Edição n° 57 – maio de 2006: O PT e a ética pública (Primeira parte): Silêncios de uma síntese inacabada
Em sua história, o PT vivenciou situações extremadas que trouxeram ao primeiro plano a tensa relação entre ética pública e política. Mas ainda não foi capaz de produzir uma síntese entre estas duas dimensões fundantes de sua identidade.
Como na psicanálise em que o não sabido foi o que mais trabalhou, aquilo que não sabemos de nós mas que age intensamente sobre o nosso ser, assim a práxis política do PT foi em várias situações históricas decisivas configurada por sua relação com a ética pública. Nos anos 1990, a luta pelo impeachment de Collor, as jornadas contra Maluf, a CPI do Orçamento, as denúncias sobre favorecimentos de interesses nas privatizações neoliberais gravaram-se fortemente na identidade do PT. Em alguns momentos, o discurso político do PT foi mesmo sobredeterminado pelos apelos à ética pública. Já na experiência do governo Lula, a relação entre o partido e a ética pública tornou-se o epicentro da mais grave crise de sua história.
Não há, no entanto, nos congressos e encontros realizados pelo partido a partir de sua fundação, registro de uma tematização abrangente e sistemática de como a cultura petista entende as relações entre a política e a ética pública. Entre a convicção da fala e o silêncio da convicção há um elo que não passa fundamentalmente por uma impostura mas por uma falta identitária. E é sobre ela que se deve refletir.
Esta falta identitária não é propriamente do PT e nem mesmo atributo das culturas do socialismo mas da cultura política ocidental dominante. Se esta cultura é predominantemente liberal, foi através da racionalidade das filosofias utilitaristas que o liberalismo procurou firmar na modernidade uma solução para a relação entre a ética e a política. De sentido conseqüência lista – a legitimidade de uma opção ou decisão deveria ser remetida à utilidade em relação a uma meta ou metas definidas – o utilitarismo teve sempre dificuldade em cumprir o requisito de universalidade que se requer de uma ética pública. Demonstrada a sua inconsistência na cultura filosófica, ele já chegou ao século XX assimilado a um pragmatismo, à tentação de justificar os meios pelos fins.
A solução proposta por Max Weber na sua grande síntese da modernidade liberal ocidental como destino inescapável da humanidade foi a de reconhecer que uma ética pública não é mais possível na modernidade devido ao politeísmo ou pluralismo de valores que a constituíam. Para Weber, a democracia não seria fundada em valores, mas em procedimentos juridificados que definiam uma legitimidade racional-legal em contraponto às legitimidades de tipo tradicional ou carismática. Na impossibilidade da ética pública – de uma comunidade política universalmente fundada em valores comuns – as decisões do político eram remetidas ao diálogo entre uma moral da convicção (que consulta os seus princípios pessoais subjetivos) e uma moral da responsabilidade (que examina as conseqüências prováveis da decisão).
O silêncio sobre a ética pública é, pois, por definição, o campo vazio do liberalismo, da sua congênita incapacidade enquanto propositor de uma ordem constituída na desigualdade e na heteronimia de constituir valores universalistas. Para aqueles que lutam por uma sociedade socialista, fundada na autonomia e na igualdade, este silêncio já demonstrou na história todo o seu potencial trágico. Dinâmicas históricas em que os meios para se alcançar o fim último da emancipação acabam por se sobrepor, criando uma verdadeira cisão entre os próprios sujeitos, desencadeando uma ética partidária desregulada de qualquer ética pública e uma moralidade pessoal desprovida de qualquer base de valores humanistas.
Se é assim, a constituição de uma eticidade pública é um anti-liberalismo, opõe-se à vigência do reino dos privatismos e à celebração da busca dos interesses, é parte decisiva da construção de uma cultura do socialismo democrático. Para construí-la seria necessário vencer três desafios centrais.
O primeiro deles é exatamente como fundar a relação entre ética e política. Há aí dois riscos simétricos: o de sublimar a política em uma ética transcendente ou a priori ou externa à política e o de fazer submergir a ética na racionalidade estratégica, pragmática ou realista da política. No primeiro caso, o exemplo mais típico é exatamente o do pensamento teológico político, isto é, aquelas formas de pensamento e de prática política que a subordinam a critérios de valores fundados em uma fé particular não submetidos à demonstração racional ou à soberania democrática. O exemplo mais típico do segundo risco é exatamente o do liberalismo que, na ausência de uma ética pública, faz da política o campo por excelência do pragmatismo.
O segundo desafio é o da relação entre o campo da eticidade pública, que diz respeito a valores compartilhados por uma comunidade política, e o da moralidade privada, que regula o exercício da autonomia e do livre arbítrio do indíviduo em sociedade. A pretensão de reclamar uma moralidade dos indivíduos na ausência de um sistema ético público é, na sua própria base, inconsistente. É típico dos liberais moralizar questões da ética pública, isto é, remetê-la a padrões pretensamente universais de honestidade. Mas já se perguntou, uma vez: o que é ser moralmente justo? Um dono de escravos que vendia o filho de uma escrava agia imoralmente segundo a eticidade escravocrata de sua sociedade? Um capitalista que demite, por critérios econômicos, um pai ou mãe de família, lançando-o ao desabrigo social, é imoral pelos códigos mercantis em que atua? Um banqueiro que se apropria de informações confidenciais para maximizar lucros contra as finanças públicas é imoral ou simplesmente competente?
Por outro lado, pretender absorver a autonomia pessoal em uma eticidade pública é retirar do cidadão a sua responsabilidade moral na condução da vida e de seus atos. A ética é, por natureza, universalista e não pode ter pretensões de decidir sobre a singularidade e o particularismo que está na base do exercício da liberdade de cada um. Ela pode ser apenas uma teia de valores reguladores ou inspiradores da moralidade mas nunca seu substituto.
O terceiro grande desafio é exatamente o caráter universalista da ética pública, isto é, a sua incompatibilidade com uma lógica monista, que se vale de um código particular, ou uma racionalidade auto-referida e não construída sobre o diálogo. Uma ética universalista só pode ser fruto de uma construção dialógica, sintética ou, pelo menos, da aposta na possibilidade de uma área comum de valores entre visões de mundo diversas entre si que convergem para zonas de consenso através das formas da democracia. O pluralismo deveria ser entendido como garantidor do universalismo e não como cisão incontornável.
Página em branco do marxismo
Chama-se “Preencher uma página vazia” o tópico final do ensaio “A herança da ética marxiana”, de Agnes Heller, editado no volume 12 da coleção História do Marxismo, organizada pela grande historiador Eric Hobsbawn. Nele, a teórica do marxismo que se formou em relação e, depois, na crítica das insuficiências, do monumental esforço de Gyorgy Lukács de fundar uma filosofia do marxismo, revê as origens da lacunar presença da ética na obra marxiana e na cultura do marxismo. No ensaio, Agnes Heller lembra que “tanto Sartre quanto Lukács, na velhice, queriam escrever uma ética. Nenhum dos dois a fez. Nossa geração herdou uma tarefa gigantesca com o silêncio que preenche as páginas vazias.”
Sem necessariamente se identificar com todas as leituras que faz Heller, de Marx ou do marxismo, vale a reconstituição empreendida pela autora. Ela identifica quatro dimensões fundantes da ética na obra de Marx. Em primeiro lugar, este teria sido fiel à máxima de Epicuro, pensador grego ao qual Marx dedicou a sua tese de doutoramento: “infelicidade é viver na necessidade, mas não é necessário viver na necessidade”. O grande fio condutor de toda a obra de Marx seria a autonomia absoluta de pessoa humana, através do crescimento do ser da espécie e do indivíduo (uma radicalização não apenas de Kant mas também da concepção hegeliana do intercâmbio entre o mundo ético das instituições e a moral). Na “Ideologia alemã”, em uma afirmação nitidamente inspirada em Rousseau, ele afirmara que “Portanto, só na comunidade se torna possível a liberdade pessoal(…) A comunidade aparente na qual até agora se uniram os indivíduos sempre se fez autônoma diante deles(…) Na comunidade real, os indivíduos conquistam sua liberdade em sua associação e por meio dela.” Nesta “super-sociedade”, diz Heller, a distinção entre ética e moral desaparece, em prol de homens dotados de tempo livre para desenvolver plenamente suas capacidades fora de toda coação externa.
A segunda dimensão fundante da ética na obra de Marx é aquela segundo a qual todo sistema de normas de conduta moral é intrínseco à totalidade dos processos da vida social historicamente configurada. Daí afirmar que “os comunistas não pregam nenhuma moral genérica(…)Eles não propõem aos homens os imperativos morais: amai-vos uns aos outros, não sejam egoístas etc; ao contrário, eles sabem perfeitamente que em determinadas situações tanto o egoísmo quanto o altruísmo são formas necessárias para a afirmação dos indivíduos”. Isto é, os comunistas não pregariam a “moral” por serem indiferentes a ela mas por optarem transformar as raízes sociais que reproduzem e tornam imperativa a adesão a certos valores.
Em terceiro lugar, Marx demonstrara como o capitalismo, no desenvolvimento internacional de sua pulsão mercantil, havia destruído os sistemas éticos particulares e tradicionais das sociedades que havia transformado. Os sistemas éticos sobreviventes seriam remanescentes ou vestígios de um mundo já caduco. Um “socialismo ético” seria, por esta via, um socialismo pequeno-burguês. Mercado e Estado, pensado como estruturador da sociedade civil capitalista, seriam as grandes barreiras à emancipação.
Por fim, Marx identifica no proletariado não um ser moral ou eticamente superior mas aquela classe social que levada à desumanização mais extrema não “pode suprimir as próprias condições de vida sem suprimir todas as condições de vida inumanas da sociedade moderna”. “O que conta”, diz Marx em ” A Sagrada Família”, não é aquilo que este ou aquele proletário, ou mesmo todo o proletariado, se representam temporariamente como fim. O que conta é aquilo que o proletariado é e aquilo que ele será forçado historicamente a fazer em conformidade com este seu ser”. Assim, afirma Heller, como o fim não é escolhido mas está posto pela história, “não há espaço para nenhuma ética justamente no caso daquela classe da qual se espera que instaure o mundo totalmente moral.”
Será principalmente no chamado marxismo kantiano da II Internacional, em particular na obra de Max Adler e Otto Bauer, que o tema da ética e da escolha moral em relação ao socialismo é reposto, embora ainda em uma interpretação do marxismo como uma sociologia determinista. Para Otto Bauer, “a ciência só se ocupa do que foi e do que será; mas a avaliação, o juízo moral não é sua função. Não existe uma ciência do dever ser”. Não seria possível derivar a defesa da propriedade coletiva e os princípios de uma sociedade socialista a partir somente do estudo das leis imanentes de desenvolvimento capitalista.
Na medida em que as culturas marxistas foram formando suas tradições políticas, no silêncio da ética, foram se gestando dinâmicas de adequação, utilidade e justificação dos meios pelos fins. Entre a plena adequação dos meios aos fins políticos, sua utilidade e sua justificação possível segundo os valores de culturas auto-referidas, foram se interpondo clivagens. A história destas clivagens é uma forma de ler os impasses das várias tradições políticas do marxismo.
Estas clivagens, por sua vez, podem ser interpretadas como a incapacidade, segundo os pressupostos teóricos de base do marxismo, de responder aos três desafios antes configurados. Isto é, o de ser capaz de pensar uma relação não absorvente entre ética e política, entre ética pública e moralidade individual e fontes pluralistas para se pensar uma ética pública na democracia.
Ao repor criticamente perante as culturas marxistas da II e da III Internacionais, o grande desafio histórico de compatibilizar socialismo e democracia, os fundadores do PT estavam fazendo falar os silêncios de uma tradição. Não se pode avançar na construção de uma sociedade socialista democrática sem fundar uma nova ordem de valores públicos compartilhados, críticos e alternativos ao reino privatista e mercantil do liberalismo. Revelar este silêncio talvez tenha sido a grande virtude da recente crise vivida pelo PT.