Liderança pioneira das lutas antirracista e pela democracia no Brasil, Flávio influenciou várias gerações de militantes e será lembrado como um elo entre o movimento negro e a esquerda

Texto: Rose Silva
Fotos: Sérgio Silva

As conquistas do movimento negro brasileiro nos últimos quarenta anos tiveram um grande articulador político, pensador, uma liderança presente em cada luta travada nas ruas, nos partidos, nos movimentos sociais e nos bastidores da política, desde aquelas que levaram ao fim da ditadura até os dias atuais: Flávio Jorge Rodrigues da Silva, morto no dia 6 de junho passado.

Nascido em Paraguaçu Paulista (SP), de onde saiu aos 17 anos de idade para viver em São Paulo, filiou-se ao PT desde o início e foi um dos fundadores da Soweto Organização Negra e da Coordenação Nacional das Entidades Negras (Conen). Durante nove anos fez parte da diretoria da Fundação Perseu Abramo, além de integrar o Conselho do Instituto Lula. Flávio participou ainda do Núcleo Negro Socialista da PUC nos anos 1970, onde iniciou sua militância. Quem o conheceu sempre se lembrará da figura gentil, de fala mansa, amante do reggae, discreto, porém visivelmente altivo e orgulhoso de sua ancestralidade nos dreadlocks que manteve durante décadas.

Na homenagem realizada pela Fundação Perseu Abramo na noite de ontem (27), reuniram-se amigos, companheiros, familiares e admiradores que foram influenciados por ele para relembrar momentos importantes de sua trajetória. Participaram presencialmente o presidente da FPA, Paulo Okomatto, a ex-ministra da Igualdade Racial Matilde Ribeiro, a diretora do Instituto Lula Tamires Sampaio, Selma Rocha, Gilson Negão, da Conen, Paulo Rafael da Silva, Romildo José dos Santos e Alva Helena de Almeida, da Soweto, além de seu filho Pedro Jorge e outros familiares.

Imenso legado no CSBH
O evento foi aberto pela diretora da FPA Elen Coutinho, hoje à frente do Centro Sergio Buarque de Holanda de Documentação e Memória Política, que organizou uma página na internet permanente de homenagem a Flávio Jorge, onde constam fotografias, textos, entrevistas e diversas produções do acervo, parte do imenso legado deixado por ele para todos nós.

O presidente da FPA, Paulo Okamotto, destacou uma preocupação compartilhada entre ele e Flávio Jorge: o desafio de conquistar mais militantes para a causa negra, a área da saúde e a luta social no Brasil. “Nós precisamos ter mais militantes, mais pessoas que lutem, que façam o que ele fez. Ali, sim, havia um brasileiro com consciência, que amava seu povo e que lutou com todas as forças para mudar essas desigualdades e o racismo que ainda persistem em nossa sociedade”, afirmou.

O antropólogo e professor da USP Kabengelê Munanga disse que Flávio esteve presente em todos os processos que levaram à criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), no primeiro governo Lula, e também à aprovação da Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino da história afro-brasileira nas escolas.

Flávio conheceu Munanga quando era um jovem líder estudantil e o convidou para participar de debates que organizava na PUC sobre os dilemas da população negra brasileira, onde depois estiveram também os professores Milton Santos e Wilson do Nascimento Barbosa. “Milton era um grande intelectual sobre as questões humanas, mas não era um estudioso da população negra. Wilson havia ficado no exílio durante a ditadura, na Áustria, mas não tinha um posicionamento claro sobre o racismo. Naquele dia, Flávio colocou a gente contra a parede, e, pela primeira vez, vi os dois discutirem publicamente essa questão. Ele provocava muito, criticava nossos argumentos teóricos que nada tinham a ver com o cotidiano da população negra no Brasil, e eu pessoalmente aprendi muito com ele”, afirmou.

Presente na Constituinte

Selma Rocha, que o conhecia desde a época do movimento estudantil, lembrou que se reencontraram no PT para organizar o movimento social e atuar no momento da Constituinte, um dos mais belos que o país viveu. “Nos formamos nessa dialética: o movimento social levantava questões sobre direitos e democratização e, ao mesmo tempo, nós construíamos o PT discutindo coisas estruturais para a sociedade, tais como o racismo, a saúde, a educação, as políticas habitacionais”, lembrou. Posteriormente eles foram contemporâneos na diretoria da Fundação Perseu Abramo e compartilharam uma sala durante anos, consolidando uma grande amizade.

A advogada Tamires Sampaio, que representou o Instituto Lula, emocionou-se muito ao referir-se a Flávio Jorge como “seu pai” no movimento negro. “Ele era como um farol. Às vezes temos momentos na vida em que estamos no escuro, não sabemos o que fazer, eu falava com ele e uma luz acendia. Quando eu soube que ele tinha morrido, tive a impressão de que o farol havia apagado e eu estava no escuro”, disse. Ela destacou seu papel como referência de muitos jovens de várias gerações ao entrarem na luta antirracista. “É preciso virar essa chavinha do luto para a luta. Flávio estava há mais de cinquenta anos construindo ações e revoluções, as conquistas dos últimos quarenta anos tinham seu DNA. Temos, assim, a responsabilidade de melhorar e ampliar essas conquistas e formulações. Esse farol, agora, é um farol de estrela”.

Alva Helena, da Soweto, disse que se surpreendeu quando realizou a organização do acervo com os certificados que comprovam a presença de Flávio em centenas de eventos nacionais e internacionais representando a organização ao longo dos anos. “A gente se deu conta do tamanho da Soweto, por conta da documentação. Tudo o que vocês podem imaginar de eventos, convites, teses políticas, homenagens em Câmaras Municipais, OAB, Brasília, tudo comprovava a participação dele”, disse.

O filho de Flávio Jorge, Pedro, encerrou o ato com um texto emocionante. Sobre o pai, destacou que sempre foi bom aluno, gostava de reggae e apreciava particularmente a música de Bob Marley Get up, stand up, cujo refrão é “Levante, resista: lute pelos seus direitos!”.

“Para quem não me conhece, sempre fui rastafari, e sou até hoje, com muito orgulho. Meus pais me deram esse privilégio de carregar essa coroa da resistência, e acredito que resistir seja um dos sinônimos do meu pai. Para mim, sua semelhança com Bob Marley não é só física, mas a luta pacífica. Ele sempre foi e será uma liderança entre nós, que traz a conciliação, a virtude, o diálogo e o amor. Para nós e as entidades, todos os que o conheciam, fica a responsabilidade de dar seguimento a essa luta. Como pai, foi um amigo, um parceiro, um herói, não somente pra mim, mas para muitos outros”.



Assista à homenagem completa: