Mídia e transparência
É vergonhosa a presunção da mídia corporativa em se arvorar em árbitra da sociedade (juíza), acusadora em nome do Estado (promotora) e representante dos indivíduos (defensora pública). A mídia fala metonimicamente pelo Judiciário. O que era ruim, ficou pior com a escalada do lawfare contra o presidente Lula e o PT. A mídia então jogou holofotes em um ex-juiz, enaltecendo-o como herói, com vistas grossas às ilegalidades, conluios e métodos de tortura da Operação Lava Jato para extrair delações pré-fabricadas. Não obstante, o “Batman” de toga está prestes a ser cassado do cargo de senador (União Brasil/PR), aliás, é o político com a imagem (65%) mais negativa, seguido pelo deputado federal (PP/AL) que se comporta qual premier da República. O santo era de barro.
O desespero, agora, deve-se ao fato de que as descobertas cobram uma reparação pelos prejuízos provocados. Neste capítulo, insere-se a tentativa da mídia de legitimar as ações pretéritas e escapar, ilesa, de processos judiciais de indenização pelos ataques à reputação de pessoas físicas e empresas, com base na armação de que os meios de difusão foram protagonistas, de proa. É triste assistir o desfile de profissionais com a versão de interesse do grupo patronal; esperava-se que fosse para o esclarecimento do público. Alguns emitem a opinião no condicional, por prudência. Outros, com menor autonomia na função, se esforçam para parecer convencidos e convincentes. Pobres moços.
O levantamento do sigilo (06/02) sobre os acordos de leniência da Odebrecht (agora Novonor) e da J&F, assim como as relações entre a força-tarefa do Ministério Público Federal (MPF) e a ONG Transparência Internacional ajudam a dirimir as dúvidas. A Transparência Internacional participou de negociações acerca do controle das cifras provenientes da J&F, pelo acordo firmado. Ver matéria de título “Sigilo levantado por Toffoli prova que Transparência pretendia gerir R$ 2,3 bilhões do erário” (Brasil 247, 07/02). Havia, há mais coelhos no mato. Os cidadãos têm direito à informação.
Ver também “Lava Jato: Transparência tentou driblar TCU por dinheiro em acordo” (DCM, 07/02), onde lê-se o seguinte: “Mensagens trocadas entre o ex-coordenador da Lava Jato e procuradores do MPF sugerem uma estratégia para direcionar parte desses recursos para a ONG, evitando assim uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU). A ideia era que os valores fossem repassados à instituição sem a devida fiscalização”. Mais: “Uma das mensagens presentes no documento revela uma reunião entre membros da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Transparência Internacional para tratar dos R$ 2,3 bilhões referentes ao acordo”. Para uma análise mais refinada, ver Flávio Aguiar, “A intransparência internacional” (Sul 21, 01/02). Que sejam esclarecidas as controvérsias.
Apesar das mudanças de ênfase, a mídia hegemônica insiste em uma desqualificação das decisões monocráticas do ministro do STF. São os últimos estertores do grande engodo judicial, que acelerou a desindustrialização (engenharia, infraestrutura, obras de porte) e liquidou mais de quatro milhões de empregos. Parafraseando o britânico China Miéville, em A cidade e a cidade, justapõem-se duas realidades ordenadas que não se comunicam e não se veem nunca uma à outra, em termos políticos, sociais, culturais e econômicos, – os âncoras dos noticiários procuram fazer que os porões da Lava Jato sigam fechados à cidadania. Dessa forma, imaginam que não veremos seus próprios segredos.
Trata-se de uma ignorância deliberada, estimulada e praticada à exaustão para recusar inclusive a missão jornalística e investigativa da imprensa. Numa palavra, é um negacionismo. A questão de fundo, vale sublinhar, é o angustiante temor de que o bumerangue se volte contra os conglomerados de comunicação, e atinja o bolso ou o patrimônio dos proprietários. São patéticas as entrevistas com figuras histriônicas, cujos crimes já são conhecidos, para jogar na penumbra o que vêm à luz com o aprofundamento das investigações abertas e inconclusas. A mídia, nervosa, protege-se do que recém começou a ser apurado. Que o forte dique midiático não contenha a verdade. Chega de fake news.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul
— Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.