Por Alexandre Fortes(1)

Mudou o PT, ou mudou o Brasil? Diante do êxito sem precedentes do partido nas eleições de 2002, a pergunta tem surgido reiteradamente. A forma primária como a indagação é formulada pela mídia – e por boa parte dos “especialistas” por ela entronizados – pode ocultar questionamentos relevantes. O limite entre crer na política como possibilidade de ruptura com estruturas sociais injustas e sucumbir à ilusão voluntarista pode ser tênue.

Mudança e permanência são ambas da natureza da sociedade humana e das instituições que ela cria. Como nos ensinou o mestre Marc Bloch[2], elas se apresentam ao observador sempre mescladas e, não raro, travestidas uma na outra. Compreender quando algo muda para permanecer o mesmo, ou quando ao manter-se igual assume – diante do contexto alterado – caráter totalmente distinto do original é sempre o grande desafio da investigação histórica.

A extraordinária vitória da esquerda no Brasil ocorre num cenário que não permite ufanismo. A América Latina vive de forma intensa os impasses que ameaçam o próprio futuro da idéia de democracia no mundo contemporâneo.[3] A derrocada dos regimes militares coincidiu com a perda de autonomia diante dos mercados financeiros internacionais, colocando em questão a própria soberania dos Estados nacionais latino-americanos e frustrando a expectativa popular de alcançar, por meio do voto, a solução para a dramática situação social enfrentada. A consolidação da democracia na região, processo no qual sem dúvida o Brasil tem papel de destaque, assenta-se sobre a base explosiva da barbárie social produzida pela combinação das desigualdades estruturais com a destruição neoliberal.

É impossível, porém, subestimar o impacto transformador do processo eleitoral deste ano sobre a sociedade brasileira.[4] A possibilidade de que o migrante nordestino, operário, socialista, Lula viesse a conquistar a Presidência da República – por si só um fato de ineditismo e relevância histórica inquestionáveis – já havia se estabelecido como o fator determinante para o reordenamento do cenário político nacional há cabalísticos 13 anos. Que Lula viesse a ser a expressão de um amplo arco de alianças sociais e políticas e de um esmagador desejo nacional por mudanças, consolidado em mais sessenta por cento das intenções de voto ao longo do segundo turno das eleições, praticamente inalterados diante de toda sorte de ataques, superou todas as expectativas. Que o PT se consolidasse como maior partido nacional, não apenas no que diz respeito à identificação popular com a sigla, mas também na sua sempre complexa tradução institucional em presença parlamentar, era algo considerado, há bem pouco tempo, totalmente fora do horizonte do possível.

Esta posição predominante no cenário político nacional foi construída pelo partido num processo que combina um crescimento cumulativo de longo prazo com ciclos alternados de avanço/esperança e derrota/frustração, apenas superados de forma clara e inequívoca pelo efeito de duas ondas sucessivas, nas eleições municipais de 2000 e nas estaduais-nacionais deste ano. Este crescimento acelerado e a experiência dele resultante, sem dúvida têm levado a um amadurecimento do PT em diversos aspectos. Porém, como um efeito colateral inevitável, conduzem o partido a adentrar cada vez mais no que era considerado, nas suas origens, um “território inimigo”, no qual ampliam-se também os riscos de perda de identidade e do discernimento dos limites éticos do pragmatismo necessário à luta política.

Cabe portanto, retornar com maior precisão à nossa questão original: – A crescente capacidade de tradução da vontade geral expressa pelo PT nas eleições de 2002 indicaria vocação hegemônica ou acomodação realista às condições e à correlação de forças estabelecidas na nossa sociedade?

Neste momento, qualquer resposta taxativa, num sentido ou noutro, presumiria uma capacidade totalizadora de análise, superior à reservada aos meros mortais. Para os “apocalípticos”, o governo Lula estaria condenado de antemão pelas concessões feitas para assegurar a eleição e a governabilidade. Para os “integrados”, a adesão de setores das classes dominantes a Lula indicaria que transformações significativas podem ser produzidas na nossa ordem social sem conflitos, com base em amplos consensos produzidos pela dedicação obstinada ao diálogo. [5]

Evidências significativas poderiam ser elencadas para fundamentar cada um desses pontos de vista extremos. Mas o fato é que ao buscar apreender o sentido de um processo ainda em curso, num momento em que é difícil avaliar de forma conclusiva os seus potenciais, correríamos o risco de alimentar uma polarização estéril, em detrimento do verdadeiro espírito crítico. Criar as condições para um avanço consistente da nossa capacidade de interpretar o momento histórico ímpar que vivemos exige, em primeiro lugar, um esforço intelectual coletivo e sistemático para formular as perguntas corretas; em segundo lugar, definir as linhas de investigação e os recursos (fontes, metodologia, etc.) necessários para criar condições superiores de respondê-las; em terceiro, gerar os mecanismos mais adequados para integrar o universo mais amplo possível de colaboradores neste processo, assim como para difundir e socializar os seus resultados.

No máximo podemos, de imediato, esboçar as linhas gerais de uma interpretação sobre o significado do encerramento desta primeira fase histórica do PT, em que o partido completa a longa travessia da sua configuração original, como expressão política da novidade histórica trazida pelo ciclo de movimentos sociais que pôs fim à ditadura militar, até tornar-se o instrumento da chegada ao poder de Estado pela esquerda no maior país da América Latina.

A conquista da Presidência da República foi concebida pelo PT, desde 1989, como passo decisivo para a implementação de um programa democrático-popular. As tarefas fundamentais do governo Lula, portanto, sempre foram relacionadas à radicalização da democracia e do exercício da cidadania, à retomada do crescimento econômico com distribuição de renda e à viabilização de políticas públicas antiexclusão.

Para construir a base política de sustentação deste programa, foi ficando cada vez mais clara a necessidade de se estabelecer alianças capazes de quebrar o isolamento imposto a qualquer projeto que desafiasse o neoliberalismo ao longo dos anos 90. Mais do que isso, enquanto amadurecia a possibilidade de vitória em 2002, tornava-se evidente o imperativo de explorar as divisões do bloco dominante, à medida que a arrogância tucana e o aprofundamento do caráter excludente do modelo político-econômico implantado geravam cada vez mais insatisfação em segmentos sociais, políticos, religiosos e da mídia que originalmente tiveram papel decisivo na sua sustentação.

A estratégia da campanha Lula 2002 foi concebida e implementada (com uma eficácia impressionante) para atingir estes objetivos. Mais do que assegurar a vitória eleitoral, os procedimentos de debate e negociação estabelecidos na relação com uma ampla diversidade de segmentos ao longo da campanha apontam para uma mudança do caráter da relação entre Estado e sociedade.[6] Este processo e as perspectivas por ele abertas retomam o caminho em busca do alargamento da esfera pública e da ampliação de canais participativos de gestão, esboçado no plano local pelos orçamentos participativos. Vale lembrar que este caminho vinha também sendo divisado no âmbito federal por meio dos mecanismos participativos de gestão de políticas públicas estabelecidos na Constituição de 1988[7] e da experiência das câmaras setoriais, antes de ser esvaziado pelos dois governos de FHC, para o qual estas experiências seriam mera expressão das ilusões “neopopulistas” nutridas pela esquerda tupiniquim.

Cabe, evidentemente, questionar os potenciais, limites e contradições envolvidos na adesão de novos segmentos sociais, se não ao PT, ao menos a esta concepção de democracia ampliada. Evidentemente, muitos vislumbram nos novos canais estabelecidos com uma elite dirigente emergente apenas o fortalecimento de suas tradicionais posições de lobby, talvez com um grau de “transparência” que lhes permita converter de modo mais direto seu capital econômico, político ou cultural em uma fatia do poder de decisão do Estado. A experiência histórica permite entretanto afirmar que o estabelecimento efetivo destes mecanismos possibilita, a partir da mediação de interesses privados e setoriais, a emergência de uma noção mais sólida de interesse público.

Mais do que isso, se bem sucedidos, os deslocamentos operados pelas novas alianças e pelo processo de construção da gestão pública compartilhada podem acabar afetando a própria composição política das classes e blocos de classes no país.[8] Desde as origens, o PT teve um papel ativo na redefinição da consciência de classe dos trabalhadores brasileiros. A própria consolidação da idéia, explicitamente sustentada pelo partido, de que o trabalhador não era apenas aquele que usava a chave-de-fenda ou a enxada, mas também o que manipulava a caneta, idéia esta respaldada pela importante mobilização sindical de setores como bancários e professores, indicava importantes mudanças na relação entre trabalhadores manuais e intelectuais, ou classes médias assalariadas.

Sob o manto desta nova consciência de classe emergente a partir dos anos 80, o PT contribuiu para acelerar a lenta erosão da interdição do acesso ao espaço público pelos subalternos na sociedade brasileira e para quebrar as relações de hierarquia e deferência que caracterizam o padrão autoritário dominante nas nossas relações sociais. Nesse sentido, o partido tem desempenhado relevante papel na ampliação da presença de trabalhadores e trabalhadoras rurais e urbanos, negros, feministas, líderes comunitários, etc. no Legislativo e no Executivo. Ao contrário das teses de Leôncio Martins Rodrigues[9] sobre a sua suposta transformação em um partido de “classe média e funcionários públicos”, o perfil dos petistas eleitos coroa uma mudança na densidade social da política brasileira que emerge com a ação dos novos movimentos sociais nos anos 70 e 80.

Já em 2002, o impacto do PT sobre a redefinição das estratégias de classe pôde ser sentido no pólo oposto. A começar pelo fato de um dos maiores empresários industriais do país ter aceitado ser candidato a vice-presidente na chapa de Lula. Mais do que isso, é significativo que José Alencar tenha definido explicitamente essa opção política como uma luta em defesa pela centralidade do trabalho e da “produção”, ameaçados pelo primado da economia virtual de base financeira. Este movimento se contrapõe diretamente ao tom rancoroso das declarações do outrora todo-poderoso Antônio Ermínio de Moraes, que buscou desqualificar Lula sob o argumento de que o ex-metalúrgico, há mais de vinte anos, teria deixado de trabalhar enquanto ele, o empreendedor, se dedicava à faina diária.[10] Não apenas uma luta em defesa do trabalho, vivemos nesta eleição o coroamento de uma longa disputa sobre o significado do conceito de trabalho. Para Antônio Ermírio – desmoralizado eleitoralmente por denúncias de trabalho escravo em suas terras na mesma eleição em que alguns líderes comunistas acreditavam ter nele finalmente encontrado a burguesia nacional – conceber e implementar estratégias em defesa dos interesses das suas empresas, o que ele faz cotidianamente, é trabalho. Fazer o mesmo buscando superar as desigualdades sociais do país, como Lula, não.

A fala do dono da Votorantim, empresa que cresceu e consolidou seus monopólios à sombra do poder do Estado, nos lembra como costuma pensar a elite brasileira sobre estes assuntos e permite melhor avaliar as possíveis mudanças em curso. Os Moraes podiam até mesmo ocupar uma vaga no senado pelo PTB, mas jamais tiveram dúvida de que os trabalhadores deveriam saber claramente qual é “o seu lugar” e esperar na linha de produção pelos frutos do desenvolvimento que “a gente séria e responsável” traria ao país. Fora da fábrica, deixavam de ser trabalhadores e tinham até mesmo a sua “cidadania regulada”[11] colocada em xeque.

José Alencar, já foi observado, poderia ser visto apenas como mais um exemplo do patrão paternalista que volta e meia emerge em regiões e períodos distintos na nossa história industrial.[12] Por outro lado, reconhece a idéia de que os trabalhadores possuem direitos sociais e considera legítimo que se organizem, o que de fato – quase sessenta anos após a CLT – poucos ainda aceitam. Mais do que isso, endossa na posição de vice a idéia de que as elites falharam em sua missão histórica de representar a nação e que, portanto, o protagonismo popular é, se não desejável, inevitável. A idéia é compartilhada também pelo ex-presidente José Sarney, ao declarar que Lula teria as condições de fazer o pacto social que ele não tivera, por ser: “o primeiro presidente da história do Brasil oriundo da área do trabalho, e não dos interesses consolidados capitalistas”.[13]

A eventual euforia com o que pareceria ser uma conversão de Sarney ao marxismo determinista e ortodoxo deve ser contida por um outro comentário incluído na mesma entrevista: “Nós temos que passar por esse gargalo, passar pelo PT; então, vamos passar logo”. Esta é, precisamente, a visão de Delfim Neto que, como Sarney, se inspira nos resultados “modernizadores” que governos social-democratas, eventualmente liderados por operários, tiveram para o capitalismo na Europa e na Oceania.[14] A expressão “passar por esse gargalo” indica a segurança de quem não concebe a mais remota hipótese de que um governo Lula possa abalar as estruturas de mando e dominação no país.

Numa perspectiva conservadora e eurocêntrica, Delfim e Sarney ignoram ou buscam desconhecer a profundidade das contradições não resolvidas pela ausência de uma revolução burguesa no país. Essa é a explicação para o fato das próprias práticas da negociação e da pactuação só se tornarem possíveis quando os dominados assumem, por fim, uma posição política predominante.[15] Por essas e por outras, reformas estruturais efetivas, mesmo dentro dos marcos do capitalismo e da normalidade institucional, podem assumir no Brasil o caráter de uma revolução democrática, como apontava o programa de Lula já em 1994. Se, porém, não alterarem a estrutura de poder na sociedade, podem facilmente se tornar embustes, como os programas “sociais” de FHC, incapazes de cumprir mesmo o papel compensatório para o qual foram concebidos.

Levando em conta esta diferença de contexto histórico, faz algum sentido falar do destino do PT e do governo Lula à luz da experiência social-democrata? Como se sabe, o partido jamais se definiu assim, e sucede no poder a outro que pretendeu sê-lo embora, como aponta Delfim, jamais tenha tido a base social necessária para tanto (“Não existe partido social-democrata só com professor universitário”). O debate sobre a social-democracia entre nós sempre foi truncado por mistificações alimentadas tanto por simpatizantes quanto por opositores dos partidos europeus mas também, especialmente, pela diferença de um século entre a emergência do fenômeno na Europa e dos processos político-sociais, sem dúvida semelhantes em diversos aspectos, que geraram o PT no Brasil.

Considerando-se aquilo em que a social-democracia européia havia se tornado nos anos 70 e 80, sempre houve poucos no PT que a defendessem como modelo, e isso foi claramente expresso nas resoluções políticas do partido. Por outro lado, as conquistas do “Estado de Bem-Estar” associadas aos governos social-democratas sempre foram uma referência concreta a fortalecer a visão de que a participação dos trabalhadores na política resultaria em mudanças significativas na realidade social, mesmo no contexto de uma economia capitalista. Como dizia Lula a uma certa altura, se fosse possível “colocar o padrão de vida sueco num navio e despachar para o Brasil” o PT não seria contra.

O problema é que tanto o afastamento da social-democracia do seu projeto original de superação gradativa do capitalismo quanto as condições de vida dos trabalhadores europeus na segunda metade do século XX eram produtos históricos resultantes de uma longa e traumática trajetória, incluindo processos revolucionários, a ascensão da URSS, o nazi-fascismo e duas guerras mundiais. Não, como muitos gostariam de acreditar, uma evolução linear decorrente de “erros” ou “acertos” de concepção política em momentos precisos da história. Sem menosprezar o papel das decisões programáticas e estratégicas, uma análise do desenvolvimento da social-democracia necessita articulá-los com as mudanças ocorridas na base social dos partidos e na evolução do modelo de construção partidária por eles adotados.[16]

Dada a abissal diferença de contexto histórico, o PT somente poderia reproduzir os passos da social-democracia como farsa. Entretanto, do ponto de vista sociológico, ela continua sendo o parâmetro comparativo mais adequado para a análise da história do partido. A possibilidade de que ele, ao invés de um simulacro de social-democracia, seja aquilo a que se propôs – um novo caminho para a construção do socialismo – exige a retomada do debate sobre o que se entende por este “horizonte ético” ou “programa concreto”. Estas duas expressões polarizaram o debate do Segundo Congresso de 1999, antes que ele concluísse melancolicamente pela manutenção do texto sobre o “Socialismo Petista” de 1990, reconhecendo assim que nada se avançara sobre o assunto em uma década.

Não há, entretanto, nada do que se penitenciar. A coincidência da luta para conquistar a Presidência da República – tarefa histórica de cuja dimensão o partido sempre teve clara consciência, com um período marcado pela desconstrução dos paradigmas tradicionais do pensamento socialista pós-1989 criava condições extremamente adversas para quaisquer avanços propositivos nesse campo. A vitória de 2002, entretanto, se insere como um novo marco num processo internacional de rearticulação de forças anti-establishment, de que o Fórum Social Mundial é um dos maiores símbolos, e exigirá passos concretos no sentido da formulação de um programa socialista para o século XXI, sob pena de que, diante da obscuridade do horizonte estratégico de longo prazo que definiu originalmente o seu sentido, o próprio governo democrático-popular venha a perder o rumo.

Pois uma das conseqüências imediatas da vitória de Lula será a consolidação do PT como principal referência da esquerda internacional. As condições para tanto já vinham se estabelecendo há algum tempo. O partido, em primeiro lugar, expressava já nas suas origens o peso político potencial da nova configuração da classe trabalhadora nos países de industrialização recente. O surgimento e a ascensão de um partido de massas criado a partir do movimento sindical nas décadas finais do século XX trazia, mesmo antes da vitória de Lula, questionamentos em relação aos discursos sobre “o fim da centralidade do trabalho”, baseados num modelo centro-periferia incapaz de aceitar que o mundo pode buscar outros rumos que não a mera reprodução das trajetórias estabelecidas no Atlântico Norte. Em segundo lugar, O PT se propunha, já no manifesto de fundação, a superar alguns dos limites das experiências clássicas da esquerda internacional, particularmente na relação entre socialismo e democracia. Por fim demonstrou, ao longo da década de 90, na combinação entre intervenção política e articulação de um novo campo intelectual, uma grande capacidade de enfrentamento do pensamento único e do modelo neoliberal.

Se, no âmbito programático, o desafio será contribuir ativamente para que a partir da efervescência antiglobalização se inicie a sistematização das bases de um novo programa socialista, urge, simultaneamente, repensar o problema da construção partidária.

No debate sobre o modelo de partido a ser adotado pelo PT, assim como ocorreu em relação a outras questões estratégicas, buscou-se, desde as origens, superar o que se considerava serem falsas dicotomias. No caso, tratava-se de recusar a opção entre ser um partido “de massas” ou um partido “de quadros”. O PT, afirmávamos, seria um partido “de massas com quadros”, ou seja, buscaria incorporar o mais amplo leque de ativistas sem os submeter ao estrito crivo ideológico das organizações leninistas, mas formaria e manteria um núcleo dirigente capaz de assegurar a sua condução estratégica, evitando os desvios “eleitoreiros”. Buscávamos resolver os impasses gerados pelos modelos partidários clássicos encontrados na história da esquerda mundial e, acima de tudo, nos diferenciar dos partidos “burgueses” e das tradições clientelistas e caciquistas que debilitam e distorcem a participação popular no sistema partidário brasileiro. Ao mesmo tempo, o partido afirmava seu compromisso com a autonomia dos movimentos sociais, mas não se propunha a ser mera “caixa de ressonância”, buscando, ao invés disso, construir uma capacidade dirigente frente aos mesmos com base na incorporação de suas demandas num projeto global de transformação social, a ser detalhado e aprofundado processualmente.

É inegável que a experiência de construção do PT tanto contribui para a renovação da política partidária brasileira quanto oferece pistas para o repensar dos modelos organizativos da esquerda internacional. Um conhecimento mínimo da vida partidária, porém, é suficiente para que se reconheça a heterogeneidade, os limites e as contradições quando confrontamos modelo e prática. Aqui, novamente, a culpabilização e o catrastrofismo pouco contribuem para identificar os problemas e vislumbrar perspectivas de superação.

Construir e conduzir instituições de alta complexidade com base em princípios democráticos é um dos mais avassaladores desafios da história humana. Não é de estranhar que as primeiras referências a como transformar a força virtual de milhares em força real voltada ao alcance de objetivos venha do terreno militar. Do mesmo modo, o maior modelo histórico de expansão e sobrevivência institucional continua a ser a Igreja Católica, moldada com base na estrutura do Exército Romano. Hierarquia inflexível, dogma e disciplina cega, mecanismos de coesionamento copiados de forma mais ou menos velada pela maior parte das grandes organizações, entram porém em choque com a cultura petista. O partido, apesar dos desafios impostos pela nova escala gerada pelo crescimento acelerado, segue buscando estabelecer inovações capazes de compatibilizar participação das bases e condução estratégica, embora nem sempre o faça com a sistematicidade necessária.

Porém, malgrados estes esforços, a crescente identificação com o PT como um nexo aglutinador de lutas sociais, políticas e culturais supera em muito os canais oferecidos pela estrutura partidária para aglutinar e estabelecer os fluxos de comunicação adequados com esta base potencial. As linhas gerais e os princípios estabelecidos são insuficientes para oferecer um modelo organizativo e políticas de construção adequados à dimensão histórica assumida pelo partido e ao seu papel diante da sociedade brasileira. Diante de novos desafios e da necessidade, de definições de rumos cada vez mais difíceis e complexas, coloca-se o risco de que a base, dada a sua baixa integração à vida partidária, assuma cada vez mais a postura de alheamento simpático, porém irresponsável, de uma grande torcida organizada (ou nem tanto). Desse modo, os acertos da direção são saudados e celebrados mas, diante dos inevitáveis erros, ou de decisões que forem assim interpretadas, se estabelece a quebra de confiança e o sentimento de traição aos princípios do partido.

É necessário ressaltar, entretanto que a crítica, recorrente na luta interna nos últimos anos, de que este projeto originário teria sido desviado em função de uma suposta opção prioritária pela ação “institucional” em detrimento dos movimentos sociais precisa ser relativizada.

Em primeiro lugar, a convicção autonomista expressa já nas origens do PT não revelava apenas uma opção política, mas o reconhecimento tardio e necessário, por parte da esquerda brasileira de que os fatores determinantes na ascensão ou declínio de movimentos se localizam num plano muito mais profundo da estrutura social do que o reservado à ação partidária. Foi a emergência de uma nova configuração da classe trabalhadora brasileira em meados dos anos 70 que quebrou os paradigmas da política tradicional do país, inclusive os da esquerda[17], cujos caminhos a partir daí se bifurcaram irreversivelmente entre aqueles que, reconhecendo a novidade do fenômeno, optaram por colocar sua experiência organizativa e intelectual a serviço dos novos movimentos e aqueles que, “duvidando da capacidade da classe trabalhadora”, transformaram-se progressivamente nos pseudo-protagonistas de um bloco de poder hegemonizado pelo capital especulativo e pela direita oligárquica. Do mesmo modo, qualquer análise sobre a crise dos movimentos sociais que deram origem ao partido deve começar pela desestruturação do mundo do trabalho que colocou nosso sindicalismo em posição de heróica, porém defensiva, resistência e pelo cerco à teologia da libertação, enfrentando um Vaticano conservador, o movimento carismático e a ascensão do pentecostalismo.

Em segundo lugar, a evidente drenagem de lideranças e quadros tanto para o partido quanto para as posições que ele passou a ocupar na estrutura do Estado teve, de fato, um inegável impacto nas organizações (não exatamente nos movimentos) populares. Porém, também abriu possibilidades para que algumas das demandas que originaram os próprios movimentos viessem a ser atendidas, assim como canais mais democráticos para a sua expressão e negociação estabelecidos.

O terceiro aspecto a ser considerado é que seria um erro subestimar o papel da política eleitoral e prender-se aos postulados do século XIX que, diante da realidade do voto censitário, nela viam apenas uma “democracia formal”. Devemos recusar qualquer análise simplista ou purista da dinâmica da política de massas numa sociedade midiática como o Brasil contemporâneo. É importante relembrar que, apesar da sua celebrada autonomia relativa, a política continua a expressar, antes de tudo, uma complexa representação de interesses (individuais, locais, setoriais, corporativos, de classe e identitários). Mas a natureza ideológica do processo eleitoral se dá no fato de que estes interesses não se apresentam à população como tais. Antes, buscam conquistar adesão revestindo-se de elementos do senso comum, de valores e normas sociais dominantes ou latentes.

Na política de massas, as imagens dos candidatos e suas proposições são apropriadas e reelaboradas com base na distribuição desigual do capital cultural, e se tornam base para a projeção de esperanças e desejos, medos e frustrações que refletem as experiências conflitivas do cotidiano, assim como um universo utópico articulado pela cultura popular, pela religião e pela própria indústria cultural. Diante da sua magnitude, fundindo política, festa e espetáculo, é natural que a participação eleitoral canalize as expectativas e as energias populares, assim como ocorre com novas formas de ação cultural e de experiência religiosa, particularmente em épocas de declínio dos movimentos sociais orgânicos. Esta é uma realidade para a qual a esquerda carece de formulação teórica, o que, sem dúvida, aumenta os riscos de que venha a sucumbir à magia do marketing.

O predomínio da dinâmica eleitoral e o ritmo acelerado de expansão do partido, trazem por outro lado, mudanças importantes no próprio perfil dos seus quadros, fortalecendo os chamados “operadores” e estabelecendo a dimensão de suas votações como uma das principais medidas da legitimidade dos dirigentes. “Construtores” e “formuladores”, capazes de assegurar que a expansão se transforme em consistência, muitas vezes perdem espaço, diante da debilidade dos mecanismos de construção partidária. Mas as eleições têm gerado também fenômenos positivos no que diz respeito à relação do partido com suas bases. A massificação dos processos eleitorais, apesar da crescente profissionalização, abre espaços de participação e, através de tarefas e ações concretas, possibilita um tipo de envolvimento ativo que muitas organizações populares e o próprio partido, em seu funcionamento ordinário, perderam a capacidade de proporcionar. Não é por outra razão que antigos militantes “reaparecem” nas campanhas e elas permanecem sendo uma das poucas fontes donde, eventualmente, surgem novos ativistas.

Portanto, ao invés de falar de uma opção pelo institucional em detrimento dos movimentos, poderíamos dizer que, de um lado, o partido vem explorando as possibilidades de transformação da cultura política nacional via jogo eleitoral. De outro, tornou-se uma das vias de institucionalização de um ciclo histórico de movimentos que, com a exceção do MST, se esgotaram há cerca de uma década. O ciclo de lutas sociais dos anos 70 e 80, ao contrário de outros tão significativos (1917-19, 1928-29, 1933-35, 1945-47, 1953-57, 1961-64, 1968-69, para ficar apenas no século XX) teve a felicidade de contribuir para mudar profundamente a relação da nossa sociedade com a política, gerando o momento mais democrático de nossa história e, simultaneamente, de criar ou renovar instituições capazes de sobreviver ao esgotamento dos próprios movimentos (ao menos em sua forma original), estabelecendo condições inéditas para que novas lutas venham a gerar um processo de transformações cumulativas.

Se bem sucedido, o governo democrático-popular deverá, por meio da retomada do crescimento econômico e da incorporação de amplos segmentos excluídos à cidadania, criar condições históricas para uma reconfiguração da classe trabalhadora brasileira e para o desenvolvimento de novos movimentos sociais. Seguindo os rumos da dialética, esses movimentos devem portar contradições não apenas com o Estado, mas também com as instituições geradas no momento histórico anterior, como o próprio PT, os sindicatos e as organizações populares construídas nos anos 70 e 80.[18] A construção de uma nova organicidade será a condição para que o partido possa se reciclar diante destas novas lutas, sob pena de vir a perder o papel que até agora desempenhou no processo de transformação da sociedade brasileira.

Enfim, só nos resta agradecer pelo privilégio de viver este momento histórico e desejar, de todo coração, que estejamos à altura dos desafios que ele nos propõe.

[1] Doutor em História pela Unicamp. Pesquisador visitante do CeNedic-USP, com apoio da Fapesp. Coordenador do Centro Sérgio Buarque de Holanda – Documentação e Memória Política, Fundação Perseu Abramo.

[2] Bloch, Marc , Introdução à História. Lisboa. Europa-América, 4ª Ed.

[3] Hobsbawm, Eric. “A falência da democracia”. Folha de São Paulo, 09/09/2001.

[4] Para uma síntese precisa da dimensão histórica da eleição de Lula para o Brasil, ver Antonio Candido, “Um presidente, muita esperança” Folha de São Paulo, 28/10/2002.

[5] Uso os termos no mesmo sentido que Umberto Eco os aplicou às posições extremas que marcavam as polêmicas sobre a indústria cultural nos anos 60. Eco, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1970.

[6] Roberto Romano, citado na matéria: ‘Petista tem uma visão negociadora da Presidência’. Folha de São Paulo, 13 de agosto de 2002.

[7] Benevides, Maria Vitória. Cidadania ativa. São Paulo: Ática, 1992.

[8] Valho-me aqui do comentário de E. P. Thompson: “Em geral é razoavelmente fácil alocar pólos sociais opostos em torno dos quais se congregam lealdades de classe: o rentier aqui, o trabalhador industrial ali. Mas, em tamanho e força, esses grupos sociais estão sempre em ascensão ou declínio, sua consciência de identidade de classe é incandescente ou escassamente visível, suas instituições são agressivas ou apenas se mantêm pela força do hábito, ao passo que, entre eles, há aqueles grupos sociais amorfos e sempre cambiantes em cujo interior a linha de classe é constantemente desenhada e redesenhada, nesta ou naquela direção, referente à polarização deles, que esporadicamente se tornam conscientes de seus interesses e de sua própria identidade. A política atém-se, muitas vezes, exatamente a este ponto: como a classe acontecerá? Onde a linha será traçada? E o desenho dela não é (como o pronome impessoal induz a razão a aceitar) matéria de vontade consciente – ou até inconsciente – ´dela` (da classe), mas resultado de habilidade política e cultural. ”. Thompson, E. P. “As peculiaridades dos ingleses”. In: Antonio Luigi Negro e Sérgio Silva (orgs.) As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Edunicamp. 2001. pp. 170-171.

[9] Rodrigues, Leoncio Martins. Partidos e sindicatos: escritos de sociologia política. São Paulo: Ática, 1990.

[10] Folha de São Paulo, 26/09/2002. “O problema é que ele nunca trabalhou na vida. O que ele fez até hoje? Quem o sustentou nos últimos 20 anos? Eu trabalho há 53 anos e nunca vi o Lula trabalhar.”

[11] Sobre este conceito cfe: Santos, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979.

[12] Para três exemplo referentes a Pernambuco (a tecelagem Paulista, do grupo Ludgren), São Paulo (a Nitro-Química, do grupo Votorantim) e o Rio Grande do Sul (as indústrias Renner), ver: Leite Lopes, José S., A Tecelagem dos Conflitos de Classe na Cidade das Chaminés. São Paulo, Marco Zero, 1988. Fontes, Paulo. Trabalhadores e cidadãos. Nitro Química: A fábrica e as lutas operárias nos anos 50. São Paulo: Annablume Editora, 1997. Fortes, Alexandre, “Nós do Quarto Distrito”. A Classe Trabalhadora Porto-Alegrense e a Era Vargas. Campinas, tese de doutorado apresentada ao Ifch-Unicamp, 2001.

[13] Folha de São Paulo, 24/09/2002.

[14] Folha de São Paulo, 03/10/2002.

[15] Este processo em que a ação política subalterna, ao colocar-se como condição para o respeito a direitos sociais ameaçados pela ortodoxia liberal, alarga a noção de cidadania foi analisado originalmente em Thompson, E. P. “La economia ‘moral’ de la multitud en la Inglaterra del siglo XVIII”. In: Tradición, revuelta y consciência de clase. Barcelona: Crítica, 1989, 3 ed.

[16] Para uma síntese comparativa de uma vasta historiografia relativa a 13 países europeus, ver: Linden, Marcel van der. “Metamorfoses da Social-Democracia”. Revista História-UNESP, 2002 (no prelo).

[17] Ver, por exemplo: Sader, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo, 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

[18] Um parâmetro para este conflito entre nova configuração de classe e/ou ciclo de movimentos sociais e instituições criadas num período anterior pode ser buscado na situação italiana do final dos anos 60 e início dos anos 70. ver: Tronti, Mario, Operários e capital. Porto: Afrontamento, 1976; Negri, Toni. Del Obrero-masa al obrero-social. Barcelona: Anagrama, 1980; Canevacci, Massimo. “A experiência da autonomia operária na Itália” in Desvios nºs 4 e 5. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985. Esta dinâmica corresponde à relação entre instituinte e instituído examinada por: Castoriadis, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.