Tornou-se não só um analista audacioso da globalização, da ideologização do processo social como da pobreza em nosso país. “


Foram perto de vinte anos de convívio acadêmico no Departamento de Geografia. Conhecemo-nos bem. O Professor Milton Santos tinha a autoridade de um intelectual militante. Nas nossas lides, a ele recorríamos em função das mais diversas circunstâncias, e quaisquer que fossem elas, sobre os caminhos da Geografia, sobre a Universidade em suas relações com a sociedade ou sobre conhecimento, havia sempre uma disposição, um “plus” que o movia no sentido de uma crítica incisiva, contundente. Ficamos mais pobres pela sua ausência.

Não obstante, vivenciamos certas divergências, as quais, até onde posso compreender, eram de método. Nunca divergimos em relação aos propósitos de nossa prática como professores na universidade.

Recordo-me que, em certo momento , na condição de Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros, intrigava-me com aquilo que parecia ser um grande paradoxo: uma entidade capaz de reunir mais de duas mil pessoas, estudantes e professores de Geografia, nos seus simpósios e congressos, ter que viver cotidianamente um grande esvaziamento. Discutindo isto que me parecia ser uma questão crucial, vinha a idéia de diversificar as publicações, de promover atividades culturais e políticas, entre outras tantas.

Foi então que organizamos em São Paulo um debate sobre as associações científicas e, em 15 de novembro de 1996, como parte das atividades, o Professor falou sobre a relação entre ciência e técnica. Raciocinou profundamente sobre a ciência, sobre o conhecimento e o sentido de finalidade estrito que conduz à funcionalidade técnica. Discutiu seus efeitos na vida social porque condicionava a cotidianidade moderna. E assim conduzia, de modo exigente, a uma compreensão da sua posição contra os tecnocratas. Era, enfim, o caminho de discussão do paradoxo que nos envolvia. Não conseguiria, obviamente, reconstituir agora suas idéias mas vale lembrar que depois desse episódio o vi, cada vez mais, como um crítico das tecnologias incorporadas diuturnamente ao modo de vida.

Os anos de estudos e de trabalho pelos quatro cantos do mundo – Europa, América, África e Ásia – valeram-lhe enorme experiência. Costumava dizer que ao ganhar distância do seu meio sociocultural, pôde ver a si próprio melhor, mais profundamente.

Como outros intelectuais de sua época, viveu as lutas por um projeto nacional que estava centrado nas estratégias da industrialização brasileira e que reunia um conjunto de idéias capazes de entusiasmar várias gerações.

De volta ao Brasil, parece não ter parado um só dia.

Estávamos diante de um pensamento que se movia levando consigo tudo aquilo que encontrasse pela frente. Encontrava seus interlocutores pelos corredores, pelo café, tinha sempre algo a dizer, a perguntar e a ouvir.

Tornou-se não só um analista audacioso da globalização, da ideologização do processo social como da pobreza em nosso país.

Identificou a globalização como globalitarismo, porque além de pressupor a não democracia – o que se está dando agora – representa, ao mesmo tempo, essa vocação atual para seguir a vontade de um grupo de empresas e de países hegemônicos; a globalização é ela própria um sistema totalitário que chega à vida cotidiana. No caso do Brasil, por exemplo, nos dizia o Professor, o discurso do chefe da nação deveria ser pedagógico. E, no entanto, o nosso chefe da nação diz que todos os que não pensam como ele são canalhas, burros, estúpidos, vagabundos, não admite nenhuma discrepância com o que ele próprio pensa.

É a eliminação do debate. E mais, nos dizia, a globalização não subsistiria sem sua própria fabulação. Condena-se a população brasileira a morrer sem cuidados médicos e dizem que estamos caminhando para uma saúde pública melhor. A globalização é fábula porque quando nos falam sobre a aldeia global querem dizer que todos sabem o que se passa no mundo.

A globalização só se tornou possível nesta época dos mercados financeiros globais, sob coordenação das respectivas instituições financeiras, que articulam esses mercados financeiros globais no interior do sistema de Estados. Antes, os mercados nacionais eram mais ou menos regulados pela política nacional.

E assim as grandes empresas escolhem os lugares que lhes interessam; o Estado, através de suas estruturas de gestão, geralmente, ratifica tais escolhas. Mas há nessa desordem a oportunidade intelectual e política de nos deixar ver como o território revela o drama da nação, porque ele é, eu creio, dizia o Professor, muito mais visível através do território do que por intermédio de qualquer outra instância.

Mas, ao mesmo tempo, conseguia ser otimista, como dizem os alunos, e pensar pra frente. Pensava que o pobre enfrenta o mundo todos os dias; a cada manhã tem uma longa jornada para chegar ao dia seguinte, que esse enfrentar o mundo é sua conquista. Como são muitos os conquistadores eles estão tecendo uma história da qual nem sempre nos damos conta. É por isso que eles têm a História nas mãos e que mostrarão isso de alguma forma.

Pensando amplamente e em profundidade sobre o mundo, o Professor Milton deu grande visibilidade à Geografia como campo de conhecimento, e proporcionou a todos que com ele puderam privar de sua inteligência momentos de inquestionável valor.


*Odette Seabra é professora do departamento de Geografia da USP; realizou juntamente com Mônica de Carvalho e José Corrêa Leite entrevista com Milton Santos publicada no livro “Território e Sociedade” da Editora Fundação Perseu Abramo.

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