O governo renega o que lhe poderia conservar alguma grandeza: arcar com os resultados de uma aposta perdida.


O confronto entre a esquerda e a intelectualidade tucana passa pelo embate entre duas éticas. Uma é defendida pela oposição e, desde o sociólogo alemão Max Weber, chama-se ética de princípios, considerando mais importantes os valores (ou princípios) do que a vantagem material. Mas o presidente e os intelectuais seus próximos sustentam que a política exige uma ética diferente, a da responsabilidade, na qual o principal são os resultados.
O estadista -ou o político- não pode limitar-se a aplicar os mandamentos da religião a cada caso particular, mas tem de enfrentar a novidade, o imprevisto; assim, precisa inventar idéias e ações para as quais não havia modelos anteriores. Com isso, pode sacrificar alguns ideais, mas consegue efeitos socialmente positivos.
Até aqui, apenas resumi rapidamente o estado de uma discussão corrente, mas convém levantar outro aspecto das duas éticas: como lidam com o fracasso. Aliás, a ética de princípios até parece feita para fracassar. Se sigo ao pé da letra crenças morais, religiosas ou políticas, jamais firmando compromissos, dificilmente terei êxito neste mundo.
Só que há um mérito na ética dos princípios, mesmo quando praticada por um político. É que sua derrota é nobre. Assim se constituem os heróis e mesmo os mártires; basta lembrar o poema de Mário Faustino que serviu de epígrafe ao filme “Terra em Transe”, de Glauber Rocha: “Não conseguiu firmar o nobre pacto/ Entre o cosmo sangrento e a alma pura (…)/ Gladiador defunto, porém intacto/ (Tanta violência, porém tanta ternura)”.
É ainda esse o caso de Fidel Castro: gostemos ou não dele, o líder cubano, vencido pela nova ordem do mundo, conservou o quanto pôde de seus ideais. Ainda assim, conseguiu sobreviver politicamente, mas, se tivesse perdido a parada, como ocorreu com Che Guevara, não deixaria de ser um herói.
Já a ética da responsabilidade -a dos políticos e estadistas em geral, incluindo nosso presidente- tolera mal a derrota. E, porque de todos os modos procura evitá-la, buscando preservar o essencial (às vezes, só o poder ou a reeleição), dificilmente seu praticante é vencido por completo.
Mas às vezes ele perde a batalha. Já que é uma ética de resultados, estes podem não se produzir. Nesse caso, o que sustenta o derrotado? Princípios ele não tem para invocar, não porque seja indecente ou desonesto, mas porque jogou tudo nos resultados (em nosso país, na estabilidade da moeda como meio para um desenvolvimento recuperado; digamos, “um novo Renascimento”). O que lhe resta, então?
Deveria haver uma tragédia do estadista vencido. E existe: é a peça “As Mãos Sujas”, de Jean-Paul Sartre, em que o político Hoederer aceita sujar seus princípios para atingir o poder. Mas, mesmo nesse caso, ele só busca o poder e aceita a sujeira por um princípio maior, o fim do fascismo.
Infelizmente, uma política prosaica como a da responsabilidade parece excluir a tragédia. Mas não impede a derrota. O que impede é que esta se mostre trágica. Daí o caráter absurdo da peça a que ora assistimos, em que a raposa cuida do galinheiro, em que uma política fracassada, que dilapidou o patrimônio estatal para multiplicar a dívida pública, continua a servir de mantra tucano; em que, enfim, se fala em limite da sua (deles) irresponsabilidade.
A isso chegamos: uma ética da irresponsabilidade. Ante o fracasso econômico, o governo deveria responder por seus atos. Mas, quando diz que a disparada do dólar não é problema seu ou quando joga a culpa de seu insucesso na conjuntura externa, ele renega aquilo que lhe poderia conservar alguma grandeza: arcar com os resultados de uma aposta perdida.
Porque pode haver grandeza no fracasso, mas, para tanto, é preciso reconhecê-lo e responder por ele. Infelizmente, porém, parece que a ética tucana da responsabilidade não passava de uma ética do sucesso; faltava-lhe grandeza -pelo menos, a do apostador vencido que honra sua derrota.


*Renato Janine Ribeiro, 49, é professor titular de ética e filosofia política da USP (Universidade de São Paulo). É autor de “A Última Razão dos Reis” (Companhia das Letras), entre outras obras.
Artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, 3/03/99