A ditadura civil-militar concentrou o poder e confrontou a teia de direitos trabalhistas e territoriais forjados na Revolução de 1930 que, com a liderança de Getúlio Vargas, abriu novos canais de poder: Ministério da Educação, Justiça do Trabalho, Previdência Social. O autoritarismo (1964-1985) coincidiu com a vinda das fábricas multinacionais, que compraram terras aqui. O preço da mão de obra obedeceu às condições desiguais entre classes e regiões; inferior ao pago em países “civilizados”. A depreciação dos salários deveu-se à suspensão do direito de greve e à perda de estabilidade, por tempo de serviço. A indenização por dispensa desceu a ladeira da precarização.

A Junta Militar aposentou Fernando Henrique Cardoso de modo compulsório. São conhecidos os males contra as liberdades. Surpreendente foi ver FHC, na Presidência da República, afirmar que se orgulhava de pôr fim à Era Vargas. Assim, entrelaçou o autoritarismo e o neoliberalismo, redivivos no impeachment “sem crime de responsabilidade”, para outro ataque ao trabalho na contrarreforma trabalhista e previdenciária e nas terceirizações. FHC reprimiu a greve dos petroleiros sob pretexto de que os sindicalistas extrapolavam seu papel, acrescentando a bandeira “Não à Privatização da Petrobras” às demandas salariais. Para o “príncipe dos sociólogos”, aquela era uma pauta para o Congresso Nacional, pela delegação de poder à representação. Os comuns deviam ficar de fora.

A crença de que a sociedade é a plateia da luta de classes e não lhe cabe imiscuir em conflitos do governo com funcionários da estratégica estatal, estava embutida no desmonte do varguismo pela sanha privatista. Não obstante, na ditadura verde-oliva e na modernização tucana frações fora do restrito círculo governamental incidiam no processo decisório – comunicações, aristocracia rural, corporações industriais e financeiras. Nisto houve continuidade, não ruptura. A Independência feita por um colonizador, a Abolição por uma escravista, a República por um monarquista (ex-ministro do imperador) e a Redemocratização pelo filhote ditatorial reproduziram as mudanças, pelo alto.

A década do povo sujeito da história é a de 1980, quando em três momentos a soberania popular foi reafirmada: (a) na fundação do Partido dos Trabalhadores em 10 de fevereiro de 1980, após ampla mobilização para cumprir os requisitos legais; (b) na fundação da Central Única dos Trabalhadores em 28 de agosto de 1983 e; (c) na promulgação da Constituição em 5 de outubro de 1988, alimentada pelas lutas massivas que influenciaram a formatação da Carta Magna cidadã. As deliberações de direitos chanceladas pelos constituintes, onde a esquerda era minoritária, garantiram o Sistema Único de Saúde universal e gratuito – o baluarte iluminista da luta por igualdade.

A revolução para completar

Agora, o salto no tempo. Em 2022, a cidadania derrotou a corrupção do Erário e as finanças, que esqueceu o déficit zero na campanha eleitoral. O ato fascista de 8 de janeiro edificou o dique à conversão em republiqueta. Esconjurou-se a volta da repressão policial-militar, e o sangue com a reação previsível das forças alinhadas aos ideais da civilização. As “elites” vira-latas em apoio de um retrocesso institucional lixam-se para as liberdades individuais, políticas ou sociais. Zelam pela liberdade do dinheiro, no más, disfarçada com eufemismos para enganar os bobos. As correntes do atraso, cuja produção mira o mercado externo, se recolheram então – por medo, não convencidas.

Na internet circula o CNPJ das marcas dispostas ao regime de exceção. Para a viralatice crônica, a democracia tem um reles valor tático, descartável na ótica da exploração. Não há compromissos republicano e democrático; nenhum sentimento de empatia com o sofrimento das comunidades de periferia; nenhum respeito às urnas eletrônicas (ou não); nenhum pejo com a vigarice miliciana da extrema direita. Constam apenas ódio e ressentimento na agenda das obscenidades bolsonaristas.

Mantém-se o diagnóstico de Florestan Fernandes, em A revolução burguesa no Brasil (1974). As mudanças ocorreram no patamar econômico. Na questão nacional, na questão fundiária e na questão democrática não se mexeu. Manteve-se a estrutura neocolonialista de dominação e subordinação. “Os véus que nos prendem ao passado recente ficaram encobrindo a realidade, embora algo tenha sido definitivamente desmascarado”, anota o ex-deputado petista no Prefácio à segunda edição. Parafraseando-o, podemos dizer que não está ao nosso alcance descrever uma sociedade ideal, mas está o de descrever o que na sociedade existente não serve de ideal para a existência humana.

A mídia corporativa se repete ao posicionar-se, em 2023, ainda contra a Nova Indústria do Brasil (NIB) – o programa de reindustrialização sustentável com 300 bilhões de financiamento – dada a adesão orgânica ao rentismo do Banco Central. Quer o país com as desigualdades e as hierarquias de raça e gênero, na posição subalterna de posto comercial das grandes potências. A meta é um protetorado neocolonial com sinal de Wi-Fi. A era de modernização não exprime a evolução interna do mercado capitalista; carrega os indeléveis vícios do antigo sistema colonial. Em grande medida, ao revés, o governo Lula 3.0 oportuniza o avanço, se não na consecução, na direção da autêntica nação com participação social. A revolução brasileira segue incompleta. O desafio é completá-la.

A roda da história se move

A história surrealista da América Latina e do Brasil, porém, não cansa de nos surpreender para pior com o rebotalho da política nacional, que tornou Deus e a religião reféns de oportunistas, cuja fé espuma pelos cantos da boca toda perversidade da tradição misógina – para legislar contra o sexo feminino. É o que demonstra o estapafúrdio “PL dos estupradores”, que deveria ser enquadrado como um crime por trazer embutido a legalização de uma indisfarçável forma de discriminação.

O Projeto de Lei (canalha) está abrigado sob as asas do presidente da Câmara Federal, Arthur Lira, que as manifestações nas principais cidades brasileiras já identificaram e responsabilizaram pela ignomínia suprema, aprovada em “regime de urgência”. A extrema direita não é só uma ideologia monstruosa; é também uma patologia criminosa pelo que se depreende do fato. Propagadas pelo bolsonarismo, com o esgoto aberto, as pragas que vieram à tona estão muito longe de esmorecer.

A novidade, no caso, não é a reprodução do habitus autoritário e totalitário da sociedade patriarcal, performado pelas figuras bizarras que se arvoram donos das almas e dos ventres de inocentes. A boa notícia é a mobilização civilizatória imediata das mulheres na vanguarda da contraofensiva política e ideológica de rejeição da restauração reacionária, tão estúpida quanto hipócrita. A soberba da irracionalidade dinamizou o espírito progressista para impedir a cruzada das bestas, dentro e fora dos gabinetes. Como no Grande sertão: veredas, “Cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma?”

A prontidão da resposta é a prova da consciência construída pelo movimento feminista, ao longo de décadas. O “Não” à barbárie é um ato de dignidade. O aborto, além de um grave problema de saúde pública, é um direito democrático inalienável independente das circunstâncias. Trata-se de um tema de foro íntimo que deve ser decidido com autonomia, e não por heteronomia. Pastores evangélicos e/ou legisladores fundamentalistas, ao trazer para si a decisão, abusam das prerrogativas espirituais e/ou legais. A deliberação sobre o assunto é indissociável da liberdade individual. Os próceres do liberalismo clássico foram os primeiros a reconhecer que os indivíduos têm a “propriedade” de seu corpo; não as famílias, as Igrejas ou o Estado. Na democracia que queremos, tal não é negociável.

O Maio de 1968 nasceu do protesto de estudantes contra a divisão de dormitórios por gênero, na Universidade de Nanterre, na França. Não é a primeira vez e nem será a última que a roda da história se move, tendo à frente o punho erguido pelas mulheres contra o ultraconservadorismo. Depois da globalização do capital, quiçá estejamos assistindo o alvorecer de uma globalização da rebeldia com o sujeito mais denegado, através dos séculos: bem-vindo o otimismo da vontade.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.

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