Autores hoje escrevem para serem aceitos e não para serem lidos, diz o crítico Alfonso Berardinelli

Poetas às pencas

Luiz Dulci
Maria Betânia Amoroso
especial para a Folha*

Embora muito traduzida e lida no resto da Europa, pouco se sabe no Brasil sobre a atual crítica literária italiana. Um de seus nomes de maior destaque é o de Alfonso Berardinelli, ex-professor da Universidade de Veneza, que abandonou a vida acadêmica para se tornar escritor independente, autor de ensaios polêmicos e dessacralizadores e também editor da instigante revista “Diário”.
Na entrevista a seguir, feita durante uma visita a São Paulo, Berardinelli fala sobre sua obra e sobre sua tentativa de recuperar a literatura como experiência e o ensaísmo como crítica da cultura.

Folha – O que significa a crítica literária para o senhor? Como foi que se tornou crítico?
Alfonso Berardinelli – Pode parecer um paradoxo, mas me tornei crítico quase sem querer. Nos anos da minha formação a crítica era o caminho mais óbvio para se chegar à literatura. Tanto o romance quanto a poesia refletiam intensamente sobre sua própria situação. Desde menino achava que a literatura fosse crítica antes de ser invenção. Li Tolstói, Camus, Eliot entre os 14 e 18 anos: nos três encontrei um violento mal-estar em relação à vida social. Na universidade, quando comecei a ler ensaios de crítica literária, me atraía muito o estilo dos críticos, além de suas idéias e métodos. Gostava tanto dos críticos-escritores como Leo Spitzer, Roland Barthes, Walter Benjamin, Edmund Wilson, quanto da crítica escrita por poetas como Eliot, Montale, Gottfried Benn, Auden, Enzensberg. Para mim a crítica literária estava sempre misturada com a crítica da ideologia, dos mitos contemporâneos, das idéias correntes. Até hoje acredito que a verdadeira crítica (que se distingue do estudo universitário, “científico” ou histórico da literatura) seja também crítica da sociedade.
Sempre procurei me fazer entender, tentando evitar que os alunos se transformassem em pequenos esnobes. Uma crítica literária chata e obscura é um contrasenso, uma verdadeira traição. Nossa tarefa é, antes de mais nada, entender e fazer com que se entenda. É claro que se pode também escrever obras exemplares, de originalidade intelectual, mas isso vem depois.

Folha – Se fosse citar três nomes da crítica italiana deste século, quais seriam?
Berardinelli – Hoje, na Itália, fala-se de Gianfranco Contini e Giacomo Debenedetti como os dois maiores críticos literários do século. Contini e Debenedetti são as duas faces da crítica literária italiana contemporânea. E olham para direções opostas. Os autores de Contini são Gadda e Montale, autores de inventividade acima de tudo linguística (não exclusivamente, é óbvio); os de Debenedetti são Svevo e Saba, inventores de situações e de personagens.

Fui aluno de Debenedetti nos anos 60 e fui muito influenciado por ele, também por suas desgraças universitárias. Isso me lembra o que aconteceu com Benjamin: quando sua tese de doutorado sobre o “Drama Barroco Alemão” foi recusada e ele foi excluído da universidade, parece que um professor teria dito que “a inteligência não pode ser promovida!”.

Folha – Entre nós se afirma com muita segurança que a crítica militante morreu. Qual é a sua opinião a respeito?

Berardinelli – São tempos difíceis para a crítica militante. Um crítico militante é um escritor pleno, um analista da situação humana e social contemporânea a ele. Mas esse tipo de crítica encontra cada vez menos espaço, não só na universidade, mas também nos jornais. À universidade interessa o estudo histórico ou filológico, uma crítica que cai frequentemente numa linguagem cifrada. Já no jornalismo prevalecem artigos apressados, muitos deles escritos por gente com idéias imprecisas e sem competência literária. Os artigos nos moldes tradicionais estão desaparecendo. Além do que é difícil que esse tipo de crítico fale livremente. A grande maioria diz o que as editoras e os autores querem que se diga. E aí já estamos na publicidade.

Folha – Um dos ensaios mais lidos e citados da sua obra é “As Várias Vozes da Poesia Moderna”. Nele, discutindo o livro “A Estrutura da Lírica Moderna”, de Hugo Friedrich, o senhor traz para a cena outras tradições da poesia ocidental que foram desconsideradas pela eleição de um padrão crítico único.Berardinelli – O livro de Hugo Friedrich é um dos exemplos mais conhecidos de sistematização teórica da modernidade. É um ótimo livro, ainda hoje muito útil. Mas, por comodidade expositiva, reduz a poesia moderna a um esquema (linguagem anti-realista, obscuridade, arbítrio, esvaziamento semântico etc.), que deixa de fora muita coisa. Na verdade, seguindo a ótica de Friedrich e dos teóricos das vanguardas, muitos grandes poetas modernos não teriam sido, de fato, “modernos”. Com as categorias de inovação formal ininterrupta, de fuga da realidade, do significado, da experiência comum e da língua de uso, não se pode compreender autores como Kavafis, Saba, Machado, Pasternak; e se perde também uma boa parte de Eliot, Benn, Maiakóvski, Cesar Vallejo, W.C. Williams, Brecht, Pessoa, Drummond etc. A verdade é que tudo, em Friedrich e em certas vanguardas, parte de Mallarmé e Rimbaud, passando por cima de outros modelos de modernidade, como Whitman, Dickinson, Leopardi. A poesia moderna não é só antiprosa, é também invasão da poesia pela prosa. Não é só violenta abstração formal, é também violência comunicativa. Como disse Eliot, em poesia não existe “música” que não seja música de um significado.

Folha – Em 1975 o senhor publicou, junto com Franco Cordelli, uma antologia de novos poetas italianos. Qual é, no seu entender, a situação da poesia contemporânea?
Berardinelli – Independentemente de para onde se olhe, a situação atual da poesia é bem caótica. Na Europa continental as coisas vão mal. Os efeitos negativos das neovanguardas formalistas dos anos 50-60 ainda são sentidos. Durante um certo tempo os joguinhos linguísticos a frio, sem sequer a ironia ou o humor da vanguarda do início do século, transformaram a poesia em assunto de seminário universitário. Pequenos objetos gélidos e insensatos que deveriam confirmar os princípios enunciados nos tratados teóricos da modernidade. A partir dos anos 70-80 alguma coisa mudou. Mas o que hoje mais impressiona é a quantidade de pessoas que escrevem. Parece que escrever e ser publicado é um dos direitos reivindicados: se escreve para ser aceito e não para ser realmente lido. Além do que existem hoje mais escritores do que leitores. É uma situação paradoxal e ingovernável, que paralisou a crítica. Quando, em um país, os poetas de qualidade média são mais de cem, o que pode fazer o pobre crítico? Por outro lado, se a crítica não consegue mais dizer os seus “sim” e os seus “não”, mas descreve e justifica tudo, sem julgar, os poetas se multiplicam ainda mais. E com frequência acontece que os mais conhecidos, publicados pelas editoras, não são de fato os melhores. Muitas vezes se trata de razões não literárias: relações pessoais, favores recíprocos, simples inércia etc. Não apenas o público da poesia é feito somente de poetas ou aspirantes à poesia: o problema é que nem mesmo os poetas lêem muita poesia. Uma arte sem um público real corre sérios riscos. Tentem imaginar o que aconteceria à música se ninguém fosse mais capaz de distinguir a música do ruído… É o que está acontecendo com a poesia.

Folha – Tanto os críticos-escritores como o ensaísmo estão sempre presentes na sua reflexão sobre crítica. Mas do que é feita, afinal, essa crítica?

Berardinelli – Acredito muito na forma literária do ensaio. Deixei de escrever poesia há mais ou menos 15 anos, quando entendi que meu gênero literário era o ensaísmo. Precisava dizer alguma coisa e na poesia dizia cada vez menos; me sentia amarrado. É como se eu tivesse substituído a poesia em versos pelo pequeno poema em prosa. O ensaísmo, entretanto, pede uma simpatia pelas idéias e até mesmo pelos jogos intelectuais. A mim interessam todas as formas e ramificações do ensaísmo: o aforismo, o diário, a carta, a conferência, a sátira cultural, a paródia etc.

Folha – Após uma longa experiência como professor, não só universitário, o senhor abandonou o ensino da literatura. O que é preciso fazer hoje, na escola, para criar futuros leitores?

Berardinelli –
Eu diria que, antes de mais nada, é preciso tornar a literatura presente na sala de aula. Por exemplo, lendo um texto dez ou 20 vezes até que todos os estudantes o sintam fisicamente presente e real. O que mais conta não é transmitir um método de análise “passe-partout”, capaz de abrir, como um abridor de lata, todos os textos possíveis. Trata-se também de lembrar que os autores escreveram para serem lidos, não para serem ensinados. Muitos deles se sentiriam mal em relação ao uso que se faz na escola e na universidade de seus livros. É só pensar em Cervantes ou Molière sentados em um canto da sala, enquanto um professor dá uma aula sobre eles, entediando mortalmente os estudantes.

É preciso acima de tudo criar leitores. Só mais tarde alguns deles irão se tornar estudiosos. Além do mais, que tipo de estudioso será aquele que negou e matou dentro de si mesmo o leitor apaixonado? Existe um método simples para entender essas coisas. É perguntar se o estudioso de Virgílio ou de Baudelaire lê Virgílio e Baudelaire nas horas de folga ou só os estuda nas horas de trabalho.


*Luiz Dulci é presidente da Fundação Perseu Abramo e Maria Betânia Amoroso é tradutora e profesora de literatura italiana na Universidade Estadual de Campinas.
Publicado na Folha de São Paulo, caderno Mais, em 25/07/99