Apresentação do livro “Vida e Arte”, de Lélia Abramo, por Antonio Candido
“[Lélia] nunca vergou a espinha, nunca sacrificou a consciência à conveniência e desde muito jovem se opôs à injustiça da sociedade.”
Apresentação de Antonio Candido no livro “Vida e Arte”
Por Antonio Candido
A primeira coisa que chama a atenção do leitor dessas memórias é a sinceridade, patente não apenas na intenção da autora, mas na maneira direta e desataviada que ela encontrou para exprimi-la. Ao longo de todas essas páginas, raramente o relato direto é suspenso para um repouso da imaginação ou da visão. Isso ocorre em geral nalguns trechos que descrevem a beleza do mundo, as cores da terra e do céu, as plantas e as casas. Mas é relativamente pouca coisa. Quase sempre predomina a narrativa despojada, que faz pensar nos autores capazes de criar literatura sem se preocuparem com ela. Lembro dum artigo de Otto Maria Carpeaux dos anos 40, onde ele mencionava os escritores preocupados apenas em relatar, sem qualquer busca de “efeito”; e que por isso mesmo alcançam uma expressividade e uma força que a retórica nem sempre consegue. Seria, segundo ele, o caso do diário de Samuel Pappys, ou o do Perfeito pescador, de Isaac Walton. É em textos dessa natureza que pensamos lendo as páginas de Lélia Abramo, que parecem coladas na vida, sem a intermediação das estratégias literárias. Nesses casos a escrita se confunde com a voz do escritor e os leitores são admitidos à sua presença viva. Por isso, a leitura corre célere e o tempo desliza imperceptivelmente.
Este resultado é devido em boa parte à grande economia, e eu diria mesmo à grande parcimônia expressiva de Lélia Abramo, que se concentra no objeto da narrativa – seja ele fato ou sentimento -, sem qualquer demasia. E nós sabemos que a escrita literária não passa muitas vezes de coleção de demasias, de inutilidades feitas para impressionar. Sincera, direta, econômica, Lélia Abramo consegue transmitir uma notável imagem de sua vida difícil e destemida.
Os seus pontos de apoio são poucos e fortes. Para começar, a família, que tem nas suas memórias um lugar privilegiado. Família coesa e original, feita de homens e mulheres veementes, brilhantes, inquietos, insatisfeitos com a rotina e capazes de enfrentá-la à custa de sacrifícios. São tocantes as páginas que Lélia consagra aos pais e aos irmãos, traçando o modo de ser de cada um e os englobando numa espécie de orgulho grupal, que se justifica pelo relevo dos indivíduos.
A esse propósito, é preciso destacar o fato da autora pertencer a uma família posta entre duas nações. No seu caso, a origem italiana não se tornou, como para a maioria absoluta dos descendentes de imigrantes, um passado esmaecido. Dado o alto nível cultural dos seus, a tradição da mãe-pátria se preservou por meio da língua (mantida no quotidiano), das leituras, da memória sistematicamente cultivada. E houve, ainda, o jogo do destino, que a levou para a Itália em 1938 e a reteve lá 12 anos, incrementando a dupla fidelidade, que ela exprime a certa altura, assinalando que “nós que pertencemos a famílias que deixaram a sua pátria (…) não pertencemos integralmente à terra em que nascemos; crescemos com uma confusão de nacionalidades”. Posta entre duas nações e entre duas culturas, Lélia Abramo soube viver plenamente em ambas e se tornar uma personalidade enriquecida do ponto de vista cultural e afetivo.
Além da família, outro ponto de apoio foi a convicção socialista, nascida quando estava entrando na quadra dos vinte anos e mantida até hoje com extraordinária fidelidade, que a tem levado a atuar com firmeza e bravura, não apenas no âmbito das atividades profissionais, mas no quadro mais largo da vida partidária. Aqui, ela evoca os longínquos agrupamentos trotskistas e o Sindicato dos Comerciários, no decênio de 1930, para chegar à história das lutas no Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões (SATED), do qual foi corajosa presidente, e, afinal no Partido dos Trabalhadores. Esses aspectos da sua vida são contados com firmeza e naturalidade, sem jactância mas sem reservas. Do mesmo modo narrara antes a sua experiência na Itália durante a guerra, com penúria econômica, perigos de toda a sorte e o risco de prisão ou confinamento, sem falar na morte diária dos bombardeios aéreos. Essa parte é escrita num ritmo crispado e prende o leitor como se ele estivesse participando de uma experiência viva. Creio que aí Lélia Abramo chegou a uma expressividade que ficará como documento relevante de época e de destino pessoal.
O terceiro ponto de apoio que convém destacar é o profissional, a carreira surpreendente de uma grande artista que marcou o seu tempo e, no entanto, começou a pisar os palcos depois dos 40 anos e só aos 47, como conta, entrou no estágio profissional. Mas com uma força e um brilho que fizeram dela figura eminente na dramaturgia brasileira do nosso tempo. Este aspecto é exposto com veemência, combinando as realizações pessoais com a luta sindical e os dramas da repressão – tudo caracterizado pela integridade de caráter e de atitudes com que atravessou um dos períodos mais sinistros da nossa história.
O nosso mundo é tão cheio de quebras, capitulações, deserções, omissões e tudo o mais, que conforta ler a narrativa de uma vida como a de Lélia Abramo, que nunca vergou a espinha, nunca sacrificou a consciência à conveniência e desde muito jovem se opôs à injustiça da sociedade. Que sempre rejeitou as vias sinuosas e preferiu perder empregos, arriscar a segurança, sofrer discriminações para poder dizer a verdade e agir de acordo com os seus pontos de vista. Por isso, além de um belo texto escrito com calor e franqueza, este é também lição e exemplo. É muito bom saber que perto de nós existem pessoas dessa qualidade intelectual, ética e artística.
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