Entrevista com Heloisa Starling sobre a canção popular moderna brasileira
Heloisa Starling fala como a canção popular brasileira reflete o imaginário da sociedade.
“Decantando a República” leva em conta diversidade da canção popular brasileira
Entrevista com Heloisa Starling
Heloisa Starling, uma das organizadoras da coleção Decantando a República – Inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira, fala como a canção popular brasileira reflete o imaginário da sociedade.
1 – Quando nasce a música popular brasileira, e como ela passa a narrar a história republicana do país?
A música popular brasileira nasce um pouco depois da Proclamação da República, na virada do século. Ela aparece no Rio de Janeiro em 1910. Em 1917, o samba estava saindo da casa das tias baianas, o primeiro disco de vinil era gravado com o auxílio do telefone, tinha uma batida, um ritmo, uma poética diferente. Como a linguagem da sociedade brasileira é muito mais oral do que escrita, em grande medida por causa do analfabetismo, e também transita mais no espaço privado do que no público, a canção assume uma importância muito grande no sentido de refletir as opiniões, as expectativas e as ansiedades dessa sociedade. A música popular brasileira assume uma importância para o Brasil assim como a literatura assumiu na França, por exemplo. Nossa canção reflete muito bem a dimensão do mundo público, expressa os sentimentos que transitam do espaço privado para o espaço público, fala da nossa história e também desenha uma história própria, evocando personagens, eventos e fala de ansiedades políticas e dos excluídos. Então ela funciona com essa possibilidade de você pensar o Brasil pela rua.
2 – Toda vez que falamos em música popular brasileira estamos falando da esfera pública?
Sim. Toda vez que a gente fala da canção popular brasileira moderna, sempre vai encontrar dentro dela aquilo que está sendo gestado na rua. Tom Zé fala muito sobre isso: “o professor universitário precisa aprender o que está sendo feito na rua”. A grande sacada dessa coleção, na minha opinião, foi quando pegamos diversos estilos da canção, como a música brega dos anos 1970. Temos aí um conjunto de canções que fala da empregada doméstica, do mundo público e dos excluídos. Em geral, a gente pensa que só a canção dos anos 1960 que traz isso. Mas a canção popular brasileira no seu conjunto, é sempre a antena daquilo que está sendo manifesto no mundo público.
3 – Como a coleção Decantando a República junta o imaginário social, histórico e político do país?
Na medida em que ela exprime as opiniões da rua e faz sua mediação com os diferentes segmentos sociais. Ela é capaz de expressar não apenas sentimentos, mas opiniões e discordâncias de momentos da história do Brasil que nem mesmo a historiografia tradicional tratou. Por exemplo, em “O Almirante negro”, que fala sobre a revolta da chibata. Desta forma, a canção redesenha a história do país e emite sua opinião ou um conjunto de opiniões sobre tudo o que está acontecendo na sociedade.
Voltando ao samba das décadas de 1910, 1920, a gente observa como naquela época a sociedade pensava a questão da discriminação de cor, por exemplo. Da mesma forma, a canção, com a pretensão de expressar um sentimento crítico, criou a figura do malandro para trabalhar a idéia de liberdade. Pois naquela sociedade escravocrata, trabalho era sinônimo de escravidão. Então, a gente percebe como a voz da sociedade está presente em cada um desses momentos.
4 – O projeto do livro aprofunda o seminário que foi realizado no Rio de Janeiro em setembro de 2001?
Ela aprofunda na medida que as pessoas reescreveram seus textos, o que, de certa forma, contribuiu para uma reflexão maior sobre os temas. Além disso, no seminário foram debatidos diversos assuntos e isso contribuiu para o aprofundamento das análises. Mas de qualquer forma, a coleção espelha muito bem as novidades que apareceram no seminário. Por exemplo, eu defendia que a gente ia parar no rock dos anos 1980, eu tinha muita dificuldade em ouvir a voz das ruas, e, de repente, o rap apareceu e roubou a cena. O capítulo 3 da coleção traz muito forte essa idéia. O artigo de Wanderley Guilherme dos Santos termina com MV Bill, o Luiz Eduardo Soares traz O Rappa e a Maria Rita Kehl o mangue beat. Na minha opinião, isso foi uma novidade.
5 – Como surgiu a idéia de convidar especialistas de áreas tão distintas para analisar a música popular brasileira? E qual foi a reação dos escritores convidados?
A idéia era seguir o argumento do Tom Zé. Para isso, mobilizamos um conjunto grande de especialistas de áreas muito diferentes, dos quais apenas dois eram da área de música, para nortear a linha que seria desenvolvida. Todos os escritores convidados tinham o perfil de pensar o Brasil e nenhum deles tinha utilizado a canção como objeto de estudo, o que lhes trouxe certa resistência no início. Mas o resultado do trabalho foi muito positivo porque produziu formas novas e diferentes de interpretar a canção tanto no que diz respeito à melodia quanto à letra. As canções estudadas eram ouvidas na mesma versão do mercado, para que o leitor pudesse encontrar o produto para ouvir e checar o trabalho que foi feito. Essa também foi uma preocupação dos ensaios. O texto do Wander Melo Miranda mostra a interpretação de Elis Regina de Aquarela do Brasil onde foi incorporado ao fundo, numa segunda gravação, a musicalidade dos índios para trabalhar a idéia de nação, o que não havia sido feito até então.
*Heloisa Starling é professora de História das Idéias na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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