Não é novidade a ausência geral de credibilidade dos partidos políticos, no Brasil. Nossa história republicana é frágil no que diz respeito às instituições partidárias. Somos herdeiros do coronelismo e da tradição do mando pessoal que elimina a mediação de instituições coletivas.
por Pedro Tierra


Por Pedro Tierra*

Perseu Abramo, jornalista, observador experiente, nos advertia durante os anos de construção e consolidação do PT, para essa característica que se acentuou de modo considerável na imprensa brasileira: desde a derrota da ditadura militar, quando os meios de coerção direta e do exercício da força deram lugar à necessidade de convencer para legitimar-se, ela passou a substituir os partidos conservadores, cumprindo um papel importante no que diz respeito especificamente ao ofício de zelar por sua hegemonia ideológica na sociedade.

Não é novidade a ausência geral de credibilidade dos partidos políticos, no Brasil. Nossa história republicana é frágil no que diz respeito às instituições partidárias. Somos herdeiros do coronelismo e da tradição do mando pessoal que elimina a mediação de instituições coletivas. Os partidos conservadores, assentados em uma conduta que conjuga relações fisiológicas, anemia programática e convivência com a corrupção, vivem um processo de desgaste que minou-lhes a autoridade e conferiu uma ênfase ainda maior ao papel dos meios de comunicação como mecanismos “construtores de consensos”. Eles cumprem aqui aquele papel que em outras sociedades, particularmente na Europa, é atribuído aos partidos. Assim, da modelagem diária dos hábitos de consumo, dos comportamentos, dos valores visceralmente individualistas às opções políticas dos cidadãos em operações de grande envergadura, como a construção do fenômeno Collor, foi decisivo o papel dos meios de comunicação, incluídos aí os institutos de pesquisa.

Da construção de consensos para a tarefa de engendrar o discurso do pensamento único segundo os cânones neoliberais, não foi mais que um passo. O pacto articulado em torno de Fernando Henrique tendo como base político-institucional a aliança PFL – PSDB, agregando PMDB e siglas menores à direita, ou simplesmente fisiológicas, amplia-se e alcança setores significativos da academia e a quase unanimidade dos meios de comunicação. As exceções ficam por conta de profissionais que individualmente, em sua produção intelectual nos centros de ensino e pesquisa ou nas colunas dos jornais, não abrem mão do exercício da crítica e do direito de oferecer uma leitura alternativa dos fatos. Praticando um antigo ofício dos humanos: pensar. E “pensar é pensar contra”, avisa Eugênio Bucci em sua breve apresentação do volume de entrevistas com intelectuais à esquerda Desorganizando o consenso (Vozes, Ed. Fundação Perseu Abramo, S. Paulo 1998) “A concordância não exige pensamento – basta dizer sim e conduzir-se pela imitação ou pelo mimetismo. Mas pensar é menos automático. É preciso um senão, algum senão, uma rusga, uma diferença, um olhar que não se acha lá muito de acordo com outros olhares que cercam (e cerceiam) o sujeito. Pensa quem precisa pensar – e precisa pensar quem é contra”.

Soldou-se assim, durante algum tempo, a moldura que pretendia contemplar a totalidade do pensamento econômico e político e cultural do país. Fora dela não havia debate possível. Fora dela não havia salvação. Quem não apresentava proposta para tornar mais eficiente a estratégia neoliberal não apresentava proposta nenhuma. Portanto, devia calar-se. Viver uma espécie de excomunhão.

O exame dos resultados das eleições municipais de 2000 mostra que a moldura rompeu-se. E pode contribuir para compreendermos com maior profundidade não apenas os anseios da sociedade, seus desejos e expectativas, mas o grau de complexidade da disputa que se trava entre os valores democráticos e socialistas e o pensamento conservador no Brasil.

Abertas as urnas, abriu-se com elas uma verdadeira batalha em torno das versões oferecidas para entendermos os resultados. E há para todos os gostos. Desde a versão de que o pleito municipal, nos dois turnos de 1o e 29 de outubro, não altera substancialmente o quadro político do país, ou seja, ganhou o governo; passando pela espetacular vitória do PPS, partido que mais cresceu em número de prefeituras, ou as que dão conta de uma derrota do velho PMDB e polarização entre o PFL e o PT, os dois vencedores, em detrimento do PSDB que se manteve estável.

A frase de Bornhausen, presidente do PFL, depois do segundo turno é inequívoca: “não podemos contrariar a matemática, o PT ganhou, nós perdemos”. De fato, quem perdeu as prefeituras do Rio de Janeiro e Recife não pode declarar-se vencedor, sem cair no ridículo. Permeando todas elas, tentativas algumas vezes sutis, outras absolutamente grosseiras, carregadas de preconceitos, preferem examinar os matizes internos para localizar qual PT afinal foi vencedor. O PT vermelho ou o PT cor-de-rosa? Diante do óbvio crescimento do Partido dos Trabalhadores, exercitou-se uma discriminação interna cujo propósito é justificar o discurso segundo o qual os milhões votos descarregados na sigla, não aspiram afinal a grandes mudanças. Ou seja, é um voto, em última análise… conservador…

Ricardo Noblat, editor do Correio Brasiliense advertia em sua coluna do último domingo sobre o assunto: “não se pode brigar com os fatos(…) não conheço ninguém que tenha se saído bem nessa tentativa”, apesar disso, um importante semanário, em matéria de capa, insiste em encontrar um atalho: quem venceu as eleições foram as mulheres! Talvez tenha sido fundada uma nova legenda, depois da apuração dos votos de 29 de outubro: O Partido Feminino. Importa menos a cor dos vencedores que os olhos daltônicos de certa mídia são incapazes de perceber e mais o rumo que a sociedade aponta: a superação de um quadro dramático de desemprego, de miséria, de submissão aos ditames do capital financeiro internacional, de desmonte dos serviços públicos e do abandono de grandes parcelas da população à sua própria sorte.


* Pedro Tierra é poeta e Diretor da Fundação Perseu Abramo

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