Negacionismo, barricada da barbárie
O conceito de negacionismo não se resume à rejeição das vacinas. A crise da democracia possui uma dimensão com raízes fundas na vida social
A persistência na adesão ao que se convencionou denominar bolsonarismo desafia o entendimento racional. Os indicadores com a reimplantação de programas sociais no país apontam a melhoria na qualidade de vida das pessoas. Mas beneficiário não é igual a empoderado para o tempo futuro. Em simultâneo, a extrema direita logra estimular o fanatismo de militantes cujo empoderamento advém de mobilizações que rastreiam o porvir. Nossas teses se concentram no cérebro, e não no coração:
(a) A crise da democracia deve-se às promessas não cumpridas nos quarenta anos de dominação do neoliberalismo, com restrição dos direitos. Além de um modelo econômico e social, tal regime tornou-se A nova razão do mundo, para evocar o instigante livro de Pierre Dardot e Christian Laval;
(b) O ressentimento em face do sistema meritocrático produz vencedores arrogantes, de um lado, e uma maioria de perdedores ressentidos e raivosos, de outro, alerta Michael J. Sandel, em A tirania do mérito. Muitos desdobraram explicações interessantes a partir desses dois pontos de partida.
Labirinto do negacionismo
Há aspectos ainda pouco explorados sobre os motivos da lealdade de multidões a quem se serve delas como uma massa de manobra, em plena sociedade do conhecimento, da hiperinformação e das taxas crescentes do nível de escolarização e intelecção. No negacionismo, em múltiplas inflexões, encontra-se a chave do enigma para os acontecimentos do fatídico 8 de janeiro, e o ódio destilado.
O conceito de negacionismo não se resume à rejeição das vacinas. A crise da democracia possui uma dimensão com raízes fundas na vida social: “A desconfiança com relação às instituições e aos procedimentos que não se adéquam à ideologia extremista. Os novos populistas minam a crença na ciência, na discussão pública baseada em fatos; minam a confiança em tudo que não reforce os seus preconceitos. Pretendem substituir universidades, especialistas e imprensa livre pelos escritórios de ódio”, escreve Celso Rocha de Barros, na apresentação do Dicionário dos negacionismos no Brasil, organizado por José Szwako e José Luiz Ratton. O negacionismo é a barricada-mor da barbárie.
O “anjo do progresso” de Paul Klee, interpretado por Walter Benjamin, no caso, ajuda a desvendar o mistério. O anjo é empurrado para a frente e avança com a cabeça voltada para trás. O que vê? Os escombros do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF). Os ataques miram os poderes do establishment em uma versão politicista dos inimigos. Deixam de fora as forças socioeconômicas hegemônicas; ontem, os colonizadores no extrativismo e, hoje, a aliança do agronegócio com o rentismo financeiro. Todos sempre de costas para o mercado interno.
É evidente a demonstração de desprezo das classes dirigentes com a sorte dos povos originários e os escravizados, os trabalhadores precarizados e os setores das classes médias que perdem empregos e esperança com a tecnologia aplicada à inteligência artificial. Como na história de Alice no país das maravilhas, quando o Rei Vermelho pergunta para Alice o que está vendo, ela responde: “Nada”. Impressionado, o rei comenta: “Mas que olhos ótimos você tem”. Se perguntasse aos protagonistas do vandalismo antidemocrático a resposta seria: “Tudo”. E a majestade diria: “Pobres coitados”, na paráfrase de indiferença de Jair Bolsonaro para a tropa de choque abandonada, sem nenhum gesto de solidariedade ou recurso no Pix à defesa da malta, na Justiça. A famiglia acima da República.
Entre a opinião e os valores
A mídia corporativa tem por missão desconsiderar os destroços deixados em cada conjuntura, com o otimismo de Pangloss. Os negacionistas elidem a história. Não se trata de um fenômeno individual, mas social. O importante é a pertença ao grupo para não se sentir à parte do movimento contrário às lutas igualitárias, na modernidade. Daí a assunção midiática da democracia de opinião, em oposição à concepção descrita por Claude Lefort, em A invenção democrática, sobre “a democracia como um processo cumulativo de valores civilizatórios”, que não dá ré. A resiliência mostra que os oprimidos nunca esquecem os crimes hediondos infligidos pelos opressores. A memória se nutre das ruínas.
O jogo de opiniões descoladas da civilização nasce na grande imprensa. Então o debate era se a manipulação ocorria na divulgação de desinformações ou na omissão de informações, ao noticiar ou não uma greve ou um protesto. Os “fatos alternativos” engatinharam, décadas antes de a post-truth virar um salvo-conduto para justificar os golpes, a título de impeachment. Se a ditadura civil-militar ceifa a opinião pública, a extrema direita confere às narrativas um selo de autenticidade à hipocrisia. Cognitivamente iguala o sábio ao palhaço sociopata, quarenta dias de Jesus no deserto à goiabeira.
Na tradição clássica da democracia, herdada da Revolução Francesa, o exercício da cidadania para a avaliação e o controle dos governantes passa pelo acesso às informações, a fim de elaborar um juízo com fundamento. Na pós-verdade, as emoções se sobrepõem aos fatos. As fake news colonizam a esfera pública. Não vale o argumento da autoridade, nem a autoridade do argumento. A nova ágora é a revanche tardia do obscurantismo frente ao Iluminismo. A dúvida acerca dos ideais da sociedade (Marx), dos valores judaico-cristãos (Nietzsche) e do que indivíduos pensam de si mesmos (Freud) é trocada pelo beco das certezas em bolhas autoritárias e totalitárias – los vientres de sus madres.
Brutos, que só amam nos filmes como revelam os feminicídios, se arvoram a ilegítima prerrogativa de resgatar os princípios ultrapassados, historicamente, qual o supremacismo de raça, de gênero, a homofobia e a transfobia. Os ignorantes perdem a vergonha da ignorância, e isso é grave. Para os sociólogos, a vergonha é um fator de coesão e valorização da honestidade. Sem o imperativo moral disciplinador, os comportamentos ficam à deriva. Vide aqueles desembargadores esgrimistas das angústias de machos, no julgamento da menina “sonsa”. Negaram instrumentos atuais para inibir o assédio sexual. Zombaram da linguagem, como se os humanos não fossem seres linguísticos. Se a palavra cura, também pode ferir e humilhar e matar. Prevaleceu a cosmogonia machista, no tribunal.
O aceno ao Estado de exceção
A noção bourdieusiana de “violência simbólica” (dissimulada, por definição) permite compreender a profusão de escolas cívico-militares erguidas para, com o aval da educação, disseminar as Forças Armadas na condição de tertium ou logos da nação brasileira, no último quadriênio. Teoricamente a iniciativa naturaliza o aceite da ordem existente e contempla a conversão do poder instalado em um capital social e símbolo. Acusar o mentor da ideia indigesta de idiota compensa a apatia política da pequena burguesia que dorme com a consciência em paz, refazendo a subordinação pela manhã.
A polarização dos homens de bem contra o comunismo também é ardilosa. “Tanto nossa percepção sensorial como os processos de pensamento que usamos para organizar o mundo à nossa volta são restringidos por uma visão polarizada da realidade, que se baseia em opostos como dia-noite, frio-quente, macho-fêmea, etc”, salienta Marcelo Gleiser, em A dança do universo. O bolsonarismo transforma a desvalia pessoal em virtude, e os contrastes reais ou imaginários em vingança. Supre a dificuldade política da síntese superior para superar dicotomias, com o aceno ao Estado de exceção.
A extrema direita reforça as hierarquias e abjura o conhecimento, pelo germe de subversão no ato de conhecer. Sua zona de conforto são os preconceitos, o que estreita os laços no conservadorismo. Já as discriminações em sua representação da sociedade fazem coro ao neoliberalismo, na tríade.
A legitimação da realidade paralela (negacionismo) é garantida no ativismo das redes sociais, nos quais o democratismo dá voz ao nonsense e ao sentimento de importância dos que, pisados pelos de cima, desejam pisar nos de baixo. Esse moedor de carne funciona como um gerador de energia no paramento verde-amarelo, com sangue nos olhos. – “Eles passarão, eu passarinho”, depõe o poeta.
Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul
— Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.