1.

Antigos romanos distinguem várias modalidades de poder: (i) auctoritas, a influência exercida graças a uma autoridade moral; (ii) potestas, a competência dos magistrados e oficiais do governo; (iii) imperium, a ascendência para declarar guerras e comandar os exércitos. Não reduzem o poder à vontade fálica de dominar, como faz a mídia moderna ao psicologizar os conflitos sociais, políticos e econômicos comentando o nervosismo do mercado.

A abordagem não se restringe à psiquê. Busca a compreensão holística da questão que organiza toda sociedade – o poder. O compromisso com a ética é primordial. Manipular os fatos para encaixá-los em uma perspectiva preconcebida não é sinônimo de liberdade. “Se não é certo, não o faça; se não é verdade, não o diga”, pondera Marco Aurélio (Meditações, 180 d.C.). Por mais engenhosa, aliás, a mentira não dignifica o potere nem a libertà.

Após a Glorious Revolution, na Inglaterra, o pacto da Câmara dos representantes com a Monarquia reformada fala pelo povo, por metonímia. O liberalismo afasta a realeza e os comuns em prol de notáveis burgueses. O ato de administrar envolve ajustes institucionais e negociações políticas. A equação do poder e a liberdade implica acordos em gabinetes, com o contemporizador lema pós-absolutista – “Só um poder controla outro poder”.

A tripartição dos poderes teorizada por Montesquieu (O espírito das leis, 1748) advém da experiência revolucionária inglesa. Supera as polarizações com a moderação ao arbitrar e pela obediência ao ordenamento do executivo, legislativo e judiciário. A liberdade, em última instância, consiste em fazer apenas aquilo permitido pelas leis tendo em vista a estabilidade social.

Mas equilíbrio não se confunde com impunidade aos que conspiram em nome de um regime de exceção. Tampouco se identifica com um “centro” fictício entre polos, criado para continuar a conspiração contra a soberania popular por outros meios. O propósito da estrutura estatal tripartite, vale sublinhar, mira justo a salvaguarda das administrações que priorizam o interesse público, antes dos interesses particulares. A inversão atual de vetores traduz o retrocesso civilizacional com o hiperindividualismo, nascido nos idos da década de 1980.

2.

Vida que segue. O “mito” dos porões da memória nacional transforma em lama tudo que soluça ou faz, com ou sem tornozeleira. O gigolô da República é a face nebulosa, oculta, do neocolonialismo no patropi. Esconder o patrimônio, dissimular a covardia, elogiar a barbárie, provocar o medo e colecionar cadáveres na disputa por territórios é seu gozo e perdição. A compra de imóveis em espécie, o furto das joias sauditas e o genocídio dos Yanomamis no quadriênio insensato são provas da retribuição por préstimos, na traição à Terra brasilis.

Essa criatura sem virtudes retrata a decadência do homem público. Embora os armários do Palácio do Planalto contenham ainda segredos escabrosos – alivia saber que o símbolo da nostalgia da ditadura e as torturas, do reacionarismo teocrático e os obscurantismos, da hegemonia das finanças e os monopólios tecnológicos – não sairá impune. A justiça tarda, mas chega.

Já a CPMI sobre o assalto aos aposentados no INSS e o trâmite protocolar do Projeto de Lei do Ministério da Justiça e da Segurança são um espetáculo, de quinta categoria. A indicação do ex-secretário do governador de São Paulo à relatoria do PL Antifacção é um escárnio. O trabalho do ministro Ricardo Lewandowski e especialistas no tema foi entregue a um suspeito investigado em dezesseis homicídios. O aspone inescrupuloso empenha-se em cavar brechas jurídicas de proteção às organizações criminosas. Até a revista Veja aponta o “papelão”.

Como na previsão dos abolicionistas, costumes enraizados em 350 anos de escravismo empedram a alma das elites e acorrentam o tempo. É muito passado para pouco futuro. No ínterim, o Centrão se sacia nas dobras do Erário. O poder econômico e político limita o exercício da liberdade. Afinal, no neoliberalismo, “alguns animais são mais iguais do que outros”. Daí não andar a fila da universalidade de prerrogativas para indivíduos e coletivos.

O problema não é o cinturão de pobreza; é a casa senhorial onde não se atira e pergunta, na saída, pelo CPF. O conluio de duras ilegalidades – tráfico, garimpo, milícia, extorsão – com políticos em mandato e investidores em ações vem de longe. O noticiário não considera o fenômeno um escândalo para não cair o rei de espadas, o rei de ouros e o rei de paus. Sonegação, corrupção, escroquerias, assassinatos integram a lógica de dominação desde priscas eras, nas lides de exploração da mais-valia e de acumulação capitalista. O sistema corrompe o poder e a liberdade.

3.

Os mecanismos de freios e contrapesos não impedem as instituições políticas e as agências financeiras de lavar o dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC) e do Comando Vermelho (CV). Compreende-se que o Congresso piore com o alto custo das campanhas eleitorais, com as emendas impositivas clientelistas e com o caráter lúmpem das bancadas da direita. Entende-se, de resto, que a Faria Lima queira reduzir a competência da Polícia Federal e silenciar as inúmeras falcatruas do banco Master e do BRB, o banco público de Brasília. La noblesse oblige.

A delinquência no andar de cima, porém, destrói os princípios republicanos e a moralis minima necessária para a democracia avançar; enquanto o voto nominal impulsiona a demagogia, o oportunismo e o personalismo de celebridades de ocasião. É preciso semear na consciência da população a ideia de uma reforma política com o voto em lista nos partidos, para que o conteúdo programático e a ideologia das siglas se tornem perceptíveis aos eleitores. A informação vence a alienação.

O Estado de direito democrático vive uma crise de paradigma, sintomatizada na metástase terminal do império estadunidense em combinação com o oxímoro conceitual de uma pretensa “democracia iliberal”. Urge fortalecer os órgãos multilaterais e abrir canais de intervenção social para definir o destino dos Estados-nação. “Solidariedade, igualdade e sustentabilidade”, prega o presidente Lula na COP-30, em Belém (PA), resgatando o bem-estar geral e as consequências dramáticas do antropoceno. A proposta reafirma uma proeminência cívica do interesse público (socioambiental) sobre os interesses particulares.

Se a história exige uma opção pelas vítimas e por aqueles que combatem a opressão, também cobra uma concepção de economia focada menos no crescimento do PIB ou na Bolsa de Valores, – e mais na consolidação dos Direitos Humanos. A participação cidadã deve ser incorporada ao organograma do poder na esfera pública, na direção do socialismo participativo e pluralista.

Em um contraponto às distopias dos golpes militares, para evocar o Ato Institucional Permanente, do poeta amazônida Thiago de Mello: “Fica proibido o uso da palavra liberdade, / a qual será suprimida dos dicionários / e do pântano das bocas. / A partir deste instante / a liberdade será algo vivo e transparente / como um fogo ou um rio, / ou como a semente do trigo, / e a sua morada será sempre / o coração”. De nossa resiliente rebeldia. Oxalá.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.