“A falência da política de segurança pública”, por José Genoino*
“O fato é que as polícias continuam despreparadas, não-integradas e sem os equipamentos, os métodos, os planejamentos e as estratégias necessários para enfrentar a criminalidade”
Não é novidade para ninguém que a criminalidade organizada e a violência vêm ganhando terreno em todo o Brasil. Mas os atos trágicos, dramáticos, e as trapalhadas que se sucederam nos seqüestros envolvendo a família do apresentador Silvio Santos podem ser erigidos como símbolos da falta de comando, de preparo e de planejamento na área de segurança pública.
Num momento em que os seqüestros bateram todos os recordes em São Paulo, a Guarda Civil de Cotia descobre os seqüestradores, o secretário de Segurança e a polícia anunciam que se trata de amadores, o planejador do seqüestro mata dois policiais e fere um terceiro, retorna à casa de sua vítima e toma o proprietário como refém.
Esses acontecimentos espetaculares não ocorrem por acaso. Nestes quase oito anos de era tucana, não se investiu numa política nacional de segurança pública digna desse nome. Ao contrário: muitas medidas vão no sentido de precarizar ainda mais a segurança pública. Exemplo disso é o Decreto n.º 3.893, da Presidência da República, de 24 de agosto último. Ao conferir poder de polícia às Forças Armadas e definir as circunstâncias e as condições de seu uso para a garantia da lei e da ordem, o decreto representa um passo a mais na falência da segurança pública e no sucatamento das polícias. O fato é que as polícias continuam despreparadas, não-integradas e sem os equipamentos, os métodos, os planejamentos e as estratégias necessários para enfrentar a criminalidade crescente e cada vez mais ousada.
Nas sucessivas crises das polícias, o governo adota medidas paliativas, que não enfrentam o problema pela raiz. A situação caótica da segurança pública não é enfrentada com planejamento e qualificação, mas por mais uma medida inócua e perigosa, decretando-se a possibilidade do uso das Forças Armadas para a atividade de polícia.
Cabe enfatizar que as Forças Armadas não têm preparo, não têm treinamento nem têm equipamento para agir como polícia. A sua finalidade é outra: a segurança nacional e a defesa do País. O decreto do presidente Fernando Henrique Cardoso incumbe as Forças Armadas, em caso de necessidade, de “desenvolver as ações de polícia ostensiva, como as demais, de natureza preventiva ou repressiva, que se incluem na competência, constitucional e legal, das Polícias Militares”… Isso quer dizer que as Forças Armadas podem ser empregadas para policiamento ostensivo, para prender bandidos, fazer prisões em flagrante, atuar em rebeliões de presídios, promover desocupações de prédios e terras, policiar manifestações, intervir em conflitos de torcidas, etc. O emprego das Forças Armadas para situações internas já estava previsto na Constituição e se restringia a situações-limites, como a decretação de estado de defesa, estado de sítio, intervenção federal e risco de quebra da ordem institucional. Em casos de greve de polícia ou perda de controle em algum Estado, poder-se-ia estabelecer a prerrogativa de a União convocar forças policiais de outros Estados para estabelecer a ordem e prover a segurança.
O decreto presidencial, além de jogar as Forças Armadas em ações para as quais não estão preparadas, as coloca, potencialmente, em situações de alto risco. Se não estão preparados para a atividade policial, os militares do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica podem cometer erros que resultem em violação de direitos ou até mesmo na morte de inocentes. Nessas possíveis ocorrências, quem arcará com as responsabilidades? O presidente da República? O governador do Estado? Os comandantes militares? No caso da repressão ou conflitos com movimentos sociais, o risco será o da politização dos episódios, com as presumíveis conseqüências desagradáveis para a democracia e para as próprias Forças Armadas.
Conferir poder de polícia às Forças Armadas significa, em primeiro lugar, banalizar sua função e, segundo, desqualificar ainda mais as polícias estaduais. A possibilidade de uso policial das Forças Armadas, sem custos para os Estados, representará um estímulo aos governadores para que continuem não investindo na qualificação, no equipamento e na remuneração das polícias e em políticas eficazes de segurança pública.
O decreto presidencial pode expressar também uma concessão às diretrizes do hegemonismo norte-americano, que pressiona os países em desenvolvimento no sentido de empregarem as Forças Armadas na segurança pública interna. Com a diminuição da capacidade de defesa externa dos países periféricos, a defesa e a segurança internacionais passariam cada vez mais a se definir como atribuições dos grandes exércitos dos países centrais, como Estados Unidos, alguns da Europa e, eventualmente, Rússia e China. Ao que tudo indica, além da já elevada dependência financeira e tecnológica, os Estados Unidos agem para aumentar a dependência militar dos países latino-americanos. Deslocar as Forças Armadas de suas funções de defesa nacional para funções de policiamento é um meio de realização desse objetivo. Assim, a antiga doutrina de emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem interna, que no período da guerra fria estava orientada para o combate a grupos e movimentos de esquerda, parece que agora está sendo reelaborada visando a transformar os exércitos em polícias nacionais. Essa diretriz pode não só debilitar a capacidade de defesa nacional dos países dependentes, mas tornar ainda mais precária a segurança pública da sociedade.
*José Genoino é deputado federal (PT-SP)
Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, 01/09/2001