Luiz Marques

Voltaire (1694-1778) é um dos pensadores mais importantes do iluminismo europeu. Pertence ao panteão do liberalismo político. Evoca a máxima: “Posso não concordar com nenhuma das frases que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”. É dele a expressão “filosofia da história”, antirreligiosa por princípio (ético), método (fatos culturais decifrados com sensatez) e conteúdo (não atribui a realidade a um desígnio divino). A teodiceia não tem lugar nessa aventura.

O projeto iluminista visa libertar os indivíduos dos grilhões de imposturas e preconceitos da igreja, para pavimentar um ensolarado caminho para a ciência e o conhecimento. A razão torna o “homem” melhor e mais feliz. No Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações (1756) substitui a etérea providência na trajetória humana pelo progresso, à custa do esforço crescente e da engenhosidade.

A tragédia do terremoto em Lisboa, no ano anterior, contribui para desacreditar as interpretações ligadas à vontade ou ao capricho da divindade. O sucesso do ensaio é auferido pela receptividade da classe em ascensão. No escrito, a burguesia se depara com os ideais do avanço laborioso e gradual em contraste com as epifanias bíblicas, ilustradas na visita dos Reis Magos à manjedoura de Jesus.

Voltaire tem no quarto o quadro daquele que reputa um sábio, Confúcio (Sancte Confuci ora pro nobis / “Santo Confúcio rogai por nós”). Inicia a reflexão de costumes das nações com a China, que conhece pelos missionários que retornam impressionados com a longevidade e com a excelência da cultura chinesa e da moral confucionista. Mais civilizada do que os relatos de idêntico período no Antigo Testamento, a China não padece das fábulas, milagres e profecias absurdas. Para os jesuítas eruditos, as missões devem se adaptar ao Oriente. Um pleito que a hierarquia eclesiástica proíbe.

A novidade está em cotejar a civilização europeia, em desvantagem, com uma civilização não cristã. Os hábitos do ancien régime são medidos e satirizados em comparação com povos ditos bárbaros. A crise de identidade converge no velho continente, sob suspeição no tribunal do humor. Não ao ponto de impedir que os valores eurocêntricos (o racismo, o sexismo) se firmassem como incontornáveis paradigmas das colônias e se espalhassem nas Américas e África, na Era das Navegações. Pensando levar um processo civilizatório redentor para além-mar, os colonizadores trazem uma escravidão.

Para Voltaire, civilização significa desenvolvimento científico, da moral e das leis, do comércio e da indústria; os obstáculos estão nas religiões e guerras. Deus é afastado do comando da expedição. No Tratado sobre a tolerância (1763), o iconoclasta sublinha que o homem é por natureza intolerante, o que é reforçado por superstições religiosas e abstrações tipo raça e orientação sexual; só importa a pessoa. A tolerância (tolerare, “suportar com paciência”) implica o respeito à diversidade existente no planeta para exprimir as qualidades do ser humano. Trata-se de um valor democrático universal.

A opção mais comum dos crentes é cultivar o seu jardim, como fizeram Adão e Eva no Jardim do Éden. A exegese conservadora não abençoa quem intervém em assuntos públicos. Louva o fiel que segue a Bíblia para salvar a alma; não para subverter o mundo terreal. Aquilo que atrai os tementes ao Senhor é a privatização da vida com a família. Modernamente uns incentivam o recolhimento por desobrigar o Estado de investimentos sociais. Outros condenam por exaltar uma apatia política.

A religião a que se refere Voltaire teve a Inquisição em duas fases: a medieval (séculos XIII e XIV) e a moderna (séculos XV e XVI). Em Portugal se estabelece formalmente em 1536 e é abolida em 1831; 285 anos de atividade. Na Espanha tem início em 1478 e fechamento em 1834; 356 anos de atuação. O inimigo do racionalismo é um aliado do despotismo, com poderes inimagináveis. Até a separação da Igreja e do Estado retirar da religião a prerrogativa absoluta sobre a vida e a morte.

A mente e as mãos

Voltaire promove uma pedagogia da dignidade das ações terrenas sem a tutela do sobrenatural. No momento em que se propaga o obscurantismo ao Norte e ao Sul Global, se o filósofo e historiador fosse vivo seria persona non grata aos hipócritas que exploram a ignorância do povo e reinventam os assassinatos de reputação. A propósito, ver o documentário dirigido por Petra Costa, Apocalipse nos trópicos, o qual aborda o fanatismo evangélico em uma relação orgânica com o bolsonarismo.

Pastores sinistros incorporam o “grande inquisidor” d’Os irmãos Karamázov para denunciar o risco do desequilíbrio institucional se, acaso, Jesus volte à Terra ou a esquerda implemente seu programa. A humanidade precisa de fé e pão, não de consciência socialista. A alienação mantém a estabilidade. Não há motivo para a modificação do status quo. “Por que vieste estorvar-nos antes do tempo?”

A noção de meritocracia inocenta as desigualdades estruturais, ao transferir a culpa dos fracassos à incompetência pessoal. A subjetivação legitima as injustiças sociais, absolve as condições objetivas. Para desviar o foco, a extrema direita incentiva a rebeldia a favor das tradições e o ódio à política e à regulamentação da economia, compensando a frustração com o empreendedorismo e as fórmulas de autoajuda pela imprensa aos pobres e à classe média, em crise. São seus pesos e contrapesos.

A diferença é que a esperança na religiosidade concorre agora com a lição mundana deixada pelas revoluções – política, social, industrial – subjacentes no apelo progressista de caráter nacional e popular, com ênfase na organização de base na América Latina. A utopia, para os comuns, é uma possibilidade concreta com a participação da coletividade nas zonas rurais, urbanas e periféricas.

Se dois mil anos após Deus-Pai encarnar o Messias de Nazaré a cristandade não mudou o mundo e nem acabou com os vícios das criaturas, então os esquecidos pelo Criador têm de tomar para si as rédeas para a superação no vale de lágrimas. Cada pequena conquista é uma vitória suada sobre as circunstâncias, e também o prenúncio de que com uma união é possível erguer façanhas épicas.

No mito, o Vaso de Pandora (pan-doron, todos presentes) contém uma coleção inteira dos males. Ao fundo do cântaro está a esperança: mal que parece ser bom para quem sempre espera algo melhor e que se afigura inútil, pois dificilmente o futuro realizado não desaponta. Porém nós, os mortais, não vivemos sem a dádiva precária de Zeus, assim como não podemos viver sem o fogo, regalo roubado do Monte Olimpo por Prometeu. Porque sem esperança (de-sperans) afundamos no desespero.

O Homo economicus supre o vazio existencial com o bezerro de ouro, o fetichismo da mercadoria. Menospreza o cristianismo, islamismo, budismo, confucionismo, yoga, culto de matriz africana ou indígena. A filosofia e as artes não têm serventia. Somos o que comemos. O fim dos carecimentos faz supérflua a dimensão espiritual. A vita contemplativa opõe-se à vita activa. O bem-estar social solucionaria as doenças da alma. Todavia o problema é mais complexo onde fracos não têm vez.

“A vida é fruição, uma dança e a gente quer reduzir a uma coreografia ridícula e utilitária”, adverte Ailton Krenak. É na ordem simbólica da linguagem, cultura e valores que construímos a sociedade de convivência, capaz de universalizar a liberdade, a igualdade, a solidariedade. A mente e as mãos completam-se. A Teologia da Libertação assume as questões de subsistência e, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a mística. A dialética sustenta a luta com a aura da emancipação.

Já a gralha dos States distribui tarifas. O grito estridente da ave eleva o caos. O palhaço sociopata é pretexto. O cerco da Big Tech na Alta Corte brasileira é subtexto. O texto anuncia os estertores do imperialismo inquisitorial. A história está numa encruzilhada movimentada, em que um semáforo enferrujado parou de funcionar e o novo não se instalou ainda. Que os Orixás protejam os Brics.

* Docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul