Reforma política: o que fazer para sair dessa maré?
Por Thales Chagas Machado Coelho
Propomos, com este despretensioso ensaio, levar à frente discussão sobre a dificuldade de se dar concretude à tão declamada e sempre distante reforma política, algo que, como a reforma tributária, todos desejam, mas ninguém se entende sobre o que venha a ser. Discussão que se pretende, obviamente, possa ser expandida de tal forma que se torne inescusável e inafastável o dever do Congresso Nacional de, na prática, enfrentá-la e atender a precisos – enfatizo – precisos reclamos da população.
Os protestos que ocorreram no mês de junho de 2013 não chegaram a expressar uma pauta concatenada sobre esse tema, mas, indubitavelmente, trouxeram à tona grave descompasso entre representantes e representados no âmbito de nossa institucionalidade política.
Ante a confusão reinante, velha canção de Fernando Brant e Milton Nascimento poderia, talvez, retratar período de tanta perplexidade: “O que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé? O que vocês fariam para sair dessa maré?” A primeira coisa a fazer é procurar traçar um diagnóstico do atual sistema político, entender do que se trata quando se reivindica a sua reforma e, uma vez assente a necessidade de “mudar tudo isso que aí está”, definir opções que, democraticamente, possam ser abraçadas por largos contingentes de nossa cidadania. A segunda tarefa que se põe é a de verificar quais meios os mais adequados para que se faça prevalecer os desideratos da imensa maioria de cidadãos e cidadãs, sujeitos primeiros da soberania no regime democrático.
No calor dos acontecimentos, como resposta imediata às manifestações, a Presidente Dilma Rousseff propôs a convocação, pelo Congresso Nacional, de um plebiscito destinado a auscultar o eleitorado sobre temas relativamente complexos para o cidadão comum: a) financiamento de campanhas; b) definição do sistema eleitoral; c) coligações partidárias; d) voto secreto; e e) suplência de senadores.
Curioso constatar como, praticamente um ano após aqueles eventos, quase nada aconteceu. O que parecia ser urgente perdeu-se nas brumas do tempo, cedendo passo, no entender dos detentores de poder político, a outras prioridades.
Concretamente, só após o affair Natan Donadon a questão do voto secreto mereceu consideração dos congressistas, mas, ainda assim, sem qualquer consulta popular. Com efeito, a despeito das objeções apostas pela Presidência do Congresso Nacional, logrou-se avançar na transparência das decisões parlamentares para além da adoção da votação ostensiva para a cassação de mandatos de deputados e senadores, aditando-se a isso, com muito esforço, o voto aberto para a apreciação dos vetos presidenciais (v. Emenda à Constituição nº 76, de 2013). As aprovações e destituições de autoridades pelo Senado Federal e as eleições dos membros das mesas diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal continuam, porém, recobertas pelo escrutínio sigiloso.
Quanto ao financiamento de campanhas, o fato novo reside na apreciação, pelo Supremo Tribunal Federal, da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4650, proposta pelo Conselho Federal da OAB, pela qual se discute a conformidade ou não à Constituição da legislação ordinária que assegura o financiamento de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas. Até o momento em que esse artigo é elaborado, cinco dos onze ministros do STF já se pronunciaram pela total inconstitucionalidade de tais doações; um votou pela inconstitucionalidade parcial e um admitiu a constitucionalidade de tais contribuições. A votação foi suspensa em final de dezembro de 2013 e, retomada em 2 de abril de 2014, foi novamente suspensa com o pedido de vista do Ministro Gilmar Mendes. Na esteira da tendência até agora majoritária manifestou-se o Procurador-Geral da República. Em sentido contrário, porém, isto é, pela constitucionalidade de tais contribuições, opinou o Advogado-Geral da União.
No Senado Federal, a bancada do PT apoiou concretamente a tese arguida pela OAB. Destacam-se o Projeto de Lei do Senado nº 264, de 2013, apresentado pelo Senador Jorge Viana, e a emenda oferecida pelo Senador Eduardo Suplicy ao Projeto de Lei do Senado nº 441, de 2012 como espelhos da posição defendida pela entidade representativa dos advogados. Ambas as iniciativas, porém, foram rechaçadas pela maioria dos senadores. Surpreende que, após o STF haver iniciado o julgamento, a CCJ do Senado Federal, tenha, como raio em céu azul, aprovado um substitutivo ao PLS nº 60, de 2012, no sentido de igualmente proibir o financiamento de pessoas jurídicas a partidos políticos, menos de seis meses após ter decretado a inconstitucionalidade de análoga proposição do Senador Jorge Viana. Parece-nos que a intenção é aprovar legislação (que, forçando-se a barra na interpretação, só valeria para as eleições de 2016), de forma a motivar a decretação de perda de objeto na ADI nº 4650, evitando-se, assim, a manifestação do STF, nesse processo em curso, no sentido de se aplicar imediatamente a proibição de contribuições de pessoas jurídicas para as campanhas eleitorais deste ano. Ou, quem sabe, levar a Presidência da República ao constrangimento de vetar a proposição, conforme orientação dada à matéria pela AGU, no julgamento da própria ADI.
Nos dois momentos cruciais de deliberação, acima mencionados, viu-se que, as “vozes das ruas”, que haviam sido mobilizadas em meados do ano passado, não se converteram em organização consistente em torno de, como no título canção mencionada, “saídas e bandeiras” de luta. Das reivindicações políticas que emergiram ao longo das manifestações restou apenas uma grande barafunda. Certamente isso contribuiu para que houvesse um notório arrefecimento das pressões sobre o Congresso Nacional e sobre o Poder Judiciário. E pode explicar os pífios resultados acerca da transparência das deliberações parlamentares e do encaminhamento a passos de cágado de medida judicial eficaz para cercear a influência do poder econômico na conformação do poder político.
É interessante observar que, ao se manifestar perante o Congresso Nacional, por ocasião de sua posse, a Presidente da República, Dilma Rousseff, havia destacado a importância da reforma política na agenda dos trabalhos legislativos de 2011. Foi muito aplaudida na oportunidade. Mas nada aconteceu; palavras que o vento levou. A relevância do tema já fora trazida à tona por seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, que, em seu programa de governo para a eleição de 2002, assinalou que a reforma do sistema político era “urgente e necessária para promover uma efetiva democratização da sociedade e do Estado, permitindo que as disputas eleitorais sejam mais transparentes, equânimes e capazes de abrir espaço para o surgimento de novas lideranças”. E acrescentava:
Tal reforma acontecerá a partir de uma ampla discussão na sociedade e no Congresso. Não haverá pacote ou receitas prontas a serem impostas de cima para baixo. Essa reforma buscará introduzir um sistema de financiamento público das campanhas eleitorais, o que contribuirá para a diminuição do peso do poder econômico e da corrupção, tornando mais efetiva a representação política. Para fortalecer os partidos, dar-lhes maior nitidez programática e consistência, será proposta a instituição de listas partidárias nas eleições proporcionais, assim como a adoção de mecanismos de fidelidade partidária, impedindo a atual troca de partidos, que atingiu cerca de 50% dos deputados federais da atual legislatura. Finalmente, deverão ser adotadas medidas que assegurem a efetiva proporcionalidade da representação. Isso implica um equilíbrio entre o número de eleitores de cada Estado e o de parlamentares, na medida em que a Câmara Federal, expressão da soberania popular, deve representar a sociedade da melhor maneira possível. Essas medidas centrais da reforma Política serão desenvolvidas e complementadas visando a uma efetiva extensão da cidadania, ao fortalecimento do espaço público e a um maior controle social do Estado.
O que se passou naquela legislatura a esse respeito? Nada. Tudo restou postergado para o dia de São Nunca…
Quando tomou posse no cargo de Presidente da República, em seu segundo mandato (2007), Lula voltaria a suscitar a prioridade da reforma política em seu discurso inaugural. Naquele momento, chamou a atenção para a importância da democracia participativa:
Temos no Brasil um desafio pela frente. Desafio para as forças que se identificam com este governo e para aquelas que se situam na oposição. Temos de refletir sobre nossas instituições e nossas práticas políticas. Temos de construir consensos que não eliminem nossas diferenças, nem apaguem os conflitos próprios das sociedades democráticas. Precisamos de um sistema político capaz de dar conta da rica diversidade de nossa vida social. Nossas instituições têm de ser mais permeáveis à voz das ruas. Precisamos fortalecer um espaço público capaz de gerar novos direitos e produzir uma cidadania ativa. As formas de democracia participativa não são opostas às de democracia representativa. Elas se complementam.
Coerente com a postura inicial, o Poder Executivo não forçou deliberações congressuais sobre os mais diversos temas que compõem a pauta da reforma política. Mas não se manteve inerte, ainda que tenha se abstido de tratar da questão da democracia direta. De fato, em agosto de 2008, por meio dos ministros da pasta da Justiça e da Secretaria de Relações Institucionais, enviou ao Congresso Nacional, a título de anteprojetos, proposições que consolidavam a posição governamental sobre os seguintes pontos:
a) sistema eleitoral de lista pré-ordenada;
b) financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais;
c) fidelidade partidária;
d) inelegibilidade;
e) limitação de coligações partidárias às eleições majoritárias;
f) cláusula de desempenho.
De lá para cá, todavia, nada sucedeu. As propostas de Lula, diria Paulinho da Viola, “sumiram na poeira das ruas”. A “ampla discussão na sociedade e no Congresso”, que Lula preconizava em 2003, jamais ocorreu. Das matérias acima citadas, o Congresso Nacional logrou deliberar tão-somente sobre dois pontos específicos: a) questão da ampliação da inelegibilidade, em face de pressão tópica da sociedade civil organizada, transformado-se em norma jurídica (Lei Complementar nº 135, de 2010) projeto de lei de iniciativa popular (“Lei da Ficha Limpa”) que, em alguns pontos, coincidia com a proposição do Poder Executivo; e b) a desconsideração das migrações partidárias para fins de distribuição do Fundo Partidário e do tempo de rádio e TV entre os partidos políticos (Lei nº 12.875, de 2013). No mais, tudo continuou como dantes no quartel de Abrantes. É preciso lembrar, porém, que, entrementes, o Supremo Tribunal Federal consagrou o princípio da fidelidade partidária, ao dizer que a titularidade do mandato eleitoral diz respeito ao partido político e não ao candidato eleito, inclusive em pleitos majoritários (norma depois relativizada com a criação do PSD), bem como declarou a inconstitucionalidade de dispositivo da Lei Orgânica dos Partidos Políticos que tratava da cláusula de desempenho (cláusula de barreira).
É verdade que o Senado Federal e a Câmara dos Deputados houveram por bem criar comissões especiais para tratar da chamada reforma política. Mas, como se sabe, efetivamente, nada foi objeto de deliberação. Adotaram-se nas três últimas legislaturas mudanças tópicas na Lei nº 9.504, de 1997 (Lei das Eleições), editadas com o intuito de reduzir o tempo e o custo das campanhas eleitorais e lidar com o fato novo da propaganda pela internet (Lei nº 11.300, de 2006, Lei nº 12.034, de 2009, Lei nº 12.875, de 2013 e a Lei nº 12.891, de 2013). Algo como tratar um câncer oferecendo aspirina ao paciente.
É preciso reforçar que, na verdade, o debate tem sido circunscrito à mera reforma eleitoral. Qual o resultado? Alterações, digamos, com a profundidade de um pires. Não se vem tratando, a rigor, de uma reforma política, que implicaria, repetindo os dizeres de Lula, uma “reflexão sobre nossas instituições e nossas práticas políticas”; uma discussão profunda sobre a forma e sistema de governo, sobre a configuração do regime democrático, sobre a organização do federalismo brasileiro. Com efeito, parecem restar claros: a) o esgotamento do chamado presidencialismo de coalizão, tal como praticado desde o advento da “Nova República” e a exigência da construção de nova governança, sem prejuízo das garantias de freios e contrapesos constitucionais; b) a necessidade de revisão dos critérios de representação parlamentar de forma a realçar o princípio da soberania popular; c) a imperiosidade do exercício em maior escala da democracia direta, quer para fins de deliberação quer para consolidação de mecanismos populares de fiscalização e controle dos órgãos investidos de poder político; e e) a revisão das atribuições e dos meios próprios dos entes federados.
Ante o evidente esmaecimento da proposta de consulta plebiscitária para temas, cuja abordagem melhor se daria se fossem objeto de referendo, após intensa pregação pedagógica das forças políticas sinceramente reformadoras junto ao eleitorado, advogamos que se façam esforços no sentido da elaboração dessa agenda, agregando-lhe a energia transformadora de sujeitos políticos conscientes. Isso acabaria por afastar a discussão sobre a constitucionalidade ou não de uma assembleia constituinte autônoma para tratar de reforma política, vez que a coesão e robustez de uma parcela da população organizada em torno de divisas comuns, nítidas e galvanizadoras de mentes e corações imporiam ao legislador mudanças que, progressivamente, instaurariam entre nós uma democracia real, radical, equitativa e participativa, no âmbito do Estado de Direito. Para que isso venha a ocorrer, não é demasiado recordar as sábias palavras de Ferdinand Lassalle, fundador do primeiro partido operário socialista de que se tem notícia: “Os governantes não tiveram muito trabalho para privar o povo dos direitos eleitorais e, até agora, não sei se foi feita qualquer campanha de protesto para recuperar esses direitos”.
Thales Chagas Machado Coelho é advogado e assessor técnico da Liderança do PT no Senado Federal