Se não é possível instalar uma biblioteca em cada bairro, a solução é criar uma biblioteca que possa andar de bairro em bairro.Autor: José Carlos Vaz
Consultor: Hamilton Faria

Se não é possível instalar uma biblioteca em cada bairro, a solução é criar uma biblioteca que possa andar de bairro em bairro.Autor: José Carlos Vaz
Consultor: Hamilton Faria

A dificuldade de acesso à leitura é um problema básico para a formulação e implantação de qualquer política cultural. Os elevados preços dos livros, a inexistência de bibliotecas públicas na maioria dos bairros periféricos das cidades brasileiras e os altos custos de instalação de novas bibliotecas são obstáculos que se somam a todos os fatores sociais que roubaram da população o direito a ler.

O ônibus-biblioteca é uma alternativa para ajudar a modificar este quadro. O princípio é bastante simples: se não é possível construir uma biblioteca em cada bairro, cria-se uma biblioteca itinerante, que atenda vários lugares em dias alternados.

COMO FUNCIONA
Adaptando-se um ônibus usado para que possam ser instalados nele livros, revistas e jornais, leva-se a população com pouco acesso à palavra escrita, obras para consulta e empréstimo. O ônibus-biblioteca pode ser, também, espaço para a realização de outras atividades culturais à sua volta.

Realizando uma visita semanal, o ônibus pode atender cinco ou seis bairros. Se realizar visitas de freqüência quinzenal, pode atender dez ou doze. O calendário de visita do ônibus deve ser respeitado sempre, para que a população não perca a confiança no serviço.

IMPLANTANDO O ÔNIBUS-BIBLIOTECA
A primeira tarefa é estabelecer os objetivos do projeto, fixar as metas que se quer atingir e os prazos. Quer dizer: qual será o público-alvo? Quais os locais atendidos? Qual a periodicidade das visitas? Que acervo será oferecido? Destas definições dependerá o projeto de adaptação do ônibus e o treinamento a ser realizado com os funcionários responsáveis pela sua operação.

O sucesso do projeto depende muito do trabalho de divulgação: o envolvimento da comunidade é indispensável, esclarecendo e motivando quanto à importância de uma biblioteca. Com a divulgação, pode-se obter a colaboração de entidades e grupos organizados locais, desde a fase de concepção até a operação do serviço.

A escolha do acervo depende do público que se quer atender. É importante que apresente obras de divulgação e literatura popular, mas também obras de caráter mais clássico e erudito, possibilitando a mudança qualitativa da leitura realizada.

A execução do projeto deve ser monitorada de tal forma que seja possível realizar alterações do acervo alocado ao ônibus-biblioteca. Apesar do levantamento das necessidades da população que se vai atender, iniciadas as operações, é bem possível que se constate o desinteresse diante das leituras oferecidas. Isso pode acontecer em função de variáveis como faixa etária, nível de escolaridade ou outras de caráter mais subjetivo.

A baixa escolaridade do público adulto pode ser um problema quando se quiser mudanças qualitativas do tipo de leituras realizadas. A oferta de livros "práticos" (sexo, educação de filhos, auto-ajuda, mecânica, culinária, por exemplo), pode ser um instrumento de atração desse público, que com uma orientação sistemática, poderá diversificar seus hábitos de leitura.

Uma das decisões básicas é se o ônibus vai oferecer ou não um serviço de consulta para pesquisa escolar. O resultado desta decisão é significativo na composição do acervo, na adaptação do ônibus, nas atividades realizadas e no treinamento dos funcionários. Oferecer o serviço de consulta para pesquisa escolar torna mais complexa a operação do serviço, pois seus objetivos deixam de se limitar ao incentivo ao hábito da leitura.

RECURSOS

O recurso mais importante é o ônibus adaptado, que pode ser um veículo que já não serve para o transporte de passageiros. Não havendo um ônibus à disposição, podem ser adaptados veículos menores ou caixas-estante. A utilização de veículos menores reduz o acervo oferecido (enquanto um ônibus pode ser equipado com 4.500 volumes, uma Kombi pode levar em torno de 1.000 exemplares). A adoção da caixa-estante (que normalmente contém entre 100 e 200 volumes) significa perda de mobilidade mas elas podem ser deixadas sob a guarda de entidades da sociedade, escolas ou empresas e os veículos exigidos para seu transporte não precisam ser modificados, e podem ter outros usos.

É importante encontrar métodos de iniciar e aumentar o acervo da forma mais barata possível: contatos com editoras para doação ou venda com descontos especiais, intercâmbio com bibliotecas de outras cidades e universidades e campanhas de doação junto à população e ao empresariado local (estas campanhas servem também para divulgação do projeto). Para cada ônibus, é necessária uma equipe de, no mínimo, três pessoas, que conheçam a realidade dos bairros atendidos. A equipe deve ser treinada para orientar e mediar a leitura.

A manutenção do ônibus é um item de custo que deve ser considerado. Não é possível manter o ônibus por um mês parado na oficina da prefeitura, à espera de peças de reposição: seria prejudicial para o êxito do projeto junto à população. Por isso, não se pode dispensar a manutenção preventiva.

Articular parcerias com empresas e entidades empresariais pode trazer benefícios. É possível estabelecer uma relação em que as empresas ofereçam livros, funcionários, o veículo e/ou a sua adaptação e manutenção em troca de publicidade no projeto.

ALGUMAS EXPERIÊNCIAS

Na França, há muitos anos o Bibliobus é utilizado com sucesso, atendendo não só sedes municipais mas, principalmente, aldeias e localidades de menor porte, em especial em áreas rurais e de baixa densidade populacional, que não dispõem de serviço de biblioteca. Cada ônibus atende, mensalmente, entre 20 e 40 localidades, levando, além de livros para público adulto e infantil, jogos educativos para crianças. Cada usuário pode retirar até cinco livros por mês.

Em São Paulo-SP, nos anos 40, Mário de Andrade implantou um sistema de biblioteca em veículo, conhecido como biblioteca circulante, que foi interrompido. Na mesma cidade, em 1977, foi implantado o Sistema Móvel de Leitura e Informação, de forma a atingir áreas mais distantes e desprovidas de qualquer recurso cultural. O serviço era efetuado por uma única perua Kombi, que visitava 9 pontos da cidade. Por falta de condições do veículo, o serviço foi interrompido em 1982 e reativado em 1989 utilizando os ônibus-biblioteca. Foram reformados e adaptados ônibus antigos, que já não serviam para o transporte coletivo.

Onde o ônibus estaciona, é estendido um toldo na parte externa do veículo, sobre mesas e cadeiras para uso da população. O limite de empréstimo por usuário foi fixado em até 2 livros por vez. Foram formadas equipes de, em média, sete pessoas por ônibus, além do motorista.

Cada ônibus tem um acervo de aproximadamente 4.500 volumes, além de periódicos para consulta no local. O acervo é um misto entre a demanda local, de caráter de massa, e alguns "clássicos" (procurando assim influir na mudança qualitativa da leitura), além de um acervo "básico" infanto-juvenil e adulto.

Os ônibus-biblioteca firmaram-se como espaço de referência cultural para a população dos bairros abrangidos pelo projeto. Além de oferecer livros, foram inseridas outras atividades no programa, como exposições monitoradas e aulas públicas programadas pelos coordenadores de cultura locais. A Hora do Conto, por exemplo, realizada por uma equipe de contadores de histórias, atingiu cerca de 35 crianças por ônibus.

No início houve muita procura, por parte do público infanto-juvenil, de material para pesquisa escolar. Como não era esta a função do ônibus, o público foi reorientado para procurar bibliotecas específicas.

São principalmente jovens e crianças entre 8 e 15 anos que se interessam por este projeto, com exceção da região Centro, onde a faixa etária do público é mais elevada.

RESULTADOS
O principal objetivo da experiência é incentivar o hábito da leitura. Neste aspecto, a prática vem contrariando o senso comum que diz que a população de baixa renda não gosta ou não tem interesse em ler. Os ônibus são mais freqüentados do que muitas das bibliotecas da cidade porque são espaços mais lúdicos e menos intimidadores elas, segundo a maioria dos usuários: o ônibus é facilmente apropriado pela população, pois já é cotidianamente ocupado.

Na experiência de São Paulo, registra-se uma média entre 300 e 350 usuários por dia, chegando-se, em alguns casos, a números em torno de 500 usuários. A média de livros emprestados por dia alcança números entre 600 e 700 por ônibus-biblioteca.

Em São Paulo, ao contrário de muitas expectativas pessimistas, registrou-se um baixíssimo índice de livros não devolvidos, cerca de 1% dos livros retirados.

Uma pesquisa realizada por uma empresa, contratada pela Prefeitura de São Paulo, apontou que os serviços oferecidos pelos ônibus-biblioteca foram avaliados pela população com a média de 9,8.

A atuação dos funcionários como mediadores de leitura implica uma maior satisfação do público atingido e também a gradual melhoria qualitativa do material utilizado.

Mas, por melhores que sejam os resultados, os especialistas lembram que o ônibus não substitui a biblioteca. Portanto, ao ser utilizado adequadamente como instrumento de difusão e estímulo à leitura, o ônibus-biblioteca contribui para que a população adquira o hábito de consultar e visitar as bibliotecas públicas.


* Publicado originalmente como DICAS nº 2 em 1994
Dicas, é um boletim voltado para dirigentes municipais (prefeitos, secretários, vereadores) e lideranças sociais. Os textos buscam oferecer informações sobre técnicas e práticas de gestão que contribuam para o avanço da democracia, otimização da aplicação e uso dos recursos públicos, promoção da cidadania e melhoria da qualidade de vida.

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