Ricardo de Azevedo, vice-presidente da Fundação Perseu Abramo, fala sobre a contribuição do seminário “Novos desafios da esquerda na América do Sul”.

Por uma inserção soberana no mundo

Entrevista com Ricardo de Azevedo

“Não há em outro lugar do mundo uma experiência prática e um modelo teórico que nos diga como deve ser feita essa transição de um modelo neoliberal para um modelo socialmente mais justo. Então, é natural que nesse processo se cometam erros, existam problemas e, nesse sentido, a discussão permanente e a troca de experiências sejam fundamentais para podermos aprender uns com os outros.”

Por Michelle Rusche

Ricardo de Azevedo, vice-presidente da Fundação Perseu Abramo, fala sobre a contribuição do seminário “Novos desafios da esquerda na América do Sul”, realizado nos dias 24, 25 e 26 de novembro de 2004 em São Paulo, que ajudou a conhecer melhor e trocar experiências políticas com outros países do ponto de vista da esquerda.

Sob diversas óticas podemos observar o crescimento das forças de esquerda entre os países da América do Sul e, evidentemente, o Brasil tem um papel primordial neste processo. Azevedo afirma que o Brasil e a Venezuela buscam uma transição para um outro modelo econômico, enquanto que a Argentina surpreende pelos avanços sociais, econômicos e políticos que vem realizando.

Na Bolívia e no Chile, embora os governos não possam ser considerados de esquerda, observa-se uma forte mobilização de partidos socialistas e de movimentos sociais contrários às políticas neoliberais. No Uruguai as pesquisas de intenção de voto prevêem a vitória do candidato da Frente Ampla nas eleições de 2003.

Com relação à política externa adotada pelo governo Lula, Ricardo de Azevedo diz que “hoje o Brasil é muito mais respeitado internacionalmente, tem uma voz ativa e tem condições de desempenhar um papel importante na relação Sul-Sul”.

Leia a entrevista na íntegra:

1 – Qual a contribuição do seminário “Novos desafios da esquerda na América do Sul” para a discussão sobre o assunto?

Esse evento teve como objetivo conhecer melhor as experiências que estão sendo vividas em diversos países da América do Sul do ponto de vista da esquerda e promover um intercâmbio entre eles. No seminário tivemos representantes do Brasil, da Argentina, do Uruguai e da Venezuela. Esses países vivem experiências distintas, mas têm algo em comum. No Brasil, na Argentina e na Venezuela existem governos que, de alguma forma, estão buscando fazer uma transição do modelo neoliberal, que predominou até o ano 2000, para um modelo socialmente mais justo. Embora no Uruguai o governo seja de direita, extremamente conservador, no próximo ano haverá eleições e todas as pesquisas indicam, até o momento, a vitória do candidato Tabaré Vasquez, da Frente Ampla. Desta forma este país poderá fazer parte desse bloco de quatro países.

2 – Pode-se afirmar que há uma tendência ao crescimento da esquerda na América do Sul?

Com certeza. Eu diria que temos hoje na América do Sul três experiências extremamente importantes: a do Brasil, a da Venezuela e a da Argentina. No caso do Brasil e da Venezuela, são dois governos de esquerda, eleitos e que buscam realizar essa transição para um outro modelo econômico. No caso da Argentina, há uma surpresa maior. Primeiro porque a experiência do governo Kirchner é mais recente e, em segundo lugar, porque é um político que vem de setores conservadores, mas que vem surpreendendo a esquerda não só argentina como latino-americana, pela adoção de medidas importantes visando um avanço no sentido social, econômico e político.

3 – Quais semelhanças e diferenças podemos apontar entre os governos Lula, Hugo Chávez e Kirchner?

O governo Kirchner ainda é muito recente para ser avaliado. O que podemos dizer é que ele vem surpreendendo positivamente, não apenas pela postura na questão econômica, com relação à dívida da Argentina com o FMI, mas também nas questões internas como, por exemplo, a punição dada aos oficiais das forças armadas por crimes na época da Ditadura Militar naquele país.
O governo Chávez, que está no poder há mais tempo, desenvolveu uma política no sentido de buscar uma independência maior da Venezuela, mas enfrenta ainda, ao que toca à questão democrática, problemas internos sérios, em parte em decorrência da oposição de uma direita extremamente conservadora e, até mesmo, golpista e, em outra, dos erros cometidos pelo governo.
O governo Lula é uma tentativa de num bloco de alianças mais amplo, ou seja, um governo de centro-esquerda, de buscar combinar uma maior integração nacional, uma maior inserção soberana no mundo, com a questão social e da retomada do desenvolvimento econômico.
São três experiências distintas. Todas elas enfrentam problemas, e têm pontos positivos. O intercâmbio entre estas experiências é extremamente importante para que se formule um novo projeto. Não há em outro lugar do mundo uma experiência prática e um modelo teórico que nos diga como deve ser feita essa transição de um modelo neoliberal para um modelo socialmente mais justo. Então é natural que nesse processo se cometam erros, existam problemas e, nesse sentido, a discussão permanente e a troca de experiências sejam fundamentais para podermos aprender uns com os outros.

4 – O que o fato de Lula ser um político de esquerda representa para o Brasil e a América Latina? E se o rumo dos países sul-americanos vai no sentido de firmá-los como representantes dos ideais da esquerda?

Pela importância política, econômica que o Brasil tem na América Latina, sem dúvida desempenha um papel chave nesse processo. Não é à toa que a vitória de Lula no Brasil impulsionou enormemente o processo de retomada das negociações visando a constituição do Mercosul. Claro que isso foi ajudado também pela vitória de Kirchner na Argentina e pelas posições que ele vem adotando.
Precisamos levar em conta, no entanto, a situação do Chile e da Bolívia. No caso da Bolívia, tivemos há alguns meses atrás uma insurreição popular que levou à renúncia do presidente Sanchez de Losada, um dos principais representantes do neoliberalismo na América do Sul. Ainda que o vice-presidente eleito, Carlos Mesa, da mesma forma não possa ser considerado um político de esquerda, há uma situação de instabilidade muito forte no país que poderá impulsionar uma evolução política favorável às forças de esquerda. No Chile, onde está no governo o Partido Socialista em coligação com o Partido Democrata Cristão, a política do governo vinha sendo a de buscar acordos bilaterais com os EUA e dando as costas à integração sul-americana. Porém, a vitória de Lula e as evoluções políticas favoráveis na Argentina contribuíram para que exista hoje no interior do PS e do governo chilenos uma retomada da discussão entre aqueles que defendem uma política de integração com os EUA e os que defendem uma política mais voltada para o Mercosul e uma aliança com o Brasil e com a Argentina.

5 – Que diferenças podemos traçar entre a política externa do governo Lula e a dos governos anteriores e o que isso representa para os partidos de esquerda e os movimentos sociais?

O governo Lula retomou uma postura soberana e ativa do Brasil no cenário internacional. Poderíamos dizer que é uma política ativa e altiva, diferente da política submissa do governo Fernando Henrique Cardoso. Isso significa um maior destaque do Brasil nas negociações internacionais. Nesse sentido, o posicionamento claro que o Brasil teve com relação à guerra do Iraque, contrário à invasão, é extremamente importante. Por outro lado, a política externa do governo Lula dá prioridade à América do Sul e, particularmente, ao Mercosul, mas também visa a cooperação internacional com países do terceiro mundo, o chamado G-3, formado pelo Brasil, África do Sul e Índia, podendo abranger a China e a própria Rússia. Na política externa do governo Lula cresce a importância que o Brasil vem dando às negociações políticas e econômicas com a África e com o Oriente Médio. Tudo isso significa uma mudança extremamente importante. Hoje o Brasil é muito mais respeitado internacionalmente, tem uma voz ativa e tem condições de desempenhar um papel importante na relação Sul-Sul.

6 – A FPA criou em 2003 um Núcleo de Cooperação Internacional. O que esse projeto pretende fazer no que tange a inserção do nosso trabalho no cenário internacional?

Coerente com a definição do governo Lula no que toca a política internacional, de uma maior inserção do país no mundo, e com as orientações do partido, a Fundação também vai buscar, a partir de agora, ter uma maior inserção ao nível internacional. Evidentemente, não nos cabe tomar iniciativas que sejam do âmbito do governo ou do partido. Temos desenvolvido nos últimos anos uma série de intercâmbios e cooperações com fundações, instituições acadêmicas, ONGs de diversas partes do mundo e, desde que o presidente Lula foi eleito, tem aumentado o número de organizações internacionais que buscam uma relação conosco. É nesse sentido que formalizamos a criação do Núcleo de Cooperação Internacional para, de um lado, podermos desenvolver atividades de intercâmbio, como esse seminário que nós realizamos no Brasil e, de outro, organizar nossa participação em fóruns internacionais, como o Fórum Social Mundial que vai se realizar em janeiro de 2004 na Índia. Buscamos também desenvolver atividades de divulgação e propaganda do governo Lula em outros países, como o seminário realizado em Montreal, no Canadá, em junho de 2003, intitulado “O novo Brasil”.

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