Pronunciamento do ministro Gilberto Gil na abertura da Conferência Nacional de Cultura do Partido dos Trabalhadores realizada nos dias 29 e 30 de novembro de 2003, em São Paulo.

Gil na Conferência de Cultura do PT


Caro José Genoíno, presidente nacional do Partido dos Trabalhadores; caros parlamentares, dirigentes e militantes do PT; caros companheiros do Ministério da Cultura aqui presentes; amigos e amigas.

Bom dia a todos.

Agradeço à direção do PT e aos organizadores a oportunidade de participar da abertura deste encontro fundamental. Estou aqui para estabelecer com vocês um processo permanente de diálogo, inspirado nos princípios da fraternidade e da sinceridade. Quero compartilhar as minhas reflexões sobre a atuação do Ministério da Cultura nos primeiros onze meses de governo do presidente Lula e falar de nossos planos para os meses e anos seguintes. Quero também conhecer as críticas e sugestões de vocês, para que possamos construir juntos não apenas um Ministério da Cultura, mas um governo que corresponda à esperança do povo brasileiro.

Antes de abordar o tema que nos reúne esta manhã, chamo a atenção de todos para o que vivenciamos aqui. Trata-se de um momento histórico. Pela primeira vez, em cerca de 200 anos de vida partidária no Brasil, um partido político realiza a sua Conferência Nacional de Cultura. Devemos ter plena consciência do significado dessa experiência, de modo a aproveitar o máximo de seu impacto transformador. É muito provável que, a partir de agora, a compreensão que os partidos e os políticos brasileiros tradicionalmente têm da cultura e do potencial das políticas públicas de cultura finalmente mude. E mude para melhor. Vocês agora compõem uma viga do PT, o que lhes dá o poder de interferir positivamente ou negativamente nos rumos do partido e do governo. E um poder maior exige, em contrapartida, mais responsabilidade e maturidade.

Esta Conferência consagra, na verdade, um processo iniciado nos anos 80, com a fundação do PT, as primeiras gestões municipais de esquerda após o fim da ditadura militar e as grandes mobilizações populares que marcaram aquela década, como o movimento pelas diretas, que completa 20 anos em 2004, a elaboração da Constituição de 88 e a eleição de 89, quando a candidatura de Lula aglutinou, no segundo turno, diversas correntes de pensamento. Foram acontecimentos marcados pelo desejo de transformar a cultura política do país; e também por uma estimulante aproximação entre militantes da política e militantes da cultura.

O processo acelerou-se nos anos 90 com o impeachment de Collor, o acúmulo de experiências administrativas por partidos de esquerda e ONGs e as campanhas de Lula em 94 e 98. Aos poucos, o mundo da política despertou para o mundo da cultura, que passou a ser encarado, progressivamente, não apenas como um bibelô eleitoral ou um capricho de bem-nascidos e bem-pensantes, mas como uma dimensão básica da vida humana e, portanto, da própria política. Foi apenas em 2002, porém, que a cultura incorporou-se com a devida profundidade e a devida integralidade à dinâmica eleitoral, durante a elaboração do programa de governo da nova (e depois vitoriosa) candidatura de Lula à presidência do Brasil.

Esta Conferência, portanto, tem raízes em um longo processo histórico; mas resulta diretamente da confecção participativa do texto “A imaginação a serviço do Brasil”, que atualmente orienta a ação do Ministério da Cultura. Construído a partir de reuniões realizadas em várias regiões do país, o programa da Coligação Lula Presidente para a cultura foi um bálsamo revigorante. Artistas, produtores e gestores culturais voltaram a se encontrar, a debater as questões da cultura e a participar ativamente de uma eleição. Militantes do PT e eleitores de Lula acordaram definitivamente para o papel estratégico que a cultura pode desempenhar na construção de uma sociedade mais justa, calorosa e tolerante. Parte da esquerda mudou a maneira como se acostumou a encarar a cultura, abdicando de tê-la meramente como transmissora fiel da “linha justa”.

Espocaram pelo país os setoriais de cultura do PT, agregando ativistas e simpatizantes. Entidades e fóruns culturais da sociedade civil foram criados ou revitalizados em todo o país. Se os dois encontros de Lula com artistas e intelectuais, durante a campanha, simbolizaram o namoro entre política e cultura, a tão sonhada vitória do nosso candidato, a quem 56 milhões de brasileiros conferiram um mandato de mudança, permitiu o casamento que esta Conferência representa. Avalio ainda que o meu empenho em realizar, a pedido do presidente Lula e do ministro José Dirceu, uma gestão plural, democrática e participativa no Ministério da Cultura, também contribui. As pessoas percebem que, agora, vale a pena se organizar. É possível influir. Há um governo que escuta. E incorpora.

Não por acaso, o PT vislumbrou a oportunidade e a necessidade de canalizar essa energia renovadora, agregando os setoriais de cultura em uma inédita Secretaria Nacional e realizando um encontro como este, que reúne delegados eleitos por cerca de duas mil pessoas em mais de 20 Conferências Estaduais. Eu espero sinceramente que a histórica iniciativa de vocês inspire outros partidos; eleve a qualidade e a intensidade do debate sobre a cultura e as políticas públicas culturais; estreite o diálogo entre o PT e o Ministério da Cultura; e convença o conjunto do governo do papel estratégico da cultura como instrumento preferencial de afirmação da cidadania dos brasileiros e de inserção soberana do país na globalização.

Espero ainda que as ações do Ministério da Cultura, dos setoriais de cultura do PT e das entidades representativas de artistas, produtores e gestores, além das demandas dos cidadãos, que são os referenciais de nossa atuação, combinem-se para viabilizar o deslocamento estratégico que o documento “A imaginação a serviço do Brasil” propunha, e que adotamos como base: o deslocamento da cultura, do gueto social em que se encontra, para o centro de nossas preocupações; e o deslocamento do Ministério, de uma instituição periférica, esvaziada e omissa, desprovida de recursos humanos e materiais mínimos, gestora de uma Lei e não de políticas públicas, para um vetor de mudança _estratégico e potente.

Vocês sabem que tenho empreendido um esforço público para incluir a cultura em definitivo entre os itens prioritários da agenda do governo e da sociedade brasileira, reiterando diariamente que ela merece tratamento de assunto de Estado. Estou convencido de que não poderemos, a despeito do empenho e da vontade política da equipe do Ministério da Cultura, realizar plenamente as metas do programa de governo, e as novas metas que a experiência de 11 meses agrega ao nosso repertório comum, sem que todo o governo abrace as políticas públicas de cultura, seja incorporando-as às ações de cada ministério, ou às ações transversais, seja reforçando o Ministério da Cultura e suas instituições vinculadas.

Se desejamos consagrar no governo o movimento de mudança deflagrado pela eleição do presidente Lula; se queremos que este movimento não seja superficial, mas transcendente, capaz de mergulhar fundo no corpo e no espírito do país; então não basta elaborar e implementar programas para a música, o audiovisual, as artes cênicas, o patrimônio material, a cultura popular, os equipamentos culturais, os museus e arquivos; deve-se principalmente precisar a dimensão cultural das políticas de habitação, saúde e transporte; da gestão da economia, da administração, da política interna e das relações exteriores. Nosso projeto de Brasil é fundamentalmente um projeto cultural. Um país é a sua cultura.

Aliás, também não basta restringir o Ministério da Cultura aos programas de incentivo às manifestações culturais, ainda que deixem de ser pontuais, focados em produção, e passem a ser sistêmicos, incorporando todos os elos das cadeias produtivas, especialmente a difusão e a capacitação. É necessário cuidar da estruturação, da dinamização e da regulação da economia da cultura, na direção de uma auto-sustentabilidade inclusiva. Devemos ter uma visão estratégica de cada setor, compreender seu papel, as especificidades de suas dinâmicas e as contribuições possíveis à geração de renda e emprego, à afirmação da identidade nacional e grupal, à requalificação das relações sociais.

Não vou me estender aqui na descrição do Ministério da Cultura que encontramos. Acredito que vocês tenham uma compreensão adequada da situação herdada. Nem na (re)afirmação de nossas idéias, que basicamente são aquelas expostas no documento “A imaginação a serviço do Brasil”, que todos conhecem. Prefiro me concentrar no que estamos fazendo para mudar. Tenho insistido na idéia de que este governo, seja na administração direta, seja na administração indireta, nas empresas públicas e agências, deve praticar diariamente a fotossíntese política, trabalhando sempre à luz do dia, sem filtros ou anteparos de qualquer natureza, de modo a estebelecer uma relação mutuamente sincera e estimulante com a sociedade brasileira. Estamos exercendo este princípio do MinC.

Parto de uma indignação compartilhada por quem está plenamente consciente da grandeza desse país e dessa sociedade. Como é possível que uma nação tão rica e plural em manifestações e valores culturais tenha um Estado tão omisso e tão medíocre em sua visão do papel da cultura e das políticas culturais? O Ministério da Cultura tem clareza do principal desafio que a realidade brasileira impõe: resgatar o papel do Estado, para ampliar o acesso da população brasileira à produção e à fruição de bens e valores culturais, como forma de universalizar o direito à expressão cultural, que constitui um dos aspectos vitais do que chamamos cidadania.

É por isso, pela dimensão estratégica e pela importância de nossa tarefa, que a cultura não pode mais ser vista como o vaso de flores que adorna os salões dos privilegiados; cultura é matéria de segurança nacional, objeto de primeira necessidade, item da cesta básica de um Estado e de uma sociedade que se respeitam, fator de desenvolvimento econômico e social, de geração de renda, emprego e divisas, e de requalificação das esgarçadas relações entre os brasileiros.

A realização do sonho coletivo de construir um país de todos passa necessariamente pela cultura. Não no sentido das concepções acadêmicas ou dos ritos “artístico-intelectuais”, mas em seu sentido pleno, antropológico e econômico. Cultura, portanto, como a dimensão simbólica da existência social brasileira. Como usina de signos de cada comunidade e de toda a nação. Como eixo construtor de nossa identidade, permanentemente alimentada pelos encontros entre as múltiplas representações do ser brasileiro e da diversidade cultural do planeta. Como espaço de realização da cidadania, de superação da exclusão social e da desigualdade, seja pelo que representa para o reforço da auto-estima e do sentimento de pertencimento do povo, seja pela geração direta de renda.

Como disse em recente encontro com os secretários municipais de cultura, aqui em São Paulo, a tarefa do Ministério da Cultura é formular e executar políticas públicas de cultura, articuladas e democráticas, que promovam a inclusão social e o desenvolvimento econômico, e consagrem a pluralidade que nos singulariza entre as nações, e que singulariza, dentro da nação, as comunidades que a compõem. Políticas que transcendam o fato cultural, o evento, o produto, a expressão individual, e que realizem seu pleno potencial, tornando-se instrumentos de resgate da dívida social que o Brasil tem com a maioria de seu povo. A cultura se impõe no âmbito dos deveres estatais. É um espaço onde o Estado deve, obrigatoriamente, estar presente, especialmente em âmbito local. Porque é justamente nas comunidades que as relações e expressões culturais se efetivam. Um programa mobilizador para a cultura brasileira só poderá contribuir de fato para a recuperação da dignidade nacional e para a construção de um Brasil socialmente mais equilibrado e saudável se partir da periferia para o centro, do local para o federal, do individual para o grupal.

Temos, por isso, três desafios centrais: retomar o papel constitucional de órgão formulador, executor e articulador de uma política cultural para o país; completar a reforma administrativa e a capacitação institucional para operar a política; obter os recursos indispensáveis à implementação da política. Estamos dando passos objetivos para enfrentar esses desafios. Fizemos a primeira parte da reforma administrativa, superando um modelo organizacional arcaico e concentrador. Estamos bem próximos de completá-la e de realizar um processo efetivo de planejamento estratégico. Também estamos formulando programas estruturantes e sistêmicos para diversas áreas, como o Programa Brasileiro de Cinema e Audiovisual, já lançado publicamente.

Também promoveremos alterações profundas no modus operandi do Ministério e na legislação cultural, de modo a dotar o país de uma Lei Orgânica da Cultura. Para atingir a meta de transformar o Ministério da Cultura num efetivo articulador da política cultural, parceiro solidário dos estados e municípios, estamos investindo na criação do Sistema Nacional de Cultura. Na gestão das leis de incentivo, acabamos voluntariamente com o ad referendum, que dava ao ministro o poder imperial de privilegiar este ou aquele projeto, mesmo contrariando as avaliações dos pareceristas e da comissão de avaliação. Ao mesmo tempo, partimos para um processo participativo de elaboração de um novo modelo de financiamento público da cultura, que será mais democrático, mais descentralizado e mais transparente. Ouvimos as sugestões de mais de cinco mil pessoas de todas as regiões do país durante a série de seminários Cultura para Todos. Até meados de dezembro teremos um novo projeto de lei sobre o assunto.

Priorizamos também a conceituação do Sistema Nacional de Cultura, de modo a articular o poder público em suas três esferas, a iniciativa privada e o terceiro setor; a articulação internacional, participando de todas as instâncias de decisão com o objetivo de celebrar o princípio da diversidade cultural e promover uma integração de fato com a América do Sul e a África; a articulação com a sociedade e o poder público (prefeituras, governos estaduais, Congresso, outros ministérios) para repactuar as relações no setor e elaborar novas regras e políticas; a realização de projetos de inclusão e descentralização; e a intervenção na economia da cultura, buscando compreendê-la em sua complexidade.

No campo institucional, como já disse, realizamos uma reforma que acabou com sombreamentos e concentrações, criando secretarias de formulação e gestão, de um lado, e reforçando as áreas finalísticas, de outro. A administração das leis de incentivo, que antes absorvia boa parte do Ministério, foi concentrada na Diretoria de Fomento, e será otimizada. No que se refere a recursos, conseguimos elevar o teto de renúncia fiscal, de 160 para 401 milhões; o Orçamento também cresceu, em cerca de 70%; graças a uma ação articulada, obtivemos no Congresso 900 milhões a mais em emendas parlamentares; e a Loteria da Cultura está adiantada, assim como as parcerias com bancos estatais e agências de desenvolvimento.

No audiovisual, avançamos muito. A vinculação da Ancine ao Ministério da Cultura inaugura uma nova Política de Cinema e Audiovisual em nosso país. O Conselho de Cinema e Audiovisual será nomeado na semana que vem. E a transformação da Ancine em Ancinav virá em seguida, junto com um novo marco regulatório do setor. Estamos agindo no sentido de impulsionar e proteger o conjunto da produção audiovisual brasileira. Neste momento, os interesses do Estado, das empresas de comunicação e dos produtores independentes são convergentes e sugerem um novo contrato social para o audiovisual, capaz de consolidá-lo em uma indústria forte, dinâmica e criativa. Seu caráter estratégico pressupõe uma reorganização institucional, incorporando a complexidade do setor e sua crescente interação. A Ancinav será o órgão regulador e fiscalizador da produção e da difusão de conteúdos audiovisuais, através de todos os meios e tecnologias existentes e que venham a existir.

Esta gestão do Ministério da Cultura tem a clareza de que só obterá resultados significativos se estabelecer relações efetivas e afetivas com os estados e municípios, a sociedade civil e os partidos políticos, especialmente o PT, partido do presidente e força majoritária do governo. Se construir redes para viabilizar horizontalmente as políticas e a governabilidade interna. Neste sentido, estamos abertos a críticas e sugestões. E nos propomos a revisar as rotas estabelecidas. Sinto que avançamos muito em algumas áreas, e pouco em outras. Não por uma determinação minha, nem por obra e graça da força política representada em tal ou qual órgão. Estamos falando de uma conjunção de fatores, que vão desde os limites impostos pelas opções macro-econômicas, com as quais somos solidários, até a competência dos gestores. Se vocês estão efetivamente dispostos a colaborar com o Ministério e o governo, não partam do bizantino raciocínio exclusivista de atacar os “outros” e preservar os “nossos”. Eis a minha sugestão: analisem a fundo o desempenho de todo o Ministério da Cultura e ajudem-nos a avançar onde não avançamos.

Quero que esta gestão entre para a história como a gestão que construiu o Sistema Nacional de Cultura, que deu ao Ministério da Cultura referenciais e ferramentas para atuar no campo da economia da cultura, que estabeleceu, em tempos democráticos (e não mais apenas em tempos autoritários, como na Ditadura, no Estado Novo e no Segundo Reinado), um conjunto de políticas públicas de cultura, e que realizou o mais abrangente programa de inclusão cultural deste país, em parceria com os estados e municípios, dando vez e lugar a todas as manifestações culturais, em especial às culturas populares, indígenas e afro-descendentes, e às expressões transdisciplinares como o hip hop.

O presidente Lula conferiu ao MinC a dupla missão de ampliar o acesso do povo brasileiro à produção e à fruição de bens culturais; e valorizar a nossa diversidade cultural. Não realizaremos a demanda do presidente sem que todo o governo abrace a cultura. E, para isso, é fundamental a participação ativa de vocês. Este é o momento oportuno para que a sociedade reflita sobre o significado da cultura. O espírito que anima a cidadania e o cidadão, que mantém a chama da autoestima irradiante, para dentro e para além de nós mesmos, chama-se cultura. Na nossa língua, uma palavra feminina, insinuante, envolvente, determinada. Como a mulher, também suporte básico da vida social, deslumbrante e indispensável; entretanto, colocada sempre numa posição secundária pela porção masculina, dominante na sociedade, que ainda insiste em vê-la apenas como ornamento floral de brilho efêmero.

Nos tempos em que a porção mulher da sociedade, como na canção, cada vez mais impõe-se ao super-homem rendido à sua superioridade e encanto, nada mais natural do que entronizar a mulher-cultura no espaço central de nossas vidas. O Ministro da Cultura convoca a sociedade brasileira, incluindo o PT, para uma reflexão sobre o papel estratégico da cultura na transformação política, econômica e social do Brasil. Aliás, mais do que isso: convoca vocês para realizar essa transformação, através da cultura. Estou no Ministério da Cultura pela mesma razão que vocês estão no PT. Eu quero muito que o governo Lula acerte e cumpra a sua missão histórica. Vou fazer o possível e o impossível para que isso aconteça. Nada mais natural, pois, que a histórica Conferência Nacional de Cultura do PT aconteça em meio ao histórico governo do trabalhador Lula. Tomara que a nossa gestão no Ministério da Cultura, em parceria com vocês e com todas as pessoas de bem da cultura brasileira, seja, também ela, histórica.

Muito obrigado.