O “capitalismo” incita a precarização das formas de vida social, o esfacelamento das infraestruturas, a erosão dos serviços, a violência racializada e os eventos climáticos extremos. Nenhuma novidade. Nancy Fraser transcende. O adjetivo “canibal” ressalta o ritual do humano que come carne de outro. “Isso se assemelha à relação entre a economia capitalista e os espaços não econômicos: famílias e comunidades, habitats e ecossistemas, capacidades estatais e poderes públicos que têm a substância consumida para inflar o próprio sistema. Trata-se de uma crise generalizada. Múltiplas calamidades convergem, exacerbando-se entre si e ameaçando nos engolir por inteiro”. Somos o prato principal.

A referência envolve também a sociedade que autoriza a economia a se nutrir de nossas habilidades criativas e da terra que nos sustenta, sem repor o que consome. Contradições sistêmicas provocam não apenas crises econômicas, mas de cuidado, ecologia e política. Todas afloradas por cortesia do período da comilança batizada de neoliberalismo. Os ideais extra-econômicos possuem uma gama de possibilidades crítico-políticas. Seria uma falha cognitiva monumental subestimar sua atualidade.

Essas “lutas de fronteira” incitam mobilizações que não se restringem às lutas de classes vinculadas à produção. A variedade de temas e de sujeitos sinaliza o potencial para a grande recusa. Em muitos momentos tendem a se rebelar contra as praxes associadas à acumulação. A pesquisadora norte-americana feminista da New School for Social Research, de Nova York, em Capitalismo canibal (Editora Autonomia Literária, 2024), com rigor e empatia, apresenta uma teoria capaz de articular a dispersão de esforços e o que fazer para obstaculizar a marcha do devoramento da democracia hoje.

Só com pensamentos grandiosos, de atacado, teremos a chance de derrotar o ímpeto voraz que o canibalismo do capital tem de nos devorar, por completo. Os eixos de desigualdade, incluindo a nacionalidade, a etnia, a religião, a sexualidade e a classe acendem o alerta. É impossível continuar repetindo os modelos que persistem em uma priorização das lutas do trabalho no estágio produtivo. Precisamos de análises sintonizadas com o nosso anseio – força para resilir e mudar o status quo

Existem “terrenos ocultos” por desvendar: aqui, leia-se um pano de fundo de não-mercadorias. A reflexão marxiana soma-se à necessidade de uma virada epistêmica da produção para a reprodução social. A saber, o provimento com a criação dos filhos e a educação das novas gerações no ciclo de laços afetivos que acudem o trabalho assalariado, o mais-valor e o mecanismo – a marca de gênero.

A marca ambiental está na conversão da natureza em fonte de insumos e escoadouro. A marca do Estado, na estruturação legal para viabilizar a expansão. A marca da “acumulação primitiva” nos trabalhadores informais que vendem produtos industrializados sem proteção trabalhista, mas auxílio assistencial. A expropriação subjaz à exploração. “O capitalismo é a ordem social institucionalizada, de imbricação estrutural na questão de gênero, na degradação ecológica, na opressão racial-imperial e na dominação política – tudo em conjunto em sua dinâmica estrutural e nada acidental”. Pudera.

Os terrenos ocultos

Nancy Fraser dedica um capítulo para cada desdobramento, além do percebido por Marx nas frestas do valor de troca. Traz à tona o “marxismo negro”, que estuda relações entre capitalismo e racismo desde o escravismo das plantations, entre os séculos XVII e XIX, dissecando a expropriação para a acumulação por outros meios. Se as finanças nublam a linha entre as duas “ex” (a exploração e a expropriação) é para promover a síntese que reduz a ciranda econômica a uma superexploração. A ideologia hegemônica separa a história e a política para ocultar os liames orgânicos da escravidão com o capital, na suposição de que a intersecção entre as galáxias foi uma insuspeita casualidade.

Já a reprodução social tem uma centralidade para fazer a roda da subordinação girar. Não pode ser abstraída do exame. Afetos da esfera reprodutiva são desviados para finalidades externas, as quais sequestram o suporte de crianças e adolescentes. Feito o Ouroboros, o capitalismo come a própria cauda. A escolha não é entre proteção social derivada da dominação masculina ou mercadorização, no lugar do cuidado. A opção correta é a emancipação que alia a proteção social à divisão de tarefas domésticas, por parte dos pais. O globalismo neoliberal incentiva o descaso estatal e corporativo com o bem-estar; avalia a liberdade em termos mercadológicos para a embutir no jogo do mercado.

As premências ambientais originam as discussões sobre o decrescimento, a produção e o consumo predatórios. Por seus territórios e contra o extrativismo, comunidades indígenas ganham aliados. As feministas comparam a ginofobia (a aversão às mulheres) ao desprezo capitalista pelo planeta. Os antirracistas desejam acabar com o eugenismo étnico das prefeituras. A socialdemocracia navega na onda, desmoralizada na guinada à droite. A transição para uma energia renovável com os empregos sindicalizados e bem remunerados é atraente, em função da promessa do movimento ambientalista.

A ecopolítica é onipresente. Mas não supõe consenso na superação dos impasses. Daí não se conclui que o aquecimento global se sobrepõe aos direitos trabalhistas. A crise que agora abarca a ecologia, a economia, a sociedade e a política – em metástase – abala a confiança na cosmovisão das classes dominantes. Proteger o planeta exige a edificação de uma contra-hegemonia, que demanda uma transformação estrutural profunda no relacionamento entre a economia e seus “outros”. Sociedades capitalistas carregam uma contradição ecológica no DNA – lucram com a poluição e vendem o céu.

A matriz das deformações reside em uma teia. As variáveis não são independentes. É preciso uma “dialética da totalidade concreta” para apreendê-las. “Na pseudoconcreticidade, o fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é tido pela essência, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece”, nas palavras de Karel Kosik. O que distingue um fenômeno da essência equivale à diferença entre o real e o irreal. A realidade é a unidade do fenômeno e da essência, uma condensação de múltiplas determinações. A semeadura de ilusões irriga tristes derrotas na história.

Compreende-se que a democracia no capitalismo seja de fraca intensidade ou de pura hipocrisia, e assim permanecerá enquanto o econômico for considerado não político, e o político não econômico. O marco legal da iniciativa privada e da trocação mercadista é operado na institucionalidade. São as engrenagens legislativas e jurídicas dos Estados que estabelecem as arenas despolitizadas, em que os atores sociais buscam seus interesses “econômicos”, libertos das interferências “políticas”. Por igual, os Estados conferem direitos subjetivos a uns privilegiados e não a outros subvalorizados.

Construir a utopia

O capitalismo financeirizado refaz a articulação entre economia e política. Os bancos centrais e as instituições financeiras globais substituem os Estados como árbitros na formulação das regras que regem o capital e o trabalho, devedores e credores – sem o que o rentismo não se desenvolveria. Na via do endividamento, o capital canibaliza o trabalho, disciplina o Estado e os direitos de cidadania, transfere o valor da periferia ao centro de domínio, suga a sociedade e o meio ambiente. O “déficit democrático” resulta da descontrolada financeirização que despolitiza a atividade política e confisca seu poder decisório sobre temas graúdos como o aquecimento da morada da humanidade, Gaia.

Uma curiosa governança sem governo é instalada pela União Europeia, a Organização Mundial do Comércio, o Nafta e os Trips que enviam para as populações a benção ou a maldição. A autoridade desloca-se do nível nacional para o transnacional. O crescimento da extrema direita escancara um empenho desesperado em salvaguardar toda meleca das finanças. Na contramão, os impulsos pró-planejamento para uma sociedade inclusiva espalham-se pelos hemisférios Norte e Sul. A ascensão da liderança exercida pelo presidente Lula em escala global, com a proposta de taxação das grandes fortunas, encaminhada ao G-20 e ao Papa Francisco, indica um confronto acirrado de perspectivas. O engajamento do Brics no projeto de um mundo multipolar cria alternativas inéditas aos povos.

O muro entre a economia e a política é derrubado dada uma resiliência para conter as mudanças climáticas, as desigualdades de classe e as injustiças de gênero e raça, combater a fome e a miséria, com o objetivo de reabilitar o poder público. O fato de haver uma publicização das controvérsias prova que a lógica neoliberal balança, e despenca aceleradamente. La pensée unique desmancha. Nancy Fraser cita Gramsci ao pincelar o quadro, “o velho está morrendo e o novo não pode nascer”.

A separação da economia não só da natureza, mas do Estado, do cuidado e da expropriação impinge à sociedade um emaranhamento de contradições em interação contínua. Nosso desafio é investigar o conjunto, sob um único enquadramento. A urgente reinvenção do Fórum Social Mundial (FSM), ora em uma Porto Alegre alagada pelo negacionismo, ajudaria na metabolização de uma conjuntura tão polarizada. O anticapitalismo fixa a linha inevitável para cada bloco histórico, entre “nós” e “eles”.

O conceito de socialismo foi preservado por partidos de esquerda que não se deixaram engolir pelo Consenso de Washington. Desconstrói as três chagas do capitalismo: a injustiça, a irracionalidade e a falta de liberdade. Aborta a disjunção entre produção e reprodução, exploração e expropriação, sociedade humana e natureza não humana, defendendo que necessidades básicas (moradia, roupas, alimentação, saúde, educação, transporte, comunicação, energia, lazer, água limpa e ar respirável) não são mercadorias. Nancy Fraser inscreve uma instigante inflexão teórico-metodológica no corpo do materialismo histórico. Abre portas sem dogmatismo e avança respostas, de suma relevância.

Há obras intelectuais e/ou artísticas que causam a sensação de que nos tornamos melhores e mais perspicazes após lê-las, vê-las, ouvi-las ou assisti-las. Capitalismo canibal evoca esse sentimento na alma e a consciência do contexto-pororoca, onde nos inserimos. Num país que caminhava hesitante desde o impeachment da presidenta honesta, sem crime de responsabilidade, a tradução do livro em português quase simultânea ao lançamento do original, em inglês, põe em um mesmo compasso as ideias e lutas contra o Ouroboros. A autora agradece ao que está por detrás da ação intelectual – os apoios institucionais, afetivos, bibliográficos. Os leitores estamos bem servidos, para o novo tempo.

* Docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul

 Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.

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