” A recusa finca raízes em necessidades de natureza econômica, social e política de afirmação do Brasil como nação.”

Às vésperas dos 500 anos do desembarque da frota portuguesa que deu início à empresa colonial nestas latitudes, os diferentes segmentos da sociedade que se constituiu ao longo dos cinco séculos tratam de expor, cada um deles, sua leitura, sua interpretação do tempo histórico percorrido. Não escapa a nenhum dos atores o fato originário, gerador de todo o processo: a sociedade brasileira como uma sociedade assentada sobre o saque colonial e a exploração da mão-de-obra escrava; portanto, uma sociedade fundada no conflito. O povoamento da costa; o estabelecimento das feitorias; a necessidade de penetrar o sertão; as “guerras justas” movidas contra os povos indígenas; a economia canavieira; a “necessidade” do braço escravo e a montagem da gigantesca fornalha em que se consumiram milhões de africanos, por quatro séculos – sem dúvida um dos maiores empreendimentos da história da acumulação capitalista -; a constituição do latifúndio como mecanismo de apropriação da terra e do mando; a busca do ouro e dos diamantes nas Minas Gerais; a economia do café e o percurso histórico e geográfico do Vale do Paraíba, São Paulo e norte do Paraná; a estratégia do branqueamento e a incorporação dos migrantes europeus e japoneses no sudeste e sul do país, todo esse processo será, sem dúvida, passado em revista.

Aqueles que guardam, como parte de sua herança, vínculos com o passado colonial, têm buscado ao longo da história dissolver ou dissimular o contorno da sociedade fundada no conflito e construir uma minuciosa interpretação que torne mais suportável para si e para os setores populares a crueza dos fatos. Foram, com o tempo, convertendo aquela interpretação numa cultura e até numa espécie de segunda natureza. Para essa elite, quanto mais feroz o conflito, tanto maior a necessidade de revesti-lo com um discurso que o negue ou o dissimule de tal forma que perca todo o poder de impacto como experiência vivida, sobre o imaginário da sociedade.

Aqueles segmentos e suas organizações sociais, políticas e culturais – entre os quais se inclui a Fundação Perseu Abramo – que recolhem e cultivam a herança da resistência às guerras de apresamento dos gentios; à escravidão dos negros na senzala e das lutas libertárias nos quilombos; ao saque colonial; à exploração capitalista dos ex-escravos, imigrantes e da classe trabalhadora moderna, elaboram seu entendimento e o expõem precisamente para revelar os contornos da sociedade fundada no conflito; para iluminar o caráter das relações estabelecidas durante os cinco séculos entre uma elite colonial e escravocrata, de um lado, e povos indígenas, negros, mestiços e brancos pobres, de outro; e acolher, por fim, a dimensão do conflito como parte inseparável da identidade histórica e cultural da formação do nosso povo.

Esse é um pressuposto indispensável para a compreensão da trajetória que cumprimos, da colônia à formação da nacionalidade; dos dramas que nos afligem no presente e que explicitam a face monstruosa desta sociedade desigual. E, por fim, para oferecer suporte ao desenho do projeto generoso de sociedade que desejamos para o Brasil nos próximos 500 anos. O desejo de incorporar a diferença e os diferentes, a dimensão das contradições, dos conflitos de interesses sociais, étnicos, regionais, sedimenta uma concepção que escapa à polarização sem nuances, entre opressores e oprimidos, e, ao mesmo tempo, torna possível recusar a homogeneização de interesses e projetos sociais e políticos contraditórios sob o manto das exigências da “globalização”.

A recusa finca raízes em necessidades de natureza econômica, social e política de afirmação do Brasil como nação. Mas não pode nem quer escapar do chão cultural de onde retira a seiva indispensável para se exprimir. Num momento em que a dinâmica do capital financeiro nos países centrais aprofunda a dependência e força o colapso dos estados nacionais, nos países periféricos, a dimensão cultural adquire uma importância essencial como signo de identidade – em dias como os que correm, é profundamente verdadeiro afirmar que nossa cultura é nossa diferença – e, num país como o Brasil, essa identidade é inseparável da história moldada nos canaviais e nas minas, nos engenhos e nas senzalas, nas igrejas, nas usinas, nos terreiros, nas rodas de samba ou de capoeira, no Quarup, nos estádios, pelas mãos de índios, negros, amarelos, brancos e seus descendentes.

O Brasil, como povo, inclui-se “no fato americano”. Não é redutível, portanto, à matriz histórica e cultural européia e ocidental. Vaza com avassaladora energia desse contorno ao incorporar na medula os Orixás e os Xamãs, e misturá-los com espantosa liberdade às heranças culturais e religiosas dos colonizadores; ou, indo além, ao instituir a dinâmica do sincretismo como processo capaz de incorporar e legitimar novos componentes ao seu perfil cultural.

A tarefa de desvelar a história que cumprimos nestes cinco séculos, e oferecer uma leitura que recupere aquela definição de uma sociedade fundada no conflito, está posta. Dela deriva outra não menos importante: trabalhar a paixão do nosso povo por uma perspectiva democrática e popular que se contraponha ao processo de desconstituição nacional em curso. A Fundação Perseu Abramo deseja somar-se a todos os setores populares que se empenham para concretizar esse objetivo, convencida da importância de trazer à luz e ao debate a elaboração dos estudiosos capazes de, em fina sintonia com as aspirações populares, contribuir para redesenhar o projeto de Brasil que contemple as esperanças da maioria dos seus filhos.

Fundação Perseu Abramo
São Paulo, 21 de abril de 1999
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