da sociedade. Esta ação de governo quase sempre está pautada por uma preocupação em conservar o patrimônio cultural e oferecer atividades de artistas consagrados. Ou seja, ao proporcionar à população o acesso aos bens culturais, preocupa-se mais com a Democratização da Cultura. Para isso, são promovidas atividades que valorizam, principalmente, os produtos da elite cultural. O mercado de consumo de bens e serviços culturais e o circuito de distribuição dos produtos culturais (teatros, salas de exposição, bibliotecas, auditórios) se desenvolvem e os grupos produtores de cultura encontram apoio. A ênfase deste tipo de ação está na cultura ao alcance de todos. Isso pode ser conseguido com a realização de shows públicos, ingressos a preços mais baratos, espetáculos teatrais abertos ao público, facilidade de acesso aos equipamentos culturais, etc.

Apesar de muito importante, uma ação cultural desse tipo ainda é apenas um primeiro passo para se chegar à Democracia Cultural, que significa possibilitar aos cidadãos participarem da vida cultural do município, apropriando-se de instrumentos e meios necessários para desenvolver suas próprias práticas culturais. A estratégia para esse caso é a promoção de atividades culturais onde o público seja participante ativo, dinamizando a cultura local a partir de suas referências, sem desconsiderar a arte chamada "erudita". O centro desta concepção é trabalhar com a cultura local, enfatizando-se a cultura por todos. O mais importante deixa de ser o acesso aos bens culturais e passa a ser a participação na criação e nos processos culturais.

Esses dois enfoques não são excludentes, mas se complementam conforme as diversas dinâmicas culturais e sociais.

PRINCÍPIOS
Para se implementar uma Política de Cultura voltada para a Democracia Cultural, o estabelecimento de alguns princípios ajuda a nortear a ação:

1. integrar a Política Cultural do município ao processo de desenvolvimento local (econômico, social, político);
2. reconhecer o pluralismo e a diversidade culturais, respeitando as diferentes identidades e formas de expressão;
3. levar em conta que o poder público não produz cultura, ou seja, não impõe pautas, estéticas, gostos literários ou orientações culturais, mas considera a autonomia das diversas manifestações culturais;
4. descentralizar as atividades culturais;
5. promover a integração cultural/social no âmbito da vida cotidiana;
6. compreender a participação da sociedade como principio constitutivo do processo de formulação de políticas culturais.

AÇÕES POSSÍVEIS

A partir destes princípios, o governo local pode empreender ações tais como:

1. possibilitar o acesso aos bens culturais e aos equipamentos;
2. garantir infra-estrutura para atividades culturais comunitárias;
3. democratizar a informação cultural no município;
4. definir canais e formas de debate e participação nas decisões culturais do município, como conselhos, fóruns, etc.;
5. descentralizar os serviços culturais;
6. resgatar as culturas de comunidades esquecidas, raízes e heranças culturais;
7. integrar-se aos debates e intervenções relativos ao desenvolvimento municipal ou regional (consórcios, câmaras, orçamento participativo, fóruns, etc.);
8. apoiar grupos e movimentos na formação de redes e entidades culturais independentes;
9. estimular a formação cultural da população e dos agentes culturais municipais (bibliotecários, funcionários, trabalhadores e agentes de centros e casas de cultura);
10. estimular a apropriação cultural de espaços públicos (praças, ruas, pontos de ônibus, metrôs, etc.);
11. descobrir e estimular o trabalho experimental das comunidades locais e de artistas não consagrados.

Ao se formular uma política cultural, deve-se levar em conta o perfil e a composição da população, reconhecendo a fisionomia cultural própria do município. Além disso, diagnósticos elaborados a partir de pesquisa sobre a produção, as atividades e a dinâmica da cultura local podem ser úteis para se elaborar uma política mais enraizada na história de cada lugar.

INTERFACES

Para implementar estas ações, a prefeitura pode trabalhar com leis de incentivo e fundos de cultura: que são uma boa maneira de alavancar a produção cultural local (teatro, cinema, literatura, festas populares). Além deles, há outras formas de financiamento à cultura.

Pode-se estabelecer parcerias com outras esferas de governos, como o Ministério da Cultura: o programa "Paixão de Ler" pode fazer parte de uma política de leitura para o município. Também o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) vem financiando oficinas de formação cultural (artesanato, contador de história, literatura, teatro de rua) junto a governos estaduais e municipais.

Trabalhar em conjunto com empresas que atuam com projetos culturais específicos pode ampliar o campo de ação de uma política cultural voltada também para projetos sociais. Em Itapecerica da Serra-SP (110 mil hab.), a Secretaria Municipal de Cultura, com o apoio de uma empresa privada, vem implantando os Barracões Culturais da Cidadania, desenvolvendo atividades culturais e educativas em bairros carentes da cidade.

Os intercâmbios artístico-culturais visando a instauração de Fóruns ou Consórcios Intermunicipais de Cultura valorizam a região e facilitam a promoção de eventos (peças, festivais) que podem circular pelos diversos municípios envolvidos.

A política cultural no município pode estabelecer um trabalho com outras secretarias para viabilizar algumas ações, como por exemplo, saúde (AIDS e cultura) ou meio ambiente (cultura ambiental).

ORGANIZANDO E FORMULANDO

Ao estabelecer metas e ações a serem implementadas é importante que o poder público possa contar com a participação da sociedade civil. Envolver diversas comunidades possibilita uma visão de conjunto mais articulada com as necessidades locais. Este esforço coletivo ajuda também a concretizar as prioridades estabelecidas. O processo deve ser acompanhado por técnicos da prefeitura, tanto da área de cultura quanto de outras áreas como administração, planejamento, finanças.

Já a participação da sociedade civil, através de fóruns, comitês, conselhos e conferências de cultura da cidade, deverá contar com o máximo de representantes das áreas culturais no município: estes mecanismos e formas de participação podem dar referências sobre as possibilidades de se estabelecer uma política cultural mais democrática. A realização de Fóruns Municipais de Cultura tem demonstrado que a participação nas decisões culturais possibilita ao poder público trabalhar com dados mais concretos sobre o fazer cultural, além de proporcionar integração e interação com os grupos culturais considerados ‘sem voz’.

DIFICULDADES
Uma das maiores dificuldades ao se tentar elaborar uma política cultural para o município é convencer o conjunto do governo da necessidade de se considerar a cultura como prioritária na gestão pública e não uma atividade menor em relação a outras necessidades da população. Outro problema é estabelecer recursos próprios para implementar a política cultural planejada. Os gestores culturais dos municípios se ressentem muito da falta de informações sobre financiamento a projetos culturais.

A relação com a comunidade cultural também pode ser uma dificuldade. Em geral há uma desconfiança das intenções do governo em manter as atividades culturais já existentes. É fundamental, portanto, estabelecer um diálogo público sobre o fazer cultural, destacando a necessidade de um trabalho conjunto entre prefeitura, grupos e produtores culturais.

EXPERIÊNCIAS

Em São Paulo-SP (9.830 mil hab.) a Secretaria Municipal de Cultura, no período de 1989 a 1992, ao estabelecer uma política cultural para a cidade, priorizou o trabalho de formação e reflexão cultural. Alguns projetos chamaram a atenção: "Leitor Infinito", voltado para a formação cultural dos bibliotecários e funcionários das bibliotecas municipais; as Casas de Cultura, nas periferias se constituíram em núcleos de criação e difusão e espaços de práticas culturais como oficinas de teatro, literatura, cinema e vídeo, artes plásticas, shows e debates; o Patrimônio Histórico foi restaurado e as Casas Históricas foram reativadas com novos usos, dinamizando assim as regiões com práticas de culturas africanas e indígenas. O Serviço Educativo foi implementado, dando-se aos alunos e grupos da periferia a oportunidade de freqüentar e se apropriar do Centro Histórico da Cidade. Essas realizações foram pensadas dentro de um conjunto de ações da SMC levando em conta a importância dos direitos culturais: direito à informação, à produção e fruição cultural e à participação nos colegiados de decisão.

Em São José dos Campos-SP (486 mil hab.), a Fundação Cultural Cassiano Ricardo criou um Conselho com a participação democrática de segmentos da população envolvida com a cultura do município. Nove comissões setoriais (música, teatro, dança, folclore, literatura, arquitetura, cinema e vídeo, fotografia e artes plásticas) são formadas por pessoas da comunidade, convocadas para reuniões abertas de acordo com o seu interesse. Cada comissão elege um coordenador que representa a área no Conselho. As principais atribuições do Conselho são: estabelecer a política cultural da cidade, aprovar o orçamento e o plano de cargos e salários. A cada dois anos, o Conselho elege uma lista tríplice e o prefeito escolhe o presidente da Fundação.

Há outras iniciativas: Porto Alegre-RS (1.288 mil hab.) criou recentemente o Conselho Municipal de Cultura com a participação ativa dos produtores e criadores de cultura da cidade; Santo André-SP (625 mil hab.) está debatendo o papel do Conselho no município; e Itapecerica da Serra-SP iniciou um debate público para a formação do Conselho.

ORGANOGRAMA DE AÇÃO CULTURAL NO MUNICÍPIO


* organo_cultura


* Publicado originalmente como DICAS nº 116 em 1998
Dicas, é um boletim voltado para dirigentes municipais (prefeitos, secretários, vereadores) e lideranças sociais. Os textos buscam oferecer informações sobre técnicas e práticas de gestão que contribuam para o avanço da democracia, otimização da aplicação e uso dos recursos públicos, promoção da cidadania e melhoria da qualidade de vida.