Por Tássia Rabelo

Em meio ao debate sobre a pena de morte motivado pela execução de Marco Archer na Indonésia, recordei de uma cena que vi em um ônibus anos atrás e que segue atual. Em conversa com o motorista, a cobradora relatava que na semana em questão um rapaz de dezessete anos havia sido assassinado pela polícia em seu bairro. Aos risos dizia que a bala havia atingido o intestino do garoto e que quando sua mãe chegou se deparou com as entranhas de seu filho espalhadas pelo chão. Diante das sinalizações de aprovação do motorista, afirmou que ao ver a mãe do rapaz aos prantos se dirigiu a ela e disse a seguinte frase: “seu filho já fez muita mãe chorar, agora é a sua vez”.

Ao longo da minha curta viagem a conversa seguiu seu rumo. A crítica à polícia era referente à periodicidade de suas ações, mas não à atividade em si. Execuções, julgamentos sumários ancorados na presunção da culpa, ao invés de processos justos baseados na Constituição, eram apresentados em sua fala de forma positiva. Expressões como: “não vai andar de camburão, vai andar de rabecão” e “tem que cortar o mal pela raiz”, permearam todo o bate-papo.

Esta cena é exemplar do quanto o respeito à dignidade humana, o direito a vida e a liberdade ainda não são valores plenamente estabelecidos entre nós, e de como estamos perdendo o debate público. A ideia de que há duas categorias de seres humanos, um integral, que merece ter acesso a seus direitos, e o outro que não pode ser classificado como tal por não ser um “humano direito”, segue sendo bastante disseminada e amplificada por uma direita que não limita sua atuação aos partidos políticos, expressa sua opinião em colunas de jornais, programas de TV e altares de igrejas, e está disputando hegemonia na sociedade. Nós, militantes da esquerda e defensores dos direitos humanos não podemos nos eximir da tarefa de alteração desse quadro.

Se questões como o combate a exploração sexual infantil, ao trabalho escravo e tantas outras já são vistas pela população como mazelas a serem erradicadas, a luta pelo direito a memória e a verdade, a garantia de igualdade de direitos para os homossexuais, e o extermínio da juventude negra tem pela frente a árdua tarefa de disputar valores, sob pena de deixar de conquistar avançO Papel da Esquerda na Construção de uma Cultura de Respeito à Dignidade Humanaos estruturantes caso não o faça.

A participação de forma organizada e massificada de movimentos sociais e partidos políticos em manifestações feministas, Marchas da Maconha, e nas Paradas do Orgulho LGBT, são centrais porque colocam, mas ainda não dão conta de todos os aspectos da multifacetada temática dos direitos humanos. Precisamos reforçar nossa atuação nesses espaços, mas também nos incorporar aos comitês pela Memória e Verdade em todo país, e debater o legado da Comissão Nacional da Verdade a partir da ótica da não repetição; monitorar, denunciar e esclarecer a sociedade sobre a perpetuação da tortura no sistema prisional brasileiro e o encarceramento em massa; e realizar um debate aprofundado sobre o modelo de segurança pública que criminaliza a pobreza e colabora diretamente para o crescimento da execução dos nossos jovens nas favelas e periferias do país.

Será preciso pressão política constante para que esta, que será a legislatura mais conservadora desde a redemocratização, não tenha legitimidade para limitar direitos, e para que possamos avançar com a aprovação de importantes Projetos de Lei, dentre os quais focaria em dois: o 4471/2012 e o 7582/2014. O primeiro prevê a investigação das mortes e lesões corporais cometidas por policiais durante o trabalho, casos que atualmente são registrados pela polícia como autos de resistência ou resistência seguida de morte e não são investigados; e o segundo tipifica os crimes de ódio e de intolerância aos migrantes, refugiados, deslocados internos, pessoas discriminadas em razão da sua origem social ou de classe, por orientação sexual, por identidade ou expressão de gênero, idade, religião, situação rua ou deficiência. Se aprovados estes projetos promoverão avanços reais, mas mesmo durante a tramitação, podem ser úteis também para travar o debate na sociedade.

No âmbito governamental é necessária uma maior ousadia no que tange a educação em direitos humanos. O governo precisa compreender a centralidade dessa temática na construção de uma sociedade mais justa, igualitária, e vocacionada para a transformação social. Tomar consciência disso significa introduzir nas diretrizes curriculares de forma transversal a defesa da dignidade de todos os seres humanos independente de classe social, gênero, raça, orientação sexual, e de ter ou não cometido algum tipo de delito. É ter coragem de fazer o embate em temas centrais como o da revisão da política de drogas, e enfrentar o conservadorismo e a intolerância.

No Brasil ainda vemos a base dos direitos e da justiça sendo ignoradas de forma brutal, pessoas condenadas sem julgamento e sentenças de penalidade máxima em um país em que a pena de morte não é permitida. Não podemos nos calar diante de tamanhas atrocidades, essas causas precisam ser assumidas por todos nós, e transformarem-se em parte estruturante de um programa de esquerda realmente transformador.

Tássia Rabelo é membro do Diretório Nacional do PT.