A face tecnofeudal do capital
Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças na Grécia, é cofundador do partido de esquerda pan-europeu Movimento pela Democracia na Europa 2025 (DiEm25) e autor de Tecnofeudalismo: O que matou o capitalismo. A obra indica uma mutação do sistema capitalista ao demolir dois pilares, “os mercados e os lucros, que não mais apitariam o jogo”. A transformação se dá com a ação dos feudos de rendas por via dos aplicativos na internet. Ver a entrevista do intelectual grego na Focus Brasil, n° 198, onde ele explica como o “capital bem-sucedido” teria derrotado o velho arcabouço.
O capital tradicional (ferrovias, redes telefônicas, edifícios, indústrias) continua a existir; só não detém o poder. Torna-se vassalo dos donos do “capital-nuvem”. A cidadania regressa à condição subalterna de contribuinte da nova classe dominante com o suor não remunerado, as informações e dados apreendidos pelas Big Techs e a Big Finance. O parasitismo é um fiador da metamorfose. A General Motors e a Exxon Mobil recolhem em salários e honorários 80% da receita das empresas; os monopólios tecnológicos recolhem menos de 1% do faturamento – um privilégio antirrepublicano.
De início, os Estados Unidos financiaram a descentralização das redes horizontais para precaver-se de um bombardeio atômico no terminal centralizado de suas defesas. O Pentágono necessitava da logística das redes autônomas que seduziam os internautas. Seguiu-se uma pilhagem dos commons – recursos compartilhados – com invenções espetaculares nas comunicações. A acumulação primitiva do capital, de novo tipo, fez o valor de troca mercadológico suplantar o valor de uso comunitário.
O ocaso da privacidade
O propósito da rede não-comercial de computadores foi proteger a tecnoestrutura norte-americana, não a derrocada sistêmica imaginada por Manuel Castells. A emancipação do jugo dos mercados não passava de um desejo. A Wikipédia é dos escassos serviços comuns sem monetização. A plêiade dos algoritmos não demorou a cercar e a destruir as ilusões anarcocibernéticas da Internet One. À Internet Two o que importa é a submissão confundida com uma sensação de liberdade das personas.
Os software inteligentes, torres de servidores, telefonia e os milhares de quilômetros de fibras óticas reduzem os trabalhadores humanos a exaustos terceirizados das nuvens. Os estoques formados pelo histórico dos navegadores no ciberespaço com os vídeos, fotos e deslocamentos físicos abastecem o controle externo da privacidade individual. Tal acervo favorece a orientação do consumo e opções políticas nas eleições. Prerrogativa equivalente à do Big Brother, na distopia de George Orwell.
O senhor feudal dava direito aos servos de cultivar lavouras em suas terras por um percentual da produção. Não difere do procedimento de Jeff Bezos com os vendedores da amazon.com ao assentir na utilização do feudo digital em troca de uma comissão. Aliás, sem a preocupação de fiscalizar a gleba para a cobrança; o pagamento é certo. A Amazon serve de modelo às técnicas da Alibaba, na China. O e-commerce desmonta os mecanismos do mercado real para satisfazer o capital da nuvem.
Proeminência da renda
Rentistas sempre existiram com o extrativismo das petrolíferas no solo e nas profundezas oceânicas. Que dissimulem os rendimentos como lucro não altera a situação. O mesmo acontece no que toca à fidelização das marcas esculpidas no marketing de megaempresas. Aumentam os preços e não veem os clientes abandonar a afinidade eletiva; vide os nichos aficionados da Mercedes-Benz e da Apple.
Antes, a república democrática tecnologicamente avançada implicava a superação do establishment por agentes do trabalho organizado. Agora, as tecnologias informacionais ocupam o destacado lugar dos chefes da revolução que desemboca, não em conselhos populares, mas na espoliação apoiada no consenso tácito do povo. Os capitalistas-nuvem disputam a primazia no pódio com investidores das Bolsas de Valores, na corrida para substituir a supremacia do lucro pela proeminência da renda.
O professor de Economia na Universidade de Atenas argumenta que o termo capitalismo nomeou o bloco econômico nascente quando o feudalismo ainda dominava áreas rurais, possuía a propriedade de quarteirões aristocráticos em cidades, presidia órgãos governamentais e comitês parlamentares, e comandava exércitos e marinhas. O nome de batismo precedeu a configuração da realidade futura.
A vigilância totalitária
A palavra “tecnofeudalismo” é lançada a título de desafio num período em que os mercados regem a vida de bilhões de pessoas e em que capitalistas, às antigas, dirigem um complexo militar-industrial, parlamentos, mídia, bancos centrais e instituições globais – Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio. A coabitação da renda e da mais-valia caracteriza o momento atual. Aparelhos burocráticos mantêm vivo o capitalismo, feito um redivivo Frankenstein.
O padrinho da expressão que acaba de entrar no Dicionário da Política está ciente de que a atividade capitalista cresce no processo de acúmulo do capital que degrada o lucro e substitui mercados por feudos. Compreende que a embalagem se desgasta com um dinamismo próspero contínuo e, assim, empodera o Vale do Silício. A dúvida é se o roteiro não está apenas ampliando o poder já existente.
O problema é que o livro, em tela, trata como contradição formal a dualidade nas manifestações do capital, quer na Faria Lima quer no armazenamento em nuvem. Na taxonomia que adota para uma classificação sobressai a lógica excludente, a partir da qual avaliza a notícia da morte do regime capitalista. O anúncio fúnebre é precipitado – as pesquisas frisam a vigilância totalitária. Outrora a ruptura tinha contornos nítidos na economia, política, e cultura; coisa que não tem hoje. Mas a falta de diagnóstico consensual não impede o compromisso prático-militante contra os podres poderes.
Estratégia progressista
Yanis Varoufakis rejeita as terminologias do passado – hipercapitalismo, capitalismo de plataforma – sobre o cerco da internet pelo capital-nuvem. “Para devolver o demos à democracia, precisamos unir o proletariado tradicional e os proletários das nuvens, mas também os servos das nuvens e parte dos capitalistas vassalos. Nada menos do que uma grande coalizão” (p. 192). Há que regulamentar e taxar os neocolonizadores da mente. Fortalecer a colaboração transnacional, criar uma infraestrutura digital pública, revisar as políticas tecnológicas e ampliar os princípios democráticos. A finalidade é uma socialização dos meios de produção e dos meios de comunicação que compõem as Big Techs.
Ladislau Dowbor, em A era do capital improdutivo, por seu turno, tece várias considerações sobre a transferência de poderio ao capital financeiro na era da riqueza estéril e conclui que o capitalismo se complexificou com a erosão da privacidade por tecnologias capazes de individualizar informações. “Batalhar por juros decentes e a racionalidade do sistema financeiro nas suas diversas dimensões tornou-se tão estratégico como batalhar por salários dignos” (p. 277). Para o professor da PUC/SP, urge a sustentabilidade socioambiental, o combate à especulação e à evasão fiscal para um fomento econômico, o estímulo às agências financeiras locais e a transparência nos fluxos da Big Finance.
A formação de feudos no capital-nuvem e a meada financeira do capital improdutivo obstaculizam a democratização da sociedade e da webesfera, com o zelo da ganância e o menosprezo da ecologia. A equação “99% da população vs 1% de sanguessugas” expõe a polarização do neoliberalismo. A nuance teórica deve se submeter à estratégia progressista para uma unificação dos esforços contra as duas faces do capital hegemônico, no século XXI. Com organização política e consciência de classe em nível mundial, cada passo encurta o longo caminho. Como no poema de Paulo Leminski, temos de: “Achar / a porta que esqueceram de fechar. / O beco com saída. / A porta sem chave. / A vida.”
* Docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul
Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.