“Brasil inicia uma revolução democrática”, entrevista com Maria Victoria Benevides
“Do ponto de vista do partido, essa vitória significa o tempo da colheita. Faz 22 anos que o PT está semeando.”
Brasil inicia uma revolução democrática
Entrevista com Maria Victoria Benevides
O Brasil inicia hoje uma verdadeira revolução democrática, legitimada pelo apoio da sociedade civil, que terá como eixo estruturante o social. Este é, para a socióloga e cientista política Maria Victoria Benevides, o grande significado da chegada de um ex-operário com a trajetória de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República.
Para ela, que é professora da Faculdade de Educação da USP e participou da elaboração do Programa de Governo da Coligação Lula Presidente, uma liderança popular e de esquerda que chega ao poder de maneira rigorosamente democrática e com esse apoio, contrariando uma tradição populista e caudilhista na América do Sul, causará grande impacto mundial. “Ele terá essa legitimidade para enfrentar problemas gravíssimos que o mundo está enfrentando, esse conflito cruel dos países ricos com os países emergentes, essa hegemonia norte-americana”, afirma.
Fortalecido, portanto, aos olhos internacionais, Lula terá de contornar o excesso de expectativas da população “sem-tudo”, que espera uma resposta imediata às suas carências seculares. Segundo Maria Victoria, não será possível fazer milagres e resolver de uma hora para outra essas carências. “Terá que ser estabelecido um sistema de canais através do Congresso, dos partidos e das entidades da sociedade civil para que essas demandas não se transformem em terríveis frustrações ou em revoltas”, analisa. Leia a íntegra da entrevista:
O que representa para o Brasil e para a política do país a chegada de um ex-operário à Presidência da República?
Para o Brasil significa uma verdadeira revolução democrática, no sentido de uma mudança dentro do regime democrático para um governo que terá como eixo estruturante o social. Com propostas objetivas e claras de atendimento aos gravíssimos problemas que levam a essa brutal desigualdade social no Brasil. E um governo que, dentro das regras democráticas, fará um grande entendimento e terá certamente que contar com, não apenas o apoio do parlamento, das forças políticas – mesmo aquelas que tiveram candidaturas de adversários -, mas que principalmente terá que contar com o apoio da sociedade civil organizada, que é, afinal de contas, o que garante a legitimidade de um governo na democracia.
Do ponto de vista do partido, essa vitória significa o tempo da colheita. Faz 22 anos que o PT está semeando. Há um tempo de semear, um tempo de colher. É um partido que não existe outro na nossa história e que ficou 22 anos num processo de crescimento e de conscientização política, de organização pela base. É um partido que começou de baixo. E agora está no tempo de colher os frutos desse período de formação política com tanta densidade.
Lembro-me de uma das reuniões que deram início ao partido, no final dos anos 70, com antigos socialistas muito militantes a vida inteira, como Antonio Candido, e outros que já se foram, como Sérgio Buarque de Hollanda, Mario Pedrosa e Helio Pellegrino. O Helio, sempre muito bem falante, disse: “Olha a nossa satisfação, Perseu Abramo, olha nossa satisfação de nós, socialistas, aqui reunidos mais uma vez. E é a primeira vez que nós estamos participando da fundação de um partido e nós não somos os donos da bola”. Então, essa origem efetivamente popular, de base, de agregação de movimentos populares, das sociedades de base, do sindicalismo etc., isso chegar ao poder máximo da República é realmente um feito sensacional. Eu diria que é a vitória mais importante da nossa história.
A sra. acredita que, com essas eleições, está emergindo no país uma nova esfera pública, uma nova cultura política no país?
Isso seria o ideal. Mas acho que estamos no começo disso. Temos que ser modestos, porque mudar uma cultura no sentido de mudar a mentalidade, mudar formas de se envolver com política, de atuar na política, isso é algo que requer algum tempo. Haja vista por exemplo todo tipo de adesão que tem aparecido para o PT. Há algumas que são adesões sérias, no sentido de contribuir para o bem público, para a democracia. E a outra, infelizmente, nós sabemos que vão querer apresentar uma conta do “toma-lá dá-cá”. Por isso que esse governo, rigorosamente democrático, com participação da sociedade, com mecanismos de controle, de transparência, de certo será importante. Mas acho que o simples fato – que aliás não é simples, é um fato sensacional – desse terrível preconceito contra o Lula ter sido quebrado nessas eleições – quebrado, embora não eliminado totalmente. Esse fato já é em si um bom começo para a mudança na cultura política.
E como se contorna essa tentativa do “toma-lá dá-cá” que a sra. citou?
Há algo que é da natureza dos entendimentos e dos acordos políticos e que terá de ser respeitado. Os partidos terão que ter uma participação no governo de acordo com a sua contribuição, com sua competência etc. Mas o controle é o filtro do que realmente não viola os princípios éticos e programáticos do PT. Com certeza não significará, portanto, uma ameaça ao projeto do Lula.
Como se insere um governo Lula num momento que é de franca expansão da globalização neoliberal? A sra. considera que Lula é o perfil do político preparado para explorar as capacidades de manobra que vão se abrir nesse processo de globalização?
O Lula é um habilíssimo negociador e um excelente político. Sem diplomas, mas, ele mesmo diz que, se há alguma coisa que ele aprendeu a fazer na vida foi fazer política, que exige ter essa habilidade de negociador, de ouvir, de acordar etc. Mas é preciso entender que Lula não é um homem solitário, ele não é uma liderança populista à moda antiga, não é um líder bonapartista que vai ficar acima dos partidos, dos interesses de classe. Ele tem uma liderança pessoal e principalmente tem isso que é absolutamente fundamental, que é a legitimidade.
Eu acho que esse cabedal da legitimidade está aumentando cada vez mais. Mas ele tem uma equipe e um apoio nas chamadas forças vivas da sociedade como dificilmente outros governantes tiveram. É muito verdade aquilo que ele disse, que ninguém melhor do que o PT, sob a liderança política e moral dele, para enfrentar aqui mesmo no Brasil os desafios tanto do lado da direita quanto do lado da esquerda, e o que isso vai significar na América do Sul, na América Latina… Ou seja, uma liderança popular e de esquerda e que chega ao poder de uma maneira rigorosamente democrática e com esse apoio, contrariando uma tradição populista e caudilhista na América do Sul. Então, isso vai ter um impacto mundial muito grande.
Não há dúvida nenhuma de que essa vitória do Lula é a grande manchete na imprensa, nos meios de comunicação internacionais. Então ele terá essa legitimidade para enfrentar problemas gravíssimos que o mundo está enfrentando, esse conflito cruel dos países ricos com os países emergentes, essa hegemonia norte-americana… A gente fala tanto de globalização, mas a globalização tem coisas ótimas. O que é pavoroso na globalização é essa hegemonia cada vez mais aprofundada da loucura norte-americana no plano bélico, econômico, político e cultural.
No plano internacional, então, a sra. aposta que ele terá legitimidade para uma transição pacífica e gradual para um novo pacto financeiro econômico?
Eu não tenho dúvida, porque essa credibilidade virá da sua legitimidade.
Agora, internamente, como vai ser lidar com o excesso de expectativas dessas forças vivas?
Isso eu acho mais difícil, mais complexo, mais trabalhoso. Acho que ele terá um bom entendimento no Congresso, inclusive com a bancada petista ampliada e renovada, com muita garra. Ele terá mais governadores do que nós pensávamos no início. Mesmo aqueles que não se elegeram pelo PT, mas que estão do lado do PT, como aqueles eleitos pelo PPS, pelo PDT e pelo PSB, e alguns pelo PMDB, como é o caso de Santa Catarina, por exemplo. Então acho que ele terá um entendimento bem positivo com o Congresso e com os governos estaduais.
O que acho mais difícil, e estou convencida de que Lula tem muita consciência disso – a prova é que ele está insistindo que não vai fazer milagre, e eu mesmo disse tudo isso: Lula pode fazer muita coisa, menos milagre, porque isso não existe. Então nosso temor mesmo é esse: que os “sem-tudo” queiram, de um dia para o outro, resolver suas carências seculares. Nós temos sem-terra, sem-escola, sem-saúde, sem-previdência, sem-teto, sem-emprego, sem-cultura, sem-lazer, sem-aposentadoria, sem-seguridade social, sem-acesso à Justiça, sem-universidade…
De uma hora para outra, será impossível resolver esses problemas. Então terá que ser estabelecido um sistema de canais, por meio do Congresso, dos partidos e das entidades da sociedade civil, para que essas demandas não se transformem em terríveis frustrações ou em revoltas mesmo. E, portanto, é preciso que alguns programas sejam implementados com prioridades para que sinalizem, pelo menos – não vamos resolver tudo agora -, uma pauta de resolução e encaminhamento dos problemas.
As tendências do PT podem significar algum problema para o governo Lula?
Esses grupos de esquerda não são irresponsáveis. Eles certamente vão querer conquistar o seu espaço, e o PT sempre foi um partido com democracia interna, sempre garantiu um espaço de seus grupos. Mas eles não poderão ser irresponsáveis a ponto de inviabilizar projetos, propostas do programa partidário, exigindo o inviável. Estou convencida de que um presidente como Lula e um partido como o PT, se conseguirem garantir tudo o que está na Constituição vigente desde 1988, já será um gol.
É só ler o capítulo referente aos direitos; o capítulo referente à soberania popular através dos mecanismos de participação da sociedade no campo político; os compromisso do Estado com as garantias no campo sócio-econômico; a interdependência e independência entre os três Poderes no campo da governabilidade. Ou seja, se cumprir efetivamente o que prega a Constituição desde 1988 e que não foi cumprida nesses anos todos, já será um gol de placa.
A sra. faz parte de uma equipe que discute a reforma política…
Eu participei de um grupo sobre a reforma chamada política que começou há quase um ano, em novembro do ano passado. Discutiu-se toda uma pauta de reformas no sistema eleitoral, no sistema partidário, no próprio sistema de governo em relação ao Executivo, Legislativo e Judiciário, voto facultativo, voto obrigatório, democracia participativa. Todas essas questões foram amplamente discutidas, fizemos vários seminários regionais, não apenas em São Paulo, e temos um material extenso sobre isso.
E que tamanho teria essa reforma política se de fato ela for viabilizada?
O que nós chegamos à conclusão é que a maioria dos temas cortam todos os partidos. Não são questões doutrinárias nem ideológicas de um único partido. O próprio PT tem divergências em relação ao sistema eleitoral e ao sistema partidário e ao voto facultativo ou obrigatório etc. E há consenso sobre alguns temas, por exemplo: fidelidade partidária, financiamento público das campanhas eleitorais, democracia participativa, isso não há dúvida.
Retirado do site www.pt.org.br