As ideias políticas
As ideias políticas no século das Luzes remetem à educação, força motriz do progresso. Na França pós-1789 o problema é repor a unidade espiritual antes reservada à Igreja Católica. Há quem aposte na ciência e pedagogia para o novíssimo senso comum; e quem insista em um retorno à religião. No século seguinte Karl Marx desmistifica as ideias, uma vez que não pairam acima dos interesses de classe e da atividade real das pessoas de carne e osso. Em A ideologia alemã, argumenta: “Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. Põe a dialética de pé.
No século 20 prevalece a ideia de que o liberalismo garante a pluralidade política e a sociedade aberta ao desenvolvimento econômico, capaz de diminuir a injustiça social. Esta é a lição dolorosa do conflito que conta a morte de vinte milhões de russos, oito milhões de alemães, seis milhões de judeus e quinhentos mil norte-americanos. Desde então a democracia é um horizonte caro à civilização ocidental.
No Brasil, depois da abolição da escravatura e da proclamação da República, intelectuais quebram a cabeça em busca da maneira de efetivar a unificação do jovem país, com 350 anos de supremacismo branco, mando e obediência. Anita Leocadia Prestes, em Era Vargas: autoritarismo e repressão (1930-1945), aponta a crise de hegemonia das oligarquias rurais na produção e comercialização do café, na República Velha, como estopim do levante do general Góis Monteiro e de Getúlio Vargas. À época, a corrente de sociologia autoritária postula “um Estado Uno para uma Sociedade Una”.
Compreende-se o flerte getulista com líderes europeus da extrema direita, Adolf Hitler et caterva, na encruzilhada mundial. Compreende-se também a pragmática negociação da raposa de São Borja/RS com os Estados Unidos, para um apoio logístico em troca de recursos para construção da Companhia Vale do Rio Doce. Sem banda marcial, começava a industrialização na Terra brasilis.
Hoje as “elites” temperam a coesão emocional em uma antipolítica e um ódio. Em Democracia versus neoliberalismo, obra coordenada por Wagner Romão, Juarez Guimarães na coletânea frisa: “É preciso politizar o conceito de neoliberalismo, como fusão de poderes políticos e econômicos que instalam novos regimes. A partir do novo conceito neoliberal de liberdade os fundamentos constitucionais e as formas de regulação do Estado são revistas e transformadas com incidência em todos os campos da vida econômica e social, da cultura política e da subjetividade”. Politizar é expor a responsabilidade pelas consequências ruins das decisões, em uma totalidade significativa.
Sinais dos tempos
Palavras-significantes podem gerar significados para impulsionar movimentos de massas. A mídia corporativa cumpre essa função nos noticiários; as redes cibernéticas, com fake news. Os linguistas, os historiadores e os politólogos tentam decifrar a importância do vocabulário em cada momento. Para mencionar o ótimo filme de Walter Salles, Ainda estamos aqui, entre 1964-1985, a conjuntura remete à tortura, à censura, aos direitos humanos, à luta por liberdades democráticas, às Diretas Já.
Com a redemocratização, a ênfase se desloca para os partidos políticos e a reestruturação do Estado. Estudos com valor heurístico sobre a questão social (violência urbana, marginalização) cedem ao politicismo das análises com valor demonstrativo (governabilidade, ordem constitucional). Cresce a pressão pelos direitos civis, sociais e políticos que possuem na participação um fronte estratégico.
Considerando a minutagem do Jornal Nacional, a corrupção surge com os governos de combate às desigualdades que inserem pobres no Orçamento da União; ricos, na tabela do Imposto de Renda. A comoção com falsos heróis são sinais dos tempos. A Rede Globo, fiel ao dinheiro que a irriga, porta-bandeira de um ultraliberalismo, disputa a opinião pública com as instituições estatais. O produto tóxico que vende é monocórdico, só tem uma corda para propagar o som grave da manipulação.
Consumado o golpe de 2016, a terminologia muda. As esquecidas privatizações dos tucanos são retomadas. A contrarreforma trabalhista e previdenciária ecoa a precarização com terceirizações, em nome da pseudomodernização do trabalho. As pautas misóginas e racistas infectam a agenda com o reacionarismo oriundo de uma teologia do domínio. Os pastores pregam a iminência do apocalipse.
Neofascistas compartilham o mote da liberdade individual e do regime de exceção, que beneficia a volatilidade das finanças, a circulação do capital, o livre mercado, o agronegócio de commodities. O ressentimento nutre os afetos antirrepublicanos, a aversão às normas igualitárias. Sua revolta mira a posição subalterna na hierarquia, não o sistema; tipo os “dalis” da série La casa de papel, criada por Álex Pina, após a ascensão de Donald Trump. Os rebeldes a favor são aprendizes do trumpismo. A trilha musical, Bella Ciao, serve para conferir um ar libertário ao conteúdo ideológico da narrativa.
O coração do povo
Em Por uma história política, orquestrada por René Rémond, os leitores se deparam com um ensaio sobre “A opinião pública”, subdividida em “estática” e “dinâmica”. A primeira é constituída pela formação moral e intelectual, os padrões de pensamento e as estruturas sociais, no tempo longo das tradições. A segunda é uma resposta aos acontecimentos disruptivos das regras do jogo, no tempo curto da micro-história e suas circunstâncias específicas. Em paralelo, marcham relaxos e caprichos.
A comunicação do governo atual tem dificuldade para interpelar a dupla face da opinião pública. Medidas de impacto na paisagem estática para reordenar o imaginário social exigem criatividade de publicitários; de agentes políticos, ousadia. O desafio é exemplificá-las dentro do espectro amplo. O Mais Professores tinha de vir no bojo de um projeto de educação. Já medidas corretivas na inflexão dinâmica cobram intervenções rápidas e firmes, de preferência em uma rede de rádio e televisão. O Pix, aliás, devia aparecer no contexto de um projeto contra a corrupção e a sonegação. No varejo as boas intenções se dissipam como nuvens; no atacado colaboram na politização da própria política.
O Movimiento de Regeneración Nacional (Morena), partido de esquerda mexicano em defesa da diversidade étnica, religiosa, cultural e sexual, bem como dos direitos humanos e do meio ambiente visa uma sociedade utópica. Os experimentos regionais, anteriores à eleição de Claudia Sheinbaum à Presidência, desdobram processos socioambientais coletivos não-sistêmicos chamados “utopias”.
As utopias públicas (parques, escolas, hospitais, moradias, etc) são sonhos de existência solidária e esperança no socialismo. Antecipam o futuro em concreto. Simbolizam a coragem de renascer. Eis o que significa a “Transformación de la Vida Pública en México”, na síntese iluminista da ex-prefeita da capital. Trata-se de fomentar o democrático direito a ter direitos, rumo à cidadania substantiva.
A presidenta Claudia multiplica mudanças na contramão do status quo conservador. Lula reinventa relações em vários setores, sem comunicar a contento. A bateria de “fatos alternativos” disparados com robôs encarna a estratégia direitista para neutralizar os números oficiais e estatísticas, na pós-verdade. Outro mundo é possível, trazido ao cotidiano com ideias políticas, palavras e ações para tocar o coração do povo. “Yo no creo en caminos / pero que los hay / hay”, canta em verso o poeta.
Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul
Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.