O declínio do homem público
1.
Após a morte do imperador Augusto, a decadência de Roma leva à indiferença com a vida pública. Eis o motivo da atração dos romanos pela transcendência da religião cristã, em meio à acelerada erosão moral e à corrupção que minava a República.
A ansiedade que toma conta dos indivíduos joga para escanteio os assuntos do Estado, em proveito da preocupação com a salvação particular das almas. Para Richard Sennett, em O declínio do homem público: As tiranias da intimidade, esse processo degenerativo se expande pelo Ocidente desde os anos 1970.
O vácuo social e a inflação egoica incentivam os ideais da autorrealização, hoje empreendedorismo, isolando o destino pessoal da solidariedade institucional. Os espertos se aproveitam do clima de desamparo para faturar com palestras de autoajuda. “O mundo dos sentimentos íntimos perde suas fronteiras; não se acha mais refreado por um mundo público onde as pessoas fazem um investimento alternativo e balanceado de si mesmas”.
Forma-se uma comunidade que não descreve a vontade geral, mas subjetividades envelopadas no solipsismo. Os relacionamentos são considerados autênticos, quanto mais próximos estiverem do âmbito das relações pessoais. Nesta perspectiva, os males da sociedade são condensados “na impessoalidade, na alienação e na frieza; a soma dos três constitui a ideologia da intimidade”.
A fé condominial supera o solidarismo de classe, que envolve estranhos. A opção é por uma racialidade e um perfil socioeconômico similares. A estrutura intimista comprime a sociabilidade com a interação entre iguais. O higienismo constrói barricadas na periferia e equipamentos urbanos em zonas nobres. Desnecessário lembrar que esta versão de fraternidade conduz ao fratricídio pela via cheia de pedras do racismo e da aporofobia.
O theatrum mundi exacerba a lógica do casulo em detrimento do exercício de cidadão e cidadã. O gozo em grupos escapistas bloqueia a luta pela fruição completa da cidade, que evoca sempre uma possibilidade de intercâmbios com a diversidade. Privatizar a convivialidade encoraja as posturas retraídas e, no limite, violentas. Para não mencionar as doenças do psiquismo: o medo da alteridade, a inibição emocional e a desordem cognitiva.
A procura por interesses comuns é substituída pelo conforto da identidade comum. O “homem cordial” no circuito de valores da família e dos amigos tem horror à impessoalidade. Recusa a regra básica da democracia – a lei é para todos indistintamente. Rompe com o regime democrático. O compadrio deixa fértil o terreno ao Estado de exceção autoritário, sob um palhaço sociopata.
2.
A cultura da personalidade do século 19, ilustrada pelos romances de Honoré de Balzac (1799-1850), Charles Dickens (1812-1870) e Machado de Assis (1839-1908), deteriora a vocação pública e o cuidado com o patrimônio público. O carisma secular aparece no strip-tease psíquico dos políticos no decênio 1930, pela incivilidade e exibicionismo. O filme de Charlie Chaplin, O grande ditador, capta o fenômeno com humor.
O jornalismo é compulsivamente personalista, faz da vida privada dos governantes o centro das notícias para explicar o xadrez de posições, na esfera pública. Com o que o bom pai de família sobrepuja o responsável pela austeridade fiscal que espalha a miséria. Trata-se de uma “pessoa de bem”; o tom é de aceitação. Em contrapartida, quem denuncia o genocídio palestino na Faixa de Gaza, pelo governo de Israel, é acusado de “terrorista”.
Como no antigo mito, Narciso não percebe o perigo de se importar somente consigo. Embevecido com sua beleza refletida na superfície do lago, cai e se afoga (no eu). A cultura voltada ao egocentrismo é trágica. A tirania da intimidade barra a emancipação coletiva e camufla o evanescimento da res publica, enquanto a extrema direita simula a vingança contra o “sistema”.
Que falta fazem o civismo do heroico Salvador Allende, o primeiro socialista eleito presidente na América Latina (1970-1973), e o nacionalismo do sábio Pepe Mujica, o presidente simplesmente humano do Uruguai (2010-2015). Nosso tempo carece de heroísmo e sabedoria no ajuste de contas com o irracionalismo que paira sobre o futuro. Contudo, novas luzes surgem na manhã a exemplo da improvável estrela de Lula.
No Brasil, o obscurantismo ganha fôlego no impeachment da mulher honesta com um programa popular. Aprofunda-se no lawfare midiático-judicial do estadista para sepultar a esquerda, e esbarra no golpe flopado da elite vira-lata. O agravante agora é o Congresso Nacional que protege o crime organizado e as grandes fortunas para ferrar os pequenos. No livre mercado da hipocrisia, o povo assiste – não sem indignação e disposição de luta nas ruas – ao vergonhoso e desaforado declínio do homem público.
Parlamentares impúblicos moldam-se em emendas impositivas milionárias, de costas para a sociedade e o meio ambiente, e votam na madrugada a anistia para os inimigos da democracia. Julgam-se acima da lei e da justiça. Os escândalos de lesa-pátria coram até os frades de vitrais, tamanho o descaramento. “Que é feito daquelas caras / escondendo o seu segredo?”, indaga a poeta.
Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul
Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.
