As intervenções em vias públicas podem ser um instrumento de promoção da cidadania quando se prioriza o uso racional dos recursos e o respeito aos cidadãos.
Autor: José Carlos Vaz

As intervenções em vias públicas podem ser um instrumento de promoção da cidadania quando se prioriza o uso racional dos recursos e o respeito aos cidadãos.
Autor: José Carlos Vaz

Ainda há prefeitos que querem ser reconhecidos como realizadores de grandes obras, iludindo a opinião pública com a extensão dos viadutos e túneis e com a quantidade de avenidas abertas em sua gestão. Mais preocupados com a visibilidade do que com a eficácia de suas ações de governo, esses administradores municipais promovem o desperdício dos recursos públicos e a permanência do imediatismo como regra geral. Esses prefeitos desprezam as obras de caráter preventivo, empurrando os problemas para as próximas gestões. Mesmo que não consigam votos, conseguem, com certeza, ampliar desnecessariamente os gastos públicos, a médio e longo prazo. A manutenção planejada a partir de critérios técnicos é substituída por atividades "apaga-incêndio" do tipo disque-buraco. A conservação das vias é transformada em objeto de troca clientelista.

A eleição do automóvel como principal ator da vida urbana restringe o conceito de via pública, que passa a ser entendida como espaço destinado à circulação de veículos. Esta mentalidade permite a aplicação concentrada de parte expressiva dos recursos municipais em grandes obras viárias, beneficiando apenas uma parcela pequena da população e atendendo aos interesses das grandes empreiteiras.

A soma desses fatores – a cultura automobilística, a falta de planejamento e o uso das grandes obras como instrumento para interesses particulares – constrói uma situação onde a política de vias públicas não considera a qualidade de vida dos cidadãos. Assim, as ações no campo das vias públicas não levam em conta os aspectos ambientais, culturais e mesmo o direito dos pedestres à locomoção com segurança e fluidez, como se o governo municipal estivesse isento de se preocupar com a cidadania.

A situação reforça a importância de uma nova abordagem para as vias públicas na consolidação do direito à cidade: uma cidade igualmente bela e segura para todos é um avanço no campo dos direitos sociais que, ao lado dos direitos individuais e políticos, compõem a cidadania.

A INVERSÃO DE PRIORIDADES

A política de vias públicas intervém diretamente no processo de apropriação da cidade e dos benefícios por ela gerados. A promoção da cidadania é inseparável da busca de justiça na distribuição dos benefícios da vida urbana e dos recursos públicos. Uma política de vias públicas comprometida com a cidadania deve, portanto, ir além de abrir avenidas cada vez mais largas e tapar os buracos das vias de maior movimento.

Para se superar a subordinação da cidade ao automóvel, é preciso considerar com igual importância os demais modos de transporte (a pé, bicicleta, ônibus e outros). Da mesma forma, é preciso entender a rua também como arena de um amplo conjunto de relações sociais envolvendo o lazer, a vizinhança, as atividades comunitárias e o trabalho.

Os recursos públicos, em respeito aos cidadãos, não podem ser consumidos apenas em obras viárias de grande porte. É preciso, portanto, inverter a lógica tradicional de aplicação de recursos nas vias, realizando ações que os governantes oportunistas não realizam. Ao invés de grandes obras, prioriza-se as pequenas intervenções, que ofereçam soluções a problemas crônicos e de grande impacto local e, também, as atividades de manutenção do sistema viário.

A inversão de prioridades significa colocar em segundo plano um modo de transporte elitista e prejudicial ao ambiente – o automóvel – para promover o uso coletivo dos espaços públicos e privilegiar o transporte a pé e coletivo, como ônibus e trólebus – responsáveis pelo maior número de viagens e mais utilizados entre os segmentos mais pobres da sociedade.

O QUE PODE SER FEITO?

Entre as ações possíveis, pode-se recomendar:

a) Pequenas obras viárias

É possível obter bons ganhos em fluidez e segurança no sistema viário através de pequenas obras, baratas e rápidas. É o caso de intervenções como adequações da geometria da via em pontos críticos, colocação de sarjetões, implantação de canteiros centrais, entre outros.

b) Manutenção

É importante que a manutenção seja vista como uma atividade que merece um planejamento sistemático. A prefeitura pode estabelecer um calendário de manutenção, com atividades corretivas e preventivas. Em lugar de simplesmente tapar buracos já várias vezes consertados, pode ser melhor realizar obras de recapeamento. Em pontos críticos, vale a pena considerar a reconstrução da base do pavimento, resolvendo as causas do problema. Apesar do investimento maior, a médio e longo prazos os resultados são melhores em custos e qualidade.

A política de manutenção tem seus resultados ampliados quando incorpora o desenvolvimento e aplicação de técnicas e materiais alternativos.

c) Prioridade ao pedestre

A prioridade ao pedestre nas vias públicas materializa-se em segurança, fluidez e condições de sociabilidade.
A presença de dispositivos de segurança reduz a fragilidade do pedestre em relação aos veículos. O aumento da segurança do pedestre deve considerar a travessia e os riscos de acidente na disputa pelo espaço com os automóveis. Normalmente, através de intervenções de baixo custo na geometria da via é possível aumentar a segurança. Várias medidas podem ser implantadas: faixas de segurança, muretas de proteção, canteiros centrais, pistas para bicicletas, mudança da localização e desenho dos pontos de ônibus, por exemplo.

Aumentar a fluidez dos pedestres significa criar condições para que o cidadão que anda a pé possa deslocar-se sem problemas. A prefeitura pode reduzir barreiras construindo e realizando a manutenção de vielas, calçadas, escadas e outras vias de uso dos pedestres. Neste trabalho, as necessidades especiais de idosos e deficientes físicos devem ser levadas em conta.

O tratamento das vias públicas como espaço onde as pessoas se encontram, trabalham e se divertem promove a devolução da cidade ao seu verdadeiro dono, o ser humano. Identificando-se as vias que têm tráfego apenas local, pode-se nelas restringir o acesso de veículos, permitindo-o apenas em velocidade e condições compatíveis com a convivência harmoniosa com o pedestre. Suas calçadas podem ser mais largas, criando espaços semelhantes a pequenas praças num mesmo bairro, a um custo muito baixo. O fechamento de algumas esquinas ao tráfego de veículos e outras medidas de desestímulo ao tráfego de passagem podem melhorar a qualidade de vida do bairro.

Na prática, a inversão de prioridades com medidas de restrição ao uso de automóveis – criação de ruas sem saída – tem mais sucesso na classe média alta do que nas classes populares. Isto se explica pela maior sensibilidade das classes médias aos itens de segurança e qualidade ambiental. Classes populares têm no automóvel um símbolo de status e as restrições ao seu uso e exibição podem ser vistas como empobrecedoras e não como um avanço urbanístico.

UMA EXPERIÊNCIA BEM SUCEDIDA

Em Santo André-SP, no período 1989-1992, a política de vias públicas seguiu com sucesso o princípio da inversão de prioridades. Apesar de ser o município com a maior taxa de veículos por habitante do país, as obras viárias de grande porte só ocorreram quando comprovadamente indispensáveis, dando lugar a diversas intervenções menores que solucionaram problemas antigos.

Articulada às políticas de trânsito e transporte público, a política de vias ofereceu atenção privilegiada ao pedestre, através da pavimentação de vielas e da construção de passarelas, entre outras ações.

A partir de um diagnóstico permanentemente atualizado da situação das vias, a administração estabeleceu um calendário de recapeamento. Agindo planejadamente, evitou-se que o leito das vias atingisse um estado de deterioração que exigiria mais recursos para recuperação.

A abertura para técnicas alternativas ou inovadoras conferiu durabilidade aos consertos realizados em vias asfaltadas.

Para reduzir sua dependência das empreiteiras, a prefeitura reorganizou a realização de obras por administração direta, aumentando a produtividade do pessoal.

A participação popular contribuiu para o êxito da política. A equipe da prefeitura discutiu com a população os projetos de intervenção e orientou sua participação em mutirões que executaram algumas intervenções.

RESULTADOS

a) sociais

A inversão de prioridades nas vias públicas tem o seu principal resultado na ampliação da cidadania. Estende o direito à cidade e à qualidade de vida a toda a população, independente do modo de transporte que ela usa. A política de vias públicas passa a ser instrumento de justiça social ainda que de limitado efeito, pois permite que setores mais amplos da população se beneficiem dos recursos públicos. A pavimentação de novos bairros, priorizando o uso das vias pelo pedestre, cria novos espaços para a vida social.

b) econômicos

Colocando em segundo plano as grandes obras, a prefeitura pode empregar mais recursos para manutenção, evitando gastos maiores no futuro. Quando executa obras por administração direta de forma criteriosa, como no caso de Santo André, é possível reduzir os gastos com contratações de obras, realizando-as por custos mais baixos. Neste exemplo, aumentou-se a produtividade do pessoal em 54% para pavimentação, 93% para recapeamento e 12% para conserto de buracos.

c) políticos

A discussão de projetos e propostas com a população envolvida é um ponto central da política, pois contribui para a adequação das intervenções às necessidades da comunidade. Tem, portanto, um caráter formativo, levando os cidadãos a refletir sobre a cidade e os serviços públicos.

A perda da visibilidade imediata das grandes obras é substituída pela maior presença da prefeitura em toda a cidade.

obras_recapeamento
 


* Publicado originalmente como DICAS nº 11 em 1994