Trata da pedagogia da participação cidadã como condição para a ampliação e aprofundamento da democracia.
Fonte: PONTUAL, Pedro. “Pedagogia da gestão democrática das cidades”. São Paulo, mimeo, s.d.

Pedro Pontual*

Cresce hoje, no âmbito dos movimentos sociais, das ONGs, de governos democráticas e de parcelas da intelectualidade, a compreensão de que a proliferação de práticas participativas nos espaços públicos, vêm provocando uma necessária redefinição das relações entre Estado e Sociedade Civil. A participação cidadã é elemento substantivo para possibilitar efetivamente uma ampliação da base democrática de controle social sobre as ações do Estado. Estas práticas participativas geradas tanto a partir das organizações da sociedade civil como da ação indutora do Estado criam uma sinergia capaz de alterar substantivamente a relação entre ambos os atores. Neste processo amplia-se e aprofunda-se a prática da democracia e constrói-se uma cidadania ativa.

As práticas de participação cidadã têm dado uma significativa contribuição na constituição de novas esferas públicas democráticas e na promoção de um processo progressivo de publicização do Estado e de desestatização da sociedade. Tais práticas, desenvolvidas, sobretudo no âmbito dos espaços de poder local, buscam a superação de uma visão da relação Estado e Sociedade Civil como polaridades absolutas em favor de uma compreensão mais dinâmica de relações de interdependência combinadas com o reconhecimento da especificidade e autonomia de cada ator.
Celso Daniel (1994), ao analisar o contexto de crise do nacional-desenvolvimentismo e de disputa pela afirmação de um novo modelo de desenvolvimento, afirma sobre o significado das práticas de participação cidadã:

É justamente neste quadro que o tema da participação pode ser concebido como elemento constitutivo de uma proposta de gestão pública no âmbito de um novo modelo de desenvolvimento, não enquanto panacéia, mas como uma das referências essenciais ao alargamento do espaço público e a busca de nitidez nas relações entre o público e o privado (1994, p. 24-25).

A prática da gestão democrática vem produzindo novos aprendizados para os atores da sociedade civil e do governo e contribuindo para alterar significativamente a forma de relação do poder público com a população em nível local. As práticas participativas e de controle social, vem contribuindo de modo significativo para o processo de democratização da gestão pública e mostrando alternativas efetivas para uma Reforma do Estado e para uma redefinição das relações entre estado e sociedade civil no Brasil.
A criação de novas formas e canais de participação cidadã enfrenta uma arraigada cultura política elitista e autoritária que não se transforma da noite para o dia. Há uma lógica, historicamente predominante, na relação da população com o Estado, impregnada de apatia, clientelismo, submissão, populismo, cooptação e outros tantos efeitos perversos desta herança cultural.
As experiências em curso têm demonstrado que não é suficiente a criação dos espaços e canais de participação, sendo necessário criar as condições para que esta participação ocorra de fato, capacitando os diversos atores (da Sociedade Civil e do Estado) para o exercício de uma nova prática de gestão pública democrática.

Portanto, a abertura de novas formas e canais de participação requer uma prática pedagógica planejada capaz de orientar o necessário processo de mudança de atitudes, valores, mentalidades, comportamentos, procedimentos, tanto por parte da população como daqueles que estão no interior do aparelho estatal.

Aqui vale lembrar na obra de Paulo Freire (1992) a importância que ele atribuí à ação pedagógica de um governo radicalmente democrático:
Tudo deve ser visível. Todo deve ser explicado. O caráter pedagógico do ato de governar, sua missão formadora, exemplar, que demanda por isso mesmo dos governantes, seriedade irrecusável. Não há governo que persista verdadeiro, legitimado, digno de fé, se seu discurso não é confirmado por sua prática, se apadrinha e favorece amigos, se bem duro apenas com os oposicionistas e suave e ameno com os correligionários (1992, p .174) .

Também Celso Daniel (1994) já enfatiza a função pedagógica que devem ter os governos na ativação de práticas participativas:

Mais do que isso, a democratização do acesso á participação exige uma presença ativa do governo, em particular no campo pedagógico. Assim, é crucial para tal democratização, a pesquisa de linguagens sintonizadas com a cultura da população, bem como a organização de processos de formação dos cidadãos, de maneira a lhes permitir acesso á informação sobre o modo de funcionamento do Estado (Prefeitura, Câmara) e da configuração do município. Tais iniciativas caminham no sentido de se contrapor ao monopólio da informação de que os integrantes do Estado costumam ser portadores. Evidencia-se, ademais, que é perfeitamente possível e inclusive necessário, que o governo local – respeitando a independência e riqueza de formas de articulação da sociedade – atue de maneira concreta no sentido de estruturar e estimular a participação para que esta obtenha sua máxima eficácia. (1994, p.40).

No processo de democratização da gestão a prática educativa é elemento fundamental para assegurar maior alcance e qualidade nos aprendizados produzidos. Daí a necessidade de uma pedagogia da gestão democrática como dimensão indispensável para possibilitar que os atores (da sociedade civil e do governo) adquiram eficácia e potência de ação no exercício da democracia, da cidadania ativa, na vitalização das esferas públicas e na construção de uma nova cultura política. Passamos a apontar alguns dos elementos constitutivos de tal pedagogia:

a) Ela é metodologicamente deliberativa, ou seja, ela deve proporcionar a possibilidade efetiva do exercício de decidir sobre os assuntos públicos na cidade;

b) Ela deve estimular práticas de co-gestão (entre governo e comunidade local), desenvolvendo a atitude de co-responsabilidade e a prática de parceria entre os atores locais na resolução de problemas e construção de alternativas para o futuro dos municípios;

c) Ela é uma pedagogia do público, da construção do sentido do comum, a partir da construção de esferas públicas transparentes e democráticas, em que se exercita a deliberação a partir de critérios objetivos, compartilhados e impessoais;

d) Ela se realiza no próprio exercício da cidadania ativa, desenvolvendo a consciência de que tomar conta da sua e da nossa cidade é um direito (que inclui a co-responsabilidade) e que, quando ele é exercido, as coisas acontecem;

e) Ela busca formar cidadãos autônomos e críticos, cm capacidades comunicativas e argumentais para participar de instituições da sociedade civil, para exercer associativamente o controle sobre governos e resolver pacificamente e democraticamente os conflitos;

f) Ela instrumentaliza os atores da sociedade civil e dos governos para formas de exercício do poder em que a transparência das ações, a capacidade de ouvir , dialogar, reconhecer legitimidade no outro são atitudes indispensáveis;

g) Ela propicia a apropriação de conhecimentos técnico-políticos que ampliam a capacidade dos cidadãos de atuarem como agentes na definição e gestão das políticas públicas;

h) Ela amplia os conhecimentos sobre o território (bairro/cidade/região) e seus diversos elementos de identidade, facilitando a ação integrada das políticas públicas e a participação e controle dos cidadãos sobre as mesmas;

i) Ela desenvolve a auto-estima, as capacidades de comunicação e relacionamento interpessoal e assim cria motivação pessoal para participação em ações coletivas;

j) Ela desenvolve os valores de solidariedade, justiça, união, respeito ao outro, tolerância, humildade, esperança, abertura ao novo, disponibilidade à mudança como elementos de uma ética universal que deve estar na base das ações de educação para a cidadania.

O desenvolvimento de uma pedagogia da participação cidadã é condição para a ampliação e aprofundamento da democracia, para enraizá-la em todos os âmbitos da sociedade civil e do Estado.
É neste contexto que adquiriu particular relevância, no debate sobre a Educação Popular, a temática do Poder Local e de uma pedagogia democrática capaz de contribuir para a construção de novas práticas de exercício do poder. Neste debate reafirma-se a importância da contribuição da Educação Popular na construção de novas formas de exercício do poder, fundamentalmente a partir do terreno da sociedade civil, mas também no exercício das ações de governo, no sentido de que estas estejam constantemente alimentadas e retroalimentadas pela prática viva dos processos e sujeitos sociais.

Dentro desta perspectiva parte-se da hipótese de que a Educação Popular tem importante papel no sentido da qualificação (tanto do ponto de vista ético político como de conhecimentos instrumentais) dos movimentos sociais e dos governos para melhorar a sua capacidade de intervenção na elaboração e gestão das políticas públicas
Quero concluir trazendo a palavra do querido mestre e prefeito Celso Daniel transcrita de trecho da sua intervenção no painel sobre Educação Popular e poder local organizado pelo CEAAL ( Conselho de Educação de Adultos da América latina) durante o 1º Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre em janeiro de 2001:

Nos últimos anos temos tido a oportunidade, por iniciativas de muitos governos populares em várias partes da América latina e do mundo, de criar novos mecanismos, novos espaços e iniciativas que, combinados a processos de educação popular, têm condição claramente de se contrapor a ofensiva neoliberal que se trava contra os direitos. Estou me referindo aqui, particularmente, á idéia de participação da sociedade, de participação cidadã. Estou me referindo á noção de co-gestão pública, ou seja, de uma gestão pública baseada na idéia de partilha do poder de decisão com a comunidade organizada. Estou me referindo a iniciativas como as dos conselhos temáticos, conselhos de unidades de gestão (na área de saúde, na área de educação, cultura, lazer, etc), estou me referindo, evidentemente, ao orçamento participativo, também. E por que eu faço essa referência? Porque, da mesma forma que os neoliberais buscam negar a fala dos dominados, é perfeitamente possível – a partir de um governo comprometido com os direitos, com o aprofundamento da democracia, com o combate à exclusão – começar pelo combate à exclusão da fala dos dominados (que é uma dimensão simbólica extremamente importante do próprio conceito de exclusão social – a exclusão da fala). Portanto, quando se criam novos espaços públicos – e o orçamento participativo, por exemplo, é tipicamente um novo espaço público – que cria condições para que novos atores coletivos apareçam na cena pública com a sua fala de reivindicação de direitos, interagindo diretamente nas decisões políticas de governo, eu estou falando de um movimento que cria novos movimentos sociais, que cria novas lideranças populares, que recria e reafirma a linguagem dos direitos, reafirma a fala dos excluídos na cena pública no sistema democrático, se contrapondo, portanto, á guerra sem tréguas que o neoliberalismo tem travado no sentido de excluir a fala dos dominados, como eu disse, um elemento extremamente importante, a meu juízo, nos processos de exclusão social propriamente dita.

Que as palavras e o legado das práticas do prefeito Celso Daniel continuem a nos iluminar na busca de construir cidades inclusivas e educadoras!

Pedro Pontual.

 


São Paulo, abril de 2004

Fonte: PONTUAL, Pedro. “Pedagogia da gestão democrática das cidades”. São Paulo, mimeo, s.d.


 

* Pedro Pontual é hoje presidente do CEAAL e coordenador da Escola de Cidadania do Instituto Polis, São Paulo, Brasil. Como Educador Popular atuou nos anos 70 e 80 em diversas ONGs e como assessor pedagógico de diversas organizações populares como a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e CMP (Central dos Movimentos Populares). Foi um dos fundadores e atuou na coordenação pedagógica do Instituto Cajamar . Na gestão de Paulo Freire (1989-1991) na Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de São Paulo ,desenvolveu trabalho de coordenação do MOVA-SP. De 1997 a 2002, exerceu na Prefeitura Municipal de Santo André a função de coordenador do Núcleo de Participação Popular e Secretário de Participação e Cidadania. É também doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC).



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

DANIEL, Celso. (fev 19940. Gestão Local e Participação: da Sociedade in Revista Polis, São Paulo, n.14, p.21-41
FREIRE, Paulo. 1992. Pedagogia da Esperança. São Paulo: Paz e Terra.
PONTUAL, Pedro de Carvalho. 1995. Construindo uma Pedagogia Democrática do Poder. La Piragua: Revista Latino Americana de Educación y Política. Santiago, Chile: CEAAL, nº 11, pp. 25-35.
________. 2000. O Processo Educativo no Orçamento Participativo: aprendizados dos atores da Sociedade Civil e do Estado. Tese de Doutorado PUC-SP.
__________ . 2003 . Pedagogia de la gestion democrática. Documento apresentado ao Encontro de municipalismo na América do Sul. Barcelona Espanha.

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