*Luiz Marques

É preciso uma fita amarela em torno do Congresso Nacional para não contaminar a cena do crime: (i) o conluio quando Arthur Lira (PP/AL) ainda presidia a Câmara Federal para cassar o mandato do deputado Glauber Braga (PSOL/RJ), o qual ousou denunciar a trama das “emendas secretas”; (ii) a anistia a golpistas que buscaram até 8 de janeiro de 2023 destruir o Estado de direito e fraudar a soberania popular e; (iii) o bloqueio inescrupuloso aos trabalhos parlamentares de interesse do povo brasileiro, a exemplo da isenção do imposto de renda a cidadãos que recebem até R$ 5 mil mensais.

A violência institucional espelha a vingança, a cumplicidade e a insolência. Uma retórica miliciana chantageia a ordem democrática e protege adeptos do regime de exceção autoritário. O imperativo categórico kantiano (“não faça a outros aquilo que não deseja que façam a você”) é desativado. Não há universalidade na apologia de quem possui voz no sistema político; apenas hipocrisia e cinismo.

A esfera da política se realiza na voz dos invisibilizados pelas elites, hoje ligadas às finanças que controlam a mídia comercial. A política começa com uma exigência de lugar de fala àqueles que não possuem reconhecimento e legitimidade para exercitar seus direitos, no capitalismo neoliberal. Supõe a correlação entre o dizível e o visível, na marcha da emancipação das classes laboriosas para desconstituir as hierarquias tradicionais e construir utopias igualitárias, com participação popular.

Na literatura, Paulo Lins (Cidade de Deus), Jeferson Tenório (De onde eles vêm), José Falero (Os supridores) e Emicida (Amoras) evocam hoje um “realismo histórico” com obras que desafiam o status quo e abrem espaço para identidades marginalizadas, na sociedade. Cresce o interesse pelas experiências nas comunidades de periferia, como forma de superação das contradições urbanas. A linguagem faz aparecer o que permanecia até então oculto e estigmatizado. Assim se compõe a dialética da marginalidade e o romance da sobrevivência com o suor do trabalho mal remunerado.

A violência social é sublimada esteticamente, com vantagens para o mercado editorial. Conforme lembra um expoente da Escola de Frankfurt, “o livro é uma mercadoria, mas nem toda mercadoria é um livro”. O mesmo se pode afirmar da camiseta com a estampa de Che Guevara, vestida por um jovem na universidade; sem dúvida, melhor do que uma propaganda das big techs. A primeira é um símbolo de resistência antissistêmica; a segunda, da dominação das megacorporações tecnológicas.

A vida como ela é

Na realidade, a violência detém estatísticas macabras. O país contabiliza 1.458 feminicídios em 2024, doze a mais do que no ano anterior. Uma mulher a cada dezessete horas é vítima do crime de gênero. No Nordeste, a taxa de feminicídios é 60% superior à média nacional; no Norte, 48,8%. No Rio Grande do Sul, dezenas de cidades registram feminicídios no período; seis agora na Páscoa.

Crimes raciais e de injúria racial crescem nos últimos anos. Em São Paulo, os boletins de ocorrência de preconceito dispararam sob o governo atual. Em 2024, bateu um recorde de processos racialistas, com o acréscimo de 64% nos apontamentos por racismo, atingindo 5.552 registros; e pelo “Disque 100” denúncias de 5.200 violações de direitos. A política de segurança estadual é um desastre total.

Apesar da redução, o Brasil continua a liderar o triste ranking de assassinatos contra a população trans, pelo 16° ano consecutivo nos índices globais. Na maioria, mulheres trans jovens, pretas e nordestinas com óbitos de extrema covardia e selvageria. Ao pregar que preferia o filho morto em vez de gay, a necropolítica do genocida homofóbico alimentou a barbárie. Só a democracia cura tamanha insensatez. A violência que inicia na política, chega à literatura e mostra a vida como ela é.

Nesse contexto, sentimos a falta do Papa Francisco. As lutas por igualdade honram sua memória.

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.

* Docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul