Entrevista: Gustavo Venturi comenta dados relevantes sobre a pesquisa “Discriminação racial e preconceito de cor no Brasil”
Pesquisa da Fundação Perseu Abramo revela que em 8 anos o preconceito racial assumido caiu de 12% para 4% e que o preconceito manifesto indiretamente diminuiu de 87% (em 95) para 74% (em 2003). De acordo com o coordenador da pesquisa, Gustavo Venturi, mudanças de comportamento por parte da mídia e do mercado, sob a pressão dos movimentos sociais contra a discriminação, fizeram o país chegar a esses índices de preconceito racial.
O sociólogo e cientista político Gustavo Venturi, coordenador do Núcleo de Opinião Pública (NOP) da Fundação Perseu Abramo, avalia nesta entrevista os dados de pesquisa nacional abrangente (representativa das populações urbana e rural acima dos 15 anos de idade) sobre a situação do preconceito de cor e a discriminação racial no Brasil.
A pesquisa, que está sendo divulgada no site da Fundação em capítulos definidos por temas, abordou a questão da discriminação racial no trabalho, na escola, nos equipamentos de saúde, nos espaços de lazer e por parte da polícia. Foram 5.003 entrevistas em 266 municípios brasileiros, incluindo as capitais de 24 unidades federativas, distribuídas em 834 setores censitários.
1) Qual a importância da pesquisa sobre discriminação racial no Brasil?
Assim como o estudo que fizemos em 2001, sobre a situação das mulheres brasileiras, a pesquisa “Discriminação racial e preconceito de cor no Brasil” procurou investigar uma temática considerada relevante, chamando a atenção para esse problema tão sério, vigente no país. Um problema que, como todas as questões sociais importantes, só vai ser superado se for amplamente discutido pela sociedade e se houver políticas públicas que transformem a realidade em que se reproduz.
Noutras palavras, esta pesquisa está inserida na história dos estudos do NOP, no sentido de trabalhar com temas relevantes e presentes na nossa realidade, para aumentar o volume social de discussão sobre essas questões. Nossa expectativa é contribuir para que a FPA siga cumprindo seu papel de fomentadora do debate público.
2) Como a pesquisa foi planejada?
Para as reuniões de planejamento contamos com a participação de representantes de mais de 30 entidades ligadas ao movimento negro e de combate ao racismo, de diferentes regiões do país, o que enriqueceu muito a formulação da pesquisa – fato que, naturalmente, não tira a responsabilidade final do NOP pelas escolhas feitas, em relação aos temas e à formulação das perguntas.
A amostra foi concebida para representar o conjunto da população brasileira de 16 anos em diante, cobrindo todas as classes sociais, todas raças e etnias, espalhadas pelas cinco macrorregiões do país, residentes nas áreas urbanas (81%) e rurais (19%). O questionário foi bem extenso, por conta da contribuição das entidades já mencionada, cobrindo a discriminação racial por diferentes ângulos. Isso nos abrigou a distribuir as perguntas, sem, no entanto, deixar de representar este universo.
3) Comparando esta pesquisa do NOP com uma de 1995, realizada pelo Instituto de Pesquisas Datafolha, podemos conferir que cresce o número de pessoas que se declaram negras. A que se deve isso?
A pesquisa de 1995, do Datafolha, trabalhou com a população urbana, portanto com o que hoje corresponde a 81% dos brasileiros. Nela, 43% se definiam espontaneamente como “morenos”, taxa que neste estudo do NOP, considerando o universo urbano, caiu para 32% em 2003, uma queda de 11 pontos. A comparação revela, ainda, que aumentou de 6% para 11% os que se dizem “pardos” – o que mostra que a categoria do IBGE está se firmando nessas declarações espontâneas. E também foi expressivo o crescimento do contingente dos que se classificam espontaneamente como da “cor preta” ou da “raça negra”, que subiu de 7% para 12%.
A meu ver, tanto o aumento na categoria “pardo”, que recebe críticas por não assumir a questão da negritude, como sobretudo o crescimento observado entre os que se classificam espontaneamente como sendo de “cor preta” ou da “raça negra”, apontam para uma maior definição da identidade racial em detrimento da categoria “morena”, ela sim muito difusa e escamoteadora da questão racial.
A maior assunção da identidade favorece a tomada de consciência e a explicitação dos conflitos, o que conseqüentemente aponta em direção à possibilidade de superá-los. Creio que quando as pessoas assumem sua identidade racial, podem trabalhar melhor os problemas da discriminação.
4) A pesquisa revela que o preconceito racial caiu em relação a 1995 (de 87% para 74%). Qual sua avaliação sobre esses dados?
De fato, o índice de brancos e pardos que assumiam ter preconceito contra negros era, em 1995, de 12%. Nesta pesquisa, caiu para 4%. Já pela escala indireta de preconceito, criada pelo Datafolha, tínhamos em 95 um índice de 87% que manifestavam algum nível de preconceito e, agora, temos 74%. É ainda um índice muito alto, mas caminhou-se numa direção positiva.
A polêmica que fica, naturalmente, é se essa queda nos índices reflete uma mudança real de atitude das pessoas ou se apenas mostra mais atenção para o discurso “politicamente correto”.
Avalio que as duas hipóteses são verdadeiras. De um lado, temos ¼ da população brasileira representada na pesquisa do NOP que não estava no levantamento de 8 anos atrás, ou seja, o contingente que tem hoje de 16 a 24 anos. É exatamente nesse contingente que o preconceito de cor é menor, quando analisamos suas manifestações de acordo com a faixa etária. Isso pode ser expressão de uma mudança efetiva de atitude entre os mais jovens, que seria fruto de uma combinação importante: a intervenção do movimento negro, que, junto com o movimento de mulheres, conseguiu em 95 a revisão das diretrizes educacionais do MEC, que passaram a explicitar que os livros didáticos não poderiam trazer conteúdos preconceituosos, submetendo-os, desde então, ao crivo de analistas compromentidos.
Além disso, como a crítica sobre o racismo aumentou nos últimos anos, a retórica politicamente correta certamente também tem contribuído para coibir as manifestações mais claras de preconceito. De qualquer forma é um avanço, pois mostra que a sociedade está mais atenta para essa questão e que as pessoas preconceituosas se sentem mais acuadas. Isso é muito positivo porque, para se reproduzir socialmente, o preconceito precisa se manifestar nos espaços privados, como a família, e sobretudo nos espaços públicos: no trabalho, na escola, na imprensa etc.. De forma que, se há um cerco social contrário à manifestação desse tipo de preconceito, ele se reproduzirá em escala menor.
Há ainda uma terceira leitura possível, de que o preconceito esteja mudando de feição, buscando subterfúgios ainda mais sutis, e que não teria ocorrido, sob essa ótica, uma mudança real de atitude, apenas de comportamento – e a escala de preconceito utilizada na pesquisa é que seria insuficiente para captá-lo. Em minha opinião, essa hipótese antes combina do que exclui as anteriores. Podemos dizer, sem necessariamente sermos incoerentes, que houve uma mudança real de valores e atitudes em parte da população, ao mesmo tempo em que outra parte mudou apenas de discurso e ainda admitir que uma terceira parcela da população esteja manifestando seu preconceito de outra forma, que escapa dos instrumentos que usamos para captá-lo.
Creio que de modo análogo à mudança de discurso, essa outra mudança de comportamento também deve ser vista positivamente. Pois ainda que haja um grupo em que o preconceito possa não ter diminuído nada, se ele precisa ser mais camuflado do que era antes, ratifica-se, primeiro, a idéia de que a crítica social ao preconceito racial cresceu; e, segundo, sendo as novas formas em que estaria se manifestando mais sutis, também sua reprodução social se faz mais difícil.
Claro que, admitida essa hipótese, sobra o desafio metodológico dos pesquisadores desenvolvermos novos instrumentos, que sejam sensíveis a eventuais novas formas de expressão do precenceito racial.
5) Como explicar que 90% da população diz existir racismo e, no entanto, apenas 19% manifestam preconceito?
Primeiro precisamos distinguir entre preconceito e discriminação racial, ainda que ambos se alimentem da mesma ideologia racista, cujas raízes remontam às justificativas políticas e econômicas para o tráfico de negros e negras, vigente no Brasil por mais de três séculos. Pode-se reconhecer a existência do racismo no país e a atualidade de suas muitas expressões em forma de discriminação institucional, cuja percepção buscamos captar na pesquisa, sem que se partilhe de concepções raciais preconceituosas.
No que tange ao preconceito racial, isto é, no plano da sociabilidade cotidiana, das relações interpessoais, a pesquisa realizada pelo Datafolha em 95 trabalhou com duas escalas de aferição: uma mais rigorosa (que registrou o índice de 87% de pessoas preconceituosas, que caiu para 74% em 2003) e outra, menos rigorosa, que trabalhava apenas com 5 das 12 questões sobre o tema – aquelas em que eram bastante claras as manifestações do preconceito. Por essa escala, os que manifestaram algum nível de preconceito passaram de 42% em 1995 para 19% em 2003.
A contradição que você aponta está no fato de as pessoas reconhecerem que o racismo é um problema social disseminado, mas, diante do temor de serem estigmatizadas como preconceituosas, ou mesmo de encararem de frente o próprio preconceito, a maioria acaba considerando este um problema “dos outros”, ou seja, poucos se declaram preconceituosos, preferindo projetar o preconceito e o racismo para o conjunto da sociedade.
Mas os números se combinam e não necessariamente se contradizem: 90% acham que há racismo no Brasil e 74% manifestam algum nível de preconceito na escala rigorosa – ou seja, trata-se de grandezas semalhantes, que se confirmam. Finalmente 19% manifestam preconceito racial claro na escala complacente e apenas 4% se assumem preconceituosos. Por isso a necessidade de se criar esse tipo de medição indireta, pois, se ficássemos somente no preconceito declarado ou assumido, estaríamos encobrindo um problema que é muito maior.
6) Qual a avaliação dos brasileiros sobre as políticas de ação afirmativa, como a reserva de vagas para negros nas universidades, no serviço público e nas empresas?
Nós fizemos esta pergunta de diferentes maneiras. Na primeira, reproduzimos uma pergunta que estava na pesquisa do Datafolha de 1995, em que se falava, simultaneamente, na reserva de vagas nas universidades e no trabalho. Observamos um claro crescimento dos que são a favor das cotas. O resultado passou de uma população que estava dividida (48% a favor e 49% contra, em 95) para uma população francamente favorável às cotas (59% a 36% em 2003).
No entanto, quando a pergunta se restringe à reserva de vagas nas universidades, se evidencia o apoio à existência de cotas para estudantes oriundos das escolas públicas. O que, de alguma forma, contempla a maior participação de negros nas universidades, mas que é diferente de haver cotas específicas para eles. Os resultados foram os seguintes: 59% defendem cotas para os estudantes de escolas secundárias públicas, 22% são contrários a qualquer tipo de cotas, acreditando que a universidade é somente para aqueles que teriam o suposto mérito individual de atingi-la, e 15% são favoráveis às cotas especificamente para negros. Isso demonstra a complexidade dessa discussão.
Por sua vez, quando perguntamos sobre cotas no campo do trabalho, 52% são a favor e 40% contra. É interessante notar que as razões espontaneamente declaradas pelos que defendem e pelos que rejeitam a política de cotas envolvem, na maior parte das vezes, o mesmo valor: o da igualdade. Para ser breve, os que defendem as cotas as vêem como alternativa para enfrentar as desigualdades de oportunidades entre brancos e negros. E os que argumentam em contrário às cotas também utilizam o valor da igualdade, afirmando que, por sermos iguais, todos devem ter os mesmos direitos e os negros não devem ser tratados de forma diferente.
Quem é favorável às cotas reconhece que o ponto de partida para brancos e negros permaneceu muito desigual na nossa sociedade e que, portanto, essa diferença não vai se corrigir com políticas genéricas e universalistas como as que vigoram há já 115 anos, desde a abolição da escravidão. De fato, mais de um século de igualdade formal não garantiu que chegássemos sequer a 5% de negros nas universidades, ou em postos de poder político e econômico, sendo os afrodescendentes representam cerca de metade da população brasileira.
É partindo da constatação dessa desigualdade real de oportunidades que se propõe políticas de cotas, que, como um tipo de ação afirmativa dentre outras possíveis, ao estabelecer temporariamente uma discriminação a favor dos negros, buscam acelerar a redução das desigualdades raciais, ainda tão acentuadas no Brasil.
O fato de que por trás de ambos os argumentos, a favor e contra as cotas, esteja o valor comum da igualdade, torna a discussão, a um só tempo, mais complexa, onde nem tudo – desculpe o tracadilho com o tema – é preto ou branco, mas também mais factível, na medida em que defensores e opositores, em sua maioria, partilham de um mesmo campo de valores. Afinal, se o debate fosse entre defensores e opositores da igualdade racial, então sim, não haveria espaço para o diálogo. Se a meta comum é a igualdade de direitos e oportunidades para negros e brancos, a divergência está “apenas” em como atingi-la.
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