Por Jorge Hage

Em vigor desde 29 de janeiro deste ano, embora ainda não regulamentada, a lei nº 12.846/2013 constitui a mais recente peça acrescentada à construção, iniciada em 2003, do Sistema Brasileiro Anticorrupção. Esse é o seu verdadeiro sentido, e não  o de  iniciativa isolada, decorrente dos protestos de 2013, como tenho lido em artigos mal-informados. Se os protestos aceleraram sua aprovação no Congresso, ótimo; mas não se omita que o ex-presidente Lula enviou esse projeto ainda em 2010.

A lei veio completar um conjunto de medidas que integram uma estratégia capaz de habilitar o Estado a enfrentar um sério desafio, que afeta todos os países, cada um a seu modo, e que contribui para minar uma das bases dos regimes democráticos: a confiança nas instituições.

A estratégia teve início em 2003, com a criação da Controladoria-Geral da União – que, além de auditorias, passou a instaurar processos punitivos e a impulsionar a transparência – somada à autonomia efetiva do Ministério Público (garantida, a partir daquele ano, pela escolha do procurador-geral pela própria categoria), às operações da Policia Federal e à articulação permanente com o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), sem falar nos mais de 60 órgãos e entidades que compõem hoje a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro.

Não se ignora, por outro lado, a contribuição da imprensa, disposta como nunca a apontar casos de corrupção, o que não deixa de ser natural quando assumiu o governo um partido que incluía o combate à prática entre suas bandeiras e que desbancou do poder as forças que com ela conviviam, sem atacá-la, havia mais de 500 anos. Os frutos dessa combinação de fatores estão aí, refletidos nas manchetes dos jornais sobre casos de corrupção detectados, investigados e divulgados, sem se esconder nada “sob o tapete”.

É essa a diferença fundamental entre o que ocorre no Brasil há uma década e o que ocorria antes: agora se investiga e se revela o que se apurou. Até porque, em paralelo, o País deu passos gigantescos em matéria de transparência e participação social. Temos hoje um portal divulgando os gastos federais de cada dia na manhã seguinte, o que é inédito no mundo. O Brasil é um dos líderes da Parceria Global para Governo Aberto. Temos uma Lei de Acesso à Informação das mais avançadas.

Mas isso não é tudo. E a punição dos culpados? Como os processos judiciais são absurdamente lentos, investiu-se nas sanções administrativas. E já foram expulsos da administração federal 4.800 servidores; já são 2.500 ONGs impedidas de receber recursos e 3.800 empresas proibidas de ganhar contratos públicos.

Agora, com a lei nº 12.846, ganha-se um poderoso instrumental, com penas severas que atingem o patrimônio da empresa corruptora – até 20% do faturamento ou R$ 60 milhões. O mais importante, porém, não é que se venha a aplicar tais multas. É não ter de aplicá-las, por constatar que sua simples previsão produziu o efeito dissuasório desejado.

Apostamos nesse efeito, considerando, além do peso das sanções, o regime da responsabilidade objetiva, o estímulo aos acordos de colaboração e, sobretudo, a valorização dos programas de integridade corporativa (“compliance”) que a empresa adote, o que servirá como atenuante em caso de processo.

Com essa lei, o Brasil se ombreia aos países membros da OCDE, pois ela pune também o suborno transnacional. Está completo o nosso sistema? Ainda não. Faltam peças como a reforma do processo judicial e a reforma política, a começar pelo fim do financiamento empresarial das campanhas, que está, quase sempre, na raiz da corrupção. E é preciso que Estados e municípios acompanhem esses avanços.

Creio que chegaremos lá, porque essa evolução, uma vez iniciada, é caminho sem volta. A sociedade não permitirá sua interrupção e, menos ainda, qualquer retrocesso.

Jorge Hage é advogado e ministro-chefe da Controladoria-Geral da União.
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo em 23/06/2014